Crônicas

O lugar do vô

Lucas Vidal
Cultura da Mesa
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4 min readAug 29, 2023

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Tradições familiares passam de geração em geração | Foto: Lucas Vidal

6h30. Acordo com o barulho da porta de correr. O som de passos atravessa a parede fina que separa o meu quarto da sala. Ouço a água corrente que sai da torneira e o rangido do armário da cozinha. Aos poucos, o aroma fresco de café me motiva a sair da cama. Abro a porta e vejo meu vô sentado à mesa aproveitando os primeiros raios de sol que cruzam a janela. Ele tinha esse hábito de acordar cedo, organizar o café da manhã e ler as notícias enquanto todos dormiam. Era sua preparação para o novo dia. Apesar de seus 80 anos, não suportava a ideia de desocupação. Como uma espécie de faz-tudo, era comum encontrá-lo com ferramentas em mãos, pronto para consertar o que estivesse estragado pela casa.

Os vizinhos o chamavam de “Seu Antônio”. Sempre apreciei o tratamento cortês, pois simbolizava a deferência que as pessoas tinham por ele. Para a família, apenas “vô” bastava para expressar nossa admiração. Ele era um velho jocoso, bem humorado e cheio de energia, mas com uma leve impaciência e um semblante rabugento devido à bochecha de bulldog e as linhas de expressão que só a idade provoca. Me divertia o desacordo entre a personalidade e seu rosto. Comentários do tipo “teu vô parece ser brabo” eram comuns depois de uma primeira vista. Entendo o motivo. Passei a morar com os meus avós em 15 de maio de 2020. Além da pandemia, um dos motivos era a saúde do Seu Antônio, que tratava um edema pulmonar — acúmulo de líquido nos pulmões. Enquanto alguns cortavam o cabelo, faziam pães ou assistiam lives, eu dividia o teto, a mesa e boa parte dos programas de televisão com meu vô. No período em que todos os dias pareciam o mesmo, o adoecimento dele me lembrava da passagem do tempo. Aquele Seu Antônio, que era advertido com frequência por subir no telhado de casa, aos poucos se transformava no vô inerte e frágil em sua poltrona. Em menos de um ano, presenciei a caixa de ferramentas dar lugar a um kit de oxigênio portátil.

Conforme as semanas passavam, acordar cedo não fazia mais tanto sentido para ele, já que seriam horas a mais de repouso, privado de qualquer atividade ao longo do dia. E sem perceber, herdei a cultura da mesa do meu vô. Todos os dias, eu acordava às 6h30, abria a porta de correr do meu quarto e me dirigia até a cozinha, onde fervia a água do café. Depois de pronto, sentava à mesa para esperar a casa se encher de vida. Neste instante o prazer dessa rotina fazia sentido. Era o único momento para apreciar a ausência dos sons e das pessoas. Por muito tempo, encarei o preparo do café da manhã como uma espécie de ritual, no qual eu me unia ao ócio e ao excesso de tranquilidade das primeiras horas do dia. E então a porta abrindo anunciava que mais alguém vagava pela casa. Apesar de não acordar no horário habitual, o vô ainda começava o dia antes dos outros e, ao se dirigir à mesa, escolhia a cadeira de sempre.

O lugar dele na mesa era o patrimônio cultural da família. Sentava de frente para a televisão para não perder uma cena da novela. Além disso, conseguia trocar de canal com o controle remoto enquanto fazia suas refeições — o equivalente ao camarote de um espetáculo. Seus bisnetos eram os únicos que podiam usurpar seu trono. Às vezes algum atrevido sentava em sua cadeira, mas não durava muito tempo. Logo alguém dizia “levanta daí, esse é o lugar do vô”, e bastava para recolher seu prato. Lembro de uma manhã em que ele sentou à mesa, pegou uma xícara de café e me contou sua trajetória de vida. Mais pessoas se reuniam para ouvir a epopeia do vô à medida que acordavam. Em uma espécie de despedida, ele narrava com fervor as dores e as delícias que viveu ao longo dos 80 anos, marcando seu legado na mesa e em cada membro da família.

Dias após sua morte, me lembrei de um texto do Carpinejar sobre inversão de papéis no envelhecimento, em que os filhos se tornam responsáveis pelos cuidados e pelo apoio aos pais idosos. Sinto que vivi o mesmo processo em relação ao Seu Antônio. Acordar cedo e preparar o café para a família era minha forma de cuidado. Mais tarde, percebi que o prazer dessa rotina não se reduzia a apreciar o silêncio da casa no início do dia. Através desse gesto de afeto, eu me conectava a ele e mantinha sua lembrança pulsando em mim. Hoje entendo que não preciso de sua presença física para senti-lo por perto. Ainda assim, deixo vago o lugar do vô.

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Lucas Vidal
Cultura da Mesa

Estudante de Jornalismo na UFRGS. Fascinado pela rua e suas diferentes histórias. Também escrevo tweets. Gay. Ele/dele.