Crônicas

Naquele sábado de feira

Clara Aguiar
Cultura da Mesa
Published in
3 min readAug 29, 2023

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À minha frente, havia pelo menos uma dezena de outros que, assim como eu, também aguardavam para retirar os seus pedidos em meio a confusão da feira — caracterizada pelo barulho de cana sendo moída na máquina, do chiado de fritura e dos bordões dos feirantes anunciando os seus produtos | Foto: Clara Aguiar

Comer pastel e tomar caldo de cana em uma feira de bairro me parece ser um clássico hábito dos porto-alegrenses. Nos finais de semana, barracas de caixote e lona que exibem o colorido das frutas, legumes e verduras se espalham pelas travessas da Capital, transformando-se em verdadeiros pontos turísticos. Por volta das quatro e meia da tarde de um típico sábado de feira, eu estava em uma fila que se formava ao redor da tenda Lu e Lu Pastéis, parada obrigatória pra quem frequenta a Feira Modelo, na rua Irmão José Otão, localizada entre a João Telles e a Santo Antônio, no Bom Fim.

À minha frente, havia pelo menos uma dezena de outros que, assim como eu, também aguardavam para retirar os seus pedidos em meio a confusão da feira — caracterizada pelo barulho de cana sendo moída na máquina, do chiado de fritura e dos bordões dos feirantes anunciando os seus produtos. Enquanto eu esperava chegar a minha vez de ser atendida, via o vaivém dos fregueses imersos no estreito corredor entre as barracas de cores contagiantes. Alguns degustavam sabores, outros preenchiam suas ecobags com a abundância ali ofertada.

Entre todas as pessoas, comecei a observar uma senhora. Seu caminhar era curvado, com a cabeça sempre para baixo. Ela vestia um vestido longo e um lenço cor terra que cobria seu fino cabelo grisalho. Estava sozinha e carregava um carrinho de feira de metal, mas nele não havia laranjas, tomates, ovos, tampouco temperos frescos. No lugar, levava um felpudo cobertor cinza de aparência gasta, um par de tênis e uma sacola de supermercado fechada com um nó. Todos os seus pertences, imaginei. Percebi, então, que a senhora vinha em direção à fila em que eu estava.

— Moço, tu compra algo pra mim comer?

A senhora pediu em tom de voz baixo quase inaudível para um jovem que era o primeiro da fila. Ele balançou negativamente a cabeça, sem esboçar qualquer resposta em palavras. Com o olhar cabisbaixo de quem humildemente pede pelo mínimo de dignidade, ela se dirigiu à segunda pessoa da fila e acrescentou:

— Por favor, eu ainda não comi nada hoje.

Mas a indiferença se repetiu nesta e nas vezes seguintes.

Naquele momento, lembrei de Carolina Maria de Jesus e dos trechos que escreveu em seu diário: “Quem inventou a fome são os que comem” e que “é horrível ter só ar dentro do estômago”.

Quando apenas três pessoas da fila nos distanciavam, enfim um casal se prontificou a ajudar. Faltavam poucas horas para o sol se pôr e, segundo ela, aquela seria a sua primeira refeição do dia. E talvez a única.

A cena não durou mais do que dois minutos, mas quem tem fome tem pressa, diz o lema. Então por que eu, que a avistei antes que os demais, prolonguei o seu sofrimento? Eu sabia que precisava fazer algo, mas me limitei a posição de observadora. Estava eu colocando à prova a humanidade que ainda resta no mundo? Teria eu ajudado se não tivessem feito antes de mim? Pensei em tantas outras vezes que fui abordada pelas ruas de Porto Alegre e neguei assistência com a justificativa de que não tinha como ajudar, sendo que sim, eu tinha.

— Hoje, eu não tenho….

— Não saio com dinheiro…

— Talvez na próxima…

E me senti cúmplice da miséria.

Como em outras grandes cidades brasileiras, há uma fronteira que divide Porto Alegre ao meio. De um lado, vivem aqueles que possuem o direito à alimentação e a possibilidade de negar a existência de famintos; do outro, os que (sobre)vivem com a dor crônica da fome.

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