Perfis

Muito Mais que a Comida do Prato

Mariana Marsiaj
Cultura da Mesa
Published in
6 min readAug 29, 2023

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Vera Bosa recebe o presidente Lula no Hospital de Clínicas | arquivo pessoal

Vera Lúcia Bosa não para um segundo. Com o cabelo bem preso, por protocolo de atendimento, ela caminha rapidamente pelos corredores do Hospital de Clínicas, ou pelo menos tenta. Não tem um conhecido que não pare para cumprimentá-la. “Nossa Miss Simpatia”, comenta uma colega. Ela responde a todos com um sorriso caloroso, trocando algumas palavras sobre trabalho ou uma fofoca rápida com os mais íntimos.

O crachá de coordenadora do curso de Nutrição e Dietética da UFRGS vai preso no jaleco branco por um grampo de arco-íris, em parte porque é uma espécie de símbolo da ala pediátrica, mas também porque faz questão de mostrar que não tem medo de se posicionar.

Se em meio aos colegas é brincalhona e sorridente, assume um tom mais sério diante dos alunos. Apesar disso, ainda insiste em tirar uma foto do grupo junto ao arco-íris pintado na entrada da ala pediátrica. Talvez como uma forma de manter um tom leve frente à realidade que a maioria está prestes a conhecer.

Nem todo mundo come do mesmo jeito

No décimo andar do Bloco A do Hospital de Clínicas, na ala pediátrica, ficam alguns dos pacientes do Prica, o Programa de Reabilitação Intestinal de Crianças e Adolescentes. Pacientes que perderam ou nasceram sem uma parte do intestino precisam passar por um longo processo de adaptação até que possam se alimentar novamente. Nesse meio tempo, recebem os nutrientes diretamente no sangue, via sonda parenteral. “Dependendo de quando começaram a alimentação por sonda, muitos não entendem nem que a boca existe para comer”, explica. “Se perdem a fase de introdução alimentar, em algum momento eles precisam aprender a comer.”

A especialidade de Vera é a nutrição infantil e gestacional, mas não esconde que as crianças são suas preferidas. “Com as crianças o clima é muito mais leve, mesmo nesses casos de internação, seguem brincando, papeando… Os adultos não lidam bem com a doença.” E, acompanhando de perto, é difícil não chegar à mesma conclusão.

Na sala que entramos estão seis berços, cada um com grades altas de metal e uma cama improvisada ao lado, onde dormem as mães dos bebês internados. Praticamente confinadas ao hospital pela condição dos filhos, algumas mães decoram seus espaços, colocando brinquedos em estantes improvisadas ou colando ilustrações de personagens de desenhos infantis nas paredes de azulejo.

O silêncio da sala é ocasionalmente interrompido pelo choro de um dos bebês, mas a tranquilidade deles frente aos tubos e fios presos em seus corpinhos me surpreende. Ao pé de cada berço, uma prancheta leva o nome da criança. Na condição de observadora, Vera deixa os alunos tomarem as rédeas, mas não demora a tomar parte da conversa, quando percebe que falta confiança na abordagem.

Gael tem um ano e três meses e passou quase toda a sua vida dependente da sonda. A mãe tenta dar um pouco de papinha de banana para o menino, para que os estudantes e a professora possam acompanhar o momento. Ele não aceita, mas Vera não perde a oportunidade de se aprofundar no quadro. Ela faz perguntas clínicas, indagando sobre as últimas refeições do menino e a aceitação do novo fluido nutritivo, mas também quer saber sobre a mãe, de onde vieram (Espírito Santo) e se alguém da família veio junto (não).

Já no corredor, cercada pelos alunos, Vera ressalta a importância de conhecer a família e de criar um vínculo. O contexto familiar é muito importante quando se fala em alimentação, mesmo em um ambiente regulado como o hospital.

Das raízes à mesa

Da relação entre alimentação e família ela entende bem. Filha de agricultores, as primeiras lições sobre nutrição vieram muito antes da faculdade. Grande parte das refeições da família vinham da lavoura, “cresci sem essas frescuras, mesmo sendo a mais nova, o que tinha para comer era o que estava no prato.”

Os irmãos, agora assentados do MST, continuaram ligados à terra, enquanto Vera encontrou outras formas de honrar suas origens. Ela participou de um longo trabalho para a valorização da agricultura familiar, primeiro por meio dos Cecanes — Centros Colaboradores em Alimentação e Nutrição Escolar — e, recentemente, no Hospital de Clínicas.

Convencer escolas a trocar os vistosos produtos da Ceasa pelos produtos menos padronizados — porém com menos agrotóxicos e desperdícios — da agricultura familiar não foi um trabalho fácil. Mas a professora não se deixa intimidar pela primeira dificuldade, nem pela segunda, ou pela terceira. Foi com essa mesma atitude que conseguiu fazer a mudança também no refeitório do Hospital de Clínicas, agora majoritariamente abastecido por pequenos produtores.

Mas essa vontade de mudar, embora recompensadora, também traz consequências: ela acaba agregando responsabilidades demais, desde projetos de extensão até a coordenação do Curso de Nutrição da UFRGS, que assumiu logo depois de conseguir deixar o posto de Chefe de Departamento de Nutrição do hospital. “Meu psiquiatra não acreditou”, conta entre risos. “Tanto trabalho pra eu largar a chefia aqui no Clínicas pra eu assumir a coordenação do curso em seguida. Mas não adianta, se ninguém quer eu acabo encarando. Não tenho paciência pra esse pessoal que fala, fala, e não faz nada.”

E se ninguém faz, então ela assume mesmo. Dividida entre ser coordenadora de curso, professora e orientadora de diversos projetos de extensão, o Whatsapp não para um segundo. Enquanto caminha entre uma ala e outra do hospital, responde mensagens de colegas, questiona sobre a situação de uma bolsa de pesquisa e ainda tenta resolver algumas questões administrativas relacionadas ao Banco de Leite.

Todo esse envolvimento faz com que ela ainda ocupe a sala da chefia com as atuais chefes do serviço de coordenação. “Eu até queria sair daqui de uma vez e voltar pra sala normal das professoras. Aqui eu acabo me envolvendo pra ajudar e acabo trabalhando muito mais”, ri.

Para alguém que diz que prefere “passar longe” do trabalho no refeitório, ela já causou impactos extremamente significativos em toda a operação.

Existe vida fora do hospital

A vida de Vera não se resume apenas ao Hospital de Clínicas, ainda que passe 50 horas por semana lá (ou até mais em alguns casos). Desde que parou de trabalhar aos finais de semana, tem conseguido aproveitar muito mais seu tempo livre.

As programações mais caseiras são as preferidas, mas a nutricionista também é fã de conhecer novos lugares, principalmente se a comida for boa. Ela e a esposa Ivana, com quem é casada há 22 anos, se mudaram de apartamento em junho e já conhecem todos os restaurantes e cafés do novo bairro.

Apesar de adorar trabalhar com crianças, ênfase em trabalhar: filhos, só de quatro patas. O casal tem duas cachorrinhas (Frida e Amy) e estão muito satisfeitas com sua pequena família, embora Vera admita que não falte quem pergunte sobre o assunto.

“Quando tu é mulher parece que é uma obrigatoriedade ser mãe. Aí vem os comentários sobre a idade, e que tem que congelar os óvulos, se não vai se arrepender, e se eu quiser depois… Já cansei desse tipo de pergunta, sabe? Claro que a gente conversou muito sobre isso todos esses anos, mas não faz falta. Se no futuro a gente quiser, tem tanta criança nesse mundo que precisa de família, mas no momento estamos bem assim.”

Nutrindo corpo e mente

E se tem algo que não passa despercebido é seu posicionamento. Como a própria Vera define, ela é “extremamente feminista e notoriamente de esquerda.” Mesmo em meio às políticas que regem a universidade e o hospital, ela não tem medo de dizer o que pensa. “As pessoas têm muito medo de serem políticas hoje em dia, mas eu sou bem presente quanto a isso”, explica. “Se é caso de saúde e bem-estar público eu sou muito vocal, principalmente em sala de aula.”

Quando contou sobre ter recebido o presidente Lula durante a visita presidencial ao Hospital de Clínicas em junho, só faltava pular de emoção. Foram muitos os candidatos para fazer a recepção do presidente, decidida em um sorteio. “Nunca foi sorteada pra ganhar nem ovo podre, nem acreditei. Uns amigos até disseram que eu manipulei o sorteio pra conseguir”, brinca. “Mas todo mundo viu, chamaram meu nome na frente de todo mundo.”

Principalmente dentro do contexto da universidade pública, ela entende que existe um dever de devolver esse investimento para a sociedade. Como professora, seu papel não é apenas contribuir para a formação acadêmica dos alunos, mas para sua formação como cidadãos, ensinando sobre a nutrição do corpo e também nutrindo a mente.

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Mariana Marsiaj
Cultura da Mesa

Estudante de Jornalismo da UFRGS, redatora de NFL no The Playoffs BR.