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Já provou chá de cacau?

Vanessa Aranovich
Cultura da Mesa
Published in
11 min readAug 30, 2023

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Gilberto atende clientes na Magian Cacao | Foto: Vanessa Aranovich

Uma fileira de barras de chocolate está disposta sobre a mesa, perfeitamente alinhadas, cada uma com a embalagem de uma cor diferente. Enquanto oferece aos clientes uma amostra de cada sabor, Gilberto Martins, de 36 anos, explica em detalhes o processo de produção do chocolate. Vestindo seu moletom preto e a touca de lã amarelo-mostarda, Beto sabe tudo sobre os chocolates, da porcentagem de cacau de cada barra até a variedade utilizada, a origem e o produtor da fruta. Ele começa pelo mais doce, depois escala lentamente em direção aos mais amargos: no final da degustação, o cliente se sente como uma espécie de sommelier de chocolate.

Eu conheci a Magian Cacao, a loja onde Beto trabalha, há uns três ou quatro meses, enquanto passeava pela orla do Guaíba em Vila Assunção. Com vista para o lago, a loja é minimalista, com aquele design gourmet que serve de prelúdio para um preço um tanto salgado, mas por um doce que vale a pena. Vencedora de dois prêmios Bean to Bar de melhor chocolate do ano, a Magian Cacao fica bem em frente à fábrica em que o chocolate é produzido, ao lado da casa onde o dono da loja, André Passow, mora.

Assim que você entra, os vendedores Gilberto e Suélen Costa invariavelmente te oferecem uma xícara de chá de cacau, feito com a casca das sementes, que não é usada para fazer o chocolate. Eles começam a ferver o bule assim que uma pessoa se aproxima pela rua. Na parte da frente da loja, há uma mesa de madeira comprida onde Beto e Suélen oferecem as amostras de chocolate para a degustação — espere derreter lentamente, para aproveitar o gosto. Na parede dos fundos, há as prateleiras onde estão dispostas as barras e uma televisão onde passa, em looping, um vídeo no qual André, de boné virado para trás, explica a produção, da colheita do cacau na Bahia até o processo artesanal na fábrica.

Beto é vendedor na Magian Cacao desde que a loja abriu, há nove meses, mas trabalha com comida há mais de 14 anos e já passou pela cozinha de vários restaurantes. Conheceu André na época em que a fábrica só trabalhava por encomenda. Quando Beto soube que André abriria uma loja física perto da casa dele, passou quatro meses “sondando” o amigo chocolatier até descolar um emprego. Segundo ele, o serviço na Magian é muito mais tranquilo do que o caos no backstage dos restaurantes — exceto nos sábados, quando vem um pessoal meio estranho. Mal ele termina de falar e uma Hilux cor-de-musgo estaciona em frente à loja tocando a valsa Danúbio Azul em volume máximo.

– Sábado é o dia — Beto repetiu.

Sem pedir a degustação, o senhorzinho da Hilux já chega sabendo quais chocolates comprar. Assim como ele, a Magian recebe vários clientes que já são da casa, como a nutricionista loira que andava de bicicleta na terça à noite e conversou conosco sobre chocolate vegano até a loja fechar. Beto conta sobre um cliente apelidado de Coelho, que sempre chega religiosamente às 18:13 dos sábados.

– Uma vez, ele não veio e a gente ficou preocupado, pensando que ele tava doente. Eu e a Suélen até pensamos em ligar.

Prateleira com as barras de chocolate na Magian Cacao | Foto: Vanessa Aranovich

Talvez por conta do clima de beira do Guaíba, nesse lugar mais afastado na zona sul onde o pessoal vai para passear e admirar a vista, a maioria dos clientes já chega lá de bom humor. Suélen concorda. Assim como Beto, ela já trabalhou em outros estabelecimentos gastronômicos e diz que nas praças de alimentação de shoppings os clientes são mais rudes, pois as filas são grandes e eles já vêm com fome. Gilberto conta sobre quando trabalhava num restaurante e um cliente bêbado esqueceu de pagar a conta. Beto pediu educadamente para ele pagar pelos drinques e em troca, o homem meteu a mão na carteira e atirou um punhado de notas na cara do garçom, xingando-o.

Apesar do ar descontraído da Magian, Gilberto ainda guarda alguns traumas herdados do estresse do trabalho na cozinha, quando nunca tinha tempo para descansar e comer sua própria refeição. Nos dias que sobravam cinco minutinhos para almoçar, tinha que ser assim, agachado num canto contra a parede, prato na mão, sem cadeira nem nada, maratonando a comida sem mal ter tempo de mastigar.

Reparo que, de vez em quando, Suélen pega um quadradinho dos chocolates da degustação e oferece outro para mim, mas, apesar de aceitar de vez em quando, Gilberto quase nunca abre a caixinha ele mesmo. Beto admite que, nos primeiros meses na Magian, ele se empanturrava de doce todos os dias, mas começou a se preocupar com a saúde. Pergunto qual o chocolate preferido dele, e Beto responde que depende da hora do dia: os amargos são bons pra degustar lentamente, mas tem horas que só um bem doce pode te salvar.

Quando Suélen avisa que subiria para fazer uma pausa para o almoço, eu pergunto a Beto se ele não quer que eu volte mais tarde para continuar a entrevista depois. Ele diz que não precisa, que eu posso seguir em frente. Suélen ri:

– Esse aí? Pode passar 12 horas trabalhando sem comer e nem reclama.

A saga do tour da Bergamota

Durante o Roteiro de Inverno Bergamota, turistas participam da degustação de chocolates | Foto: Vanessa Aranovich

Trinta e dois turistas caminham enfileiradinhos pela calçada da orla no sábado de manhã. A Magian Cacao é a última parada do tour do Roteiro de Inverno Bergamota, organizado pela Viva Mais POA. Os participantes do passeio têm a oportunidade de conhecer diversos pontos da cidade onde a fruta é cultivada ou usada na preparação de pratos gastronômicos: inclusive, com uma visita em primeira mão à fantástica fábrica de chocolates porto-alegrense.

Para participar do evento, a Magian Cacao se desdobrou para criar um sabor novo de chocolate de bergamota. Esta é a segunda vez que Beto guia o passeio na fábrica. Ele conduz o grupo por uma porta lateral da loja. Subimos as escadas até um terraço e chegamos numa casa de um tom rosa pálido sóbrio, a qual contornamos pelo cantinho até o pátio de trás, um espaço arborizado cuja única bagunça é composta pelos vestígios das brincadeiras dos filhos de André: uma bola de praia murcha, uma bicicleta, um patinete. Por fim, nos fundos, está a fábrica, outra casinha do mesmo tom rosado, com grandes janelas pelas quais se pode ver as maquinarias utilizadas na produção — lá dentro, a tímida chocolatier Nicole, única funcionária trabalhando no momento, nos dá um oi.

Atravessando a fábrica, Beto nos apresenta as enormes máquinas onde as amêndoas de cacau são torradas e moídas no início da produção, mas o olhar de cada um dos turistas está fixo numa saca de grãos ainda crus. Tal como Amélies Poulains hiperativas, eles só param quietos quando o vendedor os deixa afundar as mãos entre as sementes marrons e sentir o aroma.

Gilberto segura as sementes de cacau utilizadas na produção do chocolate | Foto: Vanessa Aranovich

Uma mulher pergunta se eles podiam provar os grãos de cacau e Beto permite. Os grãos são amargos, um pouco semelhantes aos de café, mas há um quê de mágico quando surge o insight de que o chocolate que eu comi a vida toda vem de uma fruta. Para Gilberto, a comida tem uma memória afetiva, uma lembrança de casa de avô.

Depois de moídos, os grãos de cacau são misturados aos outros ingredientes e levados para uma máquina onde são batidos por cerca de quatro dias: quanto mais tempo girando, mais cremoso fica o chocolate no final. Depois, o chocolate sofre um choque térmico, para que a gordura não se separe do resto da massa, então é dosado e colocado nas formas, que são levadas à geladeira e rotuladas.

Beto mostra a máquina que torra as sementes de cacau utilizadas no chocolate | Foto: Vanessa Aranovich

O grupo volta à loja e aí começa a parte interessante: a degustação. O ritual é o mesmo de sempre, dos mais doces aos mais amargos, para acostumar o paladar do cliente. A diferença é que, desta vez, ele é feito em escala industrial. Gilberto e Suélen têm a missão de atender 32 pessoas ao mesmo tempo. Eu permaneço num canto, ao lado da guia turística, enquanto a dupla se desdobra em mil para cumprir as exigências das dezenas de vozes que se sobrepõem numa cacofonia esquizofrênica: “Pode me passar uma ao leite 45%?”, “Quanto custa?”, “Aquele ali é o chocolate premiado?”, “Aceita cartão do Banri?”. Um senhor puxa conversa comigo sobre o chocolate de cupuaçu, uma menina de três anos corre por baixo da mesa enquanto a mãe grita seu nome, um casal reclama da demora da fila, como se Beto e Suélen pudessem criar clones de si mesmos para atender todo mundo junto. Das 80 barras de chocolate de bergamota produzidas por Nicole no dia anterior, 53 são vendidas só durante o passeio. Quando o grupo sai, já passa do meio-dia.

Os dois vendedores parecem ter corrido uma maratona. Depois de um silêncio desconfortável, pergunto se Beto quer que eu comece as perguntas.

– Agora, tudo o que quero é uma xícara de chá de cacau.

Todo vendedor tem um pouco de ator

Por volta das dezoito horas de uma terça-feira, uma senhora de meia-idade entra pela porta da Magian Cacao batendo os pés com força, com os punhos cerrados e uma carranca igual a da diretora do colégio no filme Matilda.

– Vocês têm o chocolate branco de doce de leite com flor de sal? — ela demanda num tom militar que soa meio cômico naquele contexto. — Das últimas três vezes que eu vim, vocês não tinham.

No momento, a loja estava vazia e eu ajudava Suélen a rotular as embalagens de chocolate 80% cacau enquanto conversava com ela e Gilberto sobre família, estudos e relacionamentos. Nós duas paralisamos no ato. Beto respira fundo, balança a cabeça para nós, então junta as mãos e se vira para a mulher com um sorrisão no rosto, baixando o santo do palhaço.

– Se isso for fazer o seu dia mais feliz, nós temos sim!

A senhora solta o ar pela boca e decompõe a carranca como se o peso do mundo evaporasse de seus ombros.

– Graças a Deus. Eu esperei por isso a semana toda.

Chocolate de Doce de Leite com Flor de Sal | Foto: Vanessa Aranovich

Eu sei como isso parece uma cena de comercial barato para afirmar que o chocolate melhora a vida das pessoas, mas juro que não é história de pescador. Clientes como essa senhora são raros na Magian, mas é preciso jogo de cintura para manter a gentileza numa situação assim: é quase como atuar um personagem.

– Minha namorada diz que eu me daria bem no teatro — Beto admite. — Na verdade, todas as minhas ex diziam a mesma coisa, mas eu nunca tive vontade.

Apesar de não seguir carreira de ator, nesta semana, Beto tem uma boa notícia. Ele conseguiu uma vaga como voluntário na ONG Doutorzinhos, que visita hospitais vestidos de palhaço para alegrar o dia das crianças internadas. Mas ser palhaço é uma brincadeira séria: o processo de seleção da ONG é mais rígido do que parece, com avaliação de currículo, entrevista e tudo, quase uma vaga de emprego. Agora que entrou no time dos Doutorzinhos, Beto precisa frequentar algumas semanas de aulas preparatórias antes de vestir o nariz vermelho.

Apesar da vibe brincalhona, Gilberto garante que é bem menos extrovertido fora do trabalho. Segundo ele, quem passa na rua até fica com medo da sua cara fechada por baixo da barba preta, as mãos nos bolsos e as tatuagens no braço. Acho difícil de acreditar, principalmente depois dele puxar o celular para mostrar os vídeos brincando com seus cachorrinhos, o Nick e a Nina, que vivem fazendo fuzuê na casa onde Beto mora com a namorada Carol, de 45 anos. Apaixonada por bichos, Carol deixa os cachorros dormirem na mesma cama do casal. Por conta disso, Beto às vezes prefere dormir no sofá da sala, não por causa de briga nem nada, mas porque os doguinhos não o deixam descansar. A Nina, que é mais velhinha e um tanto pesada, não consegue subir na cama sozinha.

– A Nina fica na beira da cama ganindo e fazendo assim com as patinhas, com cara de cãozinho pidão, e não para até tu levantar ela. É bem assim, ó. Finge que a mesa é o colchão e coloca a cabeça no travesseiro.

Eu hesito, mas desisto da formalidade e deito a cabeça na madeira. Beto se agacha ao lado da mesa, levanta a cabeça por cima da borda, só com os olhinhos para fora, e começa a dar batidinhas rápidas na mesa, imitando Nina.

Gilberto se mudou para a casa de Carol há dois anos, duas semanas depois de eles começarem a namorar. Antes dela, ele já foi casado com outra mulher, com quem teve um filho, Theo, de sete anos. Divorciado, Beto passeia com Theo todos os fins de semana. Ele garante que tenta dar a Theo todas as oportunidades que o seu pai nunca lhe deu.

– Meu pai era mágico, sabia? Ele teve dois filhos e então… — estalou os dedos — sumiu.

Talvez por conta do trauma do abandono, Beto não gosta de ficar sozinho e, por isso, nunca conseguiu ficar solteiro por muito tempo.

– Se ela diz que vai sair pra comprar um cigarro, eu já falo assim: nãaaao, por favor, não me abandona!! — ele brinca.

É só na minha última visita à Magian Cacao que conheço o dono da loja pessoalmente. André desce apressado as escadas que vão do pátio de sua casa até a loja. A aparência dele é igual a do vídeo introdutório, com a diferença de que não está de boné: um homem de quarenta e poucos, mas com cara de gurizão, roupas despojadas e chinelos. Cumprimenta nós três com um sorrisão, então Beto e Suelen explicam o que eu faço ali. Eu já tinha conversado com André por telefone para marcar as entrevistas, mas ele estava viajando para Santa Catarina. André se desculpa, mas diz que já está de saída. Meia hora depois, Suélen franze a testa e sai para a calçada da loja. Ela aponta para o Guaíba.

– Aquele ali não é o André?

Eu e Beto saímos e nos juntamos a ela. Beto cerra os olhos. No meio lago, há um homem de pé numa prancha de stand up paddle.

– Bah, pior que é ele mesmo. — Beto ri.

Vista do Guaíba em frente a Magian Cacao | Foto: Vanessa Aranovich

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