Rose tem os olhos voltados para a rua

Ângelo M. Rockenbach
Cultura da Mesa
Published in
6 min readAug 29, 2023
Rose no almoço de comemoração de sete anos de PF das Ruas | Foto: Ângelo M. Rockenbach

Enquanto descansa em uma cadeira próxima à porta, Rose tem os olhos voltados para a rua. Parece procurar por algo. Ela está na sede do Prato Feito das Ruas, organização voluntária que presta serviços à população de rua de Porto Alegre. A sala, localizada na Rua Sarmento Leite, é pequena e possui quatro geladeiras e três freezers enfileirados, prateleiras repletas de sacos de feijão e arroz e um depósito em que as panelas ficam guardadas. Na entrada, uma coleção de quadros fotográficos homenageiam uma das fundadoras do grupo, falecida no ano passado vítima de câncer.

De repente, uma mulher passa e Rose pergunta “tu quer um bolo e um Nescau?”. Ao receber o ‘sim’, Rose entrega um copo de achocolatado e um pedaço de bolo que estavam na bandeja à sua frente.

Líder do PF das Ruas, Rose Andrea de Paz Carvalho aprendeu na infância a se importar com os menos favorecidos. Moradora do Bairro da Polícia, na zona leste da capital gaúcha, acostumou-se com a presença da fome nas redondezas de casa: “Batiam na porta e pediam o pão velho”. Nessas ocasiões, os pais não negavam ajuda para quem necessitava e, se preciso, tiravam até mesmo dos próprios filhos.

O mundo das ONGs foi um caminho natural para quem aprendeu cedo a ajudar os outros. Foram vários os projetos que Rose fez parte. Sua trajetória em ONGs, contudo, deu uma guinada em 2016, quando fundou o PF das Ruas com outras quatro colegas de voluntariado. O carro-chefe do projeto era — e segue sendo — o almoço de sábado, em que os integrantes do grupo preparam e entregam marmitas no Viaduto do Brooklyn, no Centro Histórico de Porto Alegre. Em sua estreia, no dia 27 de agosto de 2016, as cinco voluntárias entregaram 50 marmitas. Sete anos depois, o grupo conta com 153 voluntários e entrega em média 1,5 mil marmitas por sábado. Na ação especial do último Natal, foram 2,4 mil galetos.

Com o crescimento da ONG, Rose passou a dar dedicação exclusiva ao projeto. Após atuar 19 de seus 49 anos como analista de crédito de uma empresa, ela agora passa seus dias definindo os rumos do PF. Planeja as logísticas, os eventos realizados pelo grupo, faz acordos com outras entidades. Do antigo emprego, não carrega saudade, apenas as dores na coluna que afetam a sua mobilidade. Antes do problema se agravar, ela e o marido, Fábio, tinham a dança de salão como hobby, o que se tornou impraticável. Ela precisa de uma cirurgia, mas agora, sem o plano de saúde da antiga empresa, terá de arcar com os custos com o próprio bolso.

Almoços de sábados

A maratona de sábado começa às sete e meia da manhã e se estende até às duas da tarde. Inicia na cozinha de casa e finaliza nas ruas de Porto Alegre, com a entrega das marmitas excedentes. No meio disso, Rose é responsável pela coordenação do evento.

O horário de pico dos almoços acontece perto das 11 horas da manhã, quando cerca de 25 pessoas aguardam na fila. Do outro lado da fita zebrada, na cozinha improvisada do viaduto, os voluntários se dividem entre as tarefas de montar e lacrar as marmitas, servir os copos de água, organizar a fila e esquentar a comida nos fogões. Neste momento, Rose está servindo macarrão em uma panela. Ela veste roupas largas pretas e um avental da mesma cor. Tem o cabelo preso em um lenço, que serve como touca para segurar os fios de cabelo. Perto dela, uma mesa contém, pelo menos, mil marmitas lacradas, todas com um “bom almoço” escrito à mão.

À medida que a comida vai ficando pronta, o cheiro se levanta, e o público chega. São pessoas jovens e idosas, sozinhas, acompanhadas ou até mesmo trazendo a família. O perfil social também não é tão uniforme quanto se imagina: Rose conta que na pandemia chegou a entregar comida a professores universitários demitidos. Apesar das diferenças, a motivação que os leva até ali é a mesma: a fome. Debaixo do concreto, todos compartilham a mesma refeição.

O almoço de sábado, contudo, não se restringe à comida. Grupos de voluntários realizam outros tipos de atividades. No mesmo horário em que a fila das marmitas cresce, outras dez pessoas aguardam na fila dos Barbeiros Guerreiros, que usam suas máquinas para fazer a barba e cortar os cabelos das pessoas em situação de vulnerabilidade social. Outro grupo formado por quatro mulheres vestidas de palhaço levanta o astral da galera, cantando músicas e interagindo com as pessoas à volta. Em alguns sábados, o PF ainda une forças com o projeto Banho Solidário, da ONG Centro Social de Rua, para oferecer higiene através de uma ducha móvel.

Nesses momentos de contato direto com a população de rua, Rose testemunha e participa das histórias dessas pessoas. Duas a marcaram de forma especial. Uma delas foi com uma amiga que fez nos eventos do PF, que se vira obrigada a “dar” os filhos para o Conselho Tutelar. Quando soube o que a amiga havia feito, Rose deu um esporro, disse que jamais deveria ter entregado os próprios filhos. Passou a semana arrependida, pois passou a imaginar a culpa que a mulher deveria estar sentindo. No sábado seguinte prometeu que ajudaria a recuperar a guarda das crianças e, através de campanhas e doações, Rose ajudou a amiga a encontrar emprego, uma casa e ter as crianças de volta.

Em outro momento, Rose e outros voluntários percorriam o centro de Porto Alegre entregando as marmitas que sobraram quando encontraram um homem deitado na rua. Ao receber a marmita do grupo, o homem se levantou assustado e perguntou ao voluntário: “tu é Jesus? Porque eu acabei de pedir a Jesus que me ajudasse”.

O lugar de Rose

No início deste ano, uma polêmica movimentou o PF das Ruas e promoveu rebuliço na cidade. Com o projeto de conceder licitações para empresas privadas se instalarem em viadutos, a prefeitura de Porto Alegre entrou em rota de colisão com a ONG. A ideia era conceder a área do Viaduto do Brooklyn para a vencedora da licitação e realocar o PF. Rose compareceu a uma reunião com o prefeito Sebastião Melo (MDB) para discutir o assunto: “Ele queria oferecer um lugar fora do centro”, conta. Ela bateu o pé. Preferiu seguir pagando o aluguel da sede a ter que se mudar, afinal de contas, é no centro onde se encontra o maior número de moradores de rua. Hoje, o PF segue no mesmo endereço, a diferença é que agora divide o espaço do viaduto com o novo vizinho.

Apesar de reconhecer o seu capital político, Rose rechaça a ideia de trilhar carreira na área. Não gosta que seu trabalho filantrópico resulte em ganhos pessoais. Para ela, quando outros interesses interferem nas causas sociais, a causa desvirtua-se. Ela faz uma analogia com uma charge que viu nas redes outro dia, em que uma pessoa tirava uma selfie enquanto entregava uma doação a uma pessoa carente. “Pra mim, é exatamente isso. Quem realiza trabalho voluntário não tem que aparecer”.

A espiritualidade é outro traço presente em sua vida. Ela frequenta o centro espírita desde os quatro anos e as sessões desde os 16. Para ela, a ONG faz parte de um plano espiritual, é algo que transcende a existência de qualquer um, e assim Rose é só um instrumento, uma ferramenta para praticar o que já estava planejado. Mais do que isso, Rose se sente desconfortável quando a parabenizam pelo PF. Não é dona de nada, argumenta. Não gosta tampouco de aparecer em matérias de jornais ou na TV, sente que é um espaço que não lhe pertence.

Enquanto conta tudo isso, Rose tem os olhos voltados para a rua. Segue procurando quem possa se interessar pelo copo de achocolatado e o pedaço de bolo. Acaba perdendo o raciocínio uma ou outra vez. Sua atenção está voltada para o que de fato importa para ela: ajudar quem precisa.

Nisso, mais um homem passa e aceita o bolo. No fim, comenta que gosta muito de doce, e deixa implícito que não tem comido tanto doce quanto gostaria. Rose oferece um segundo pedaço.

Mesmo que faça o máximo para evitar, Rose é o rosto do PF das Ruas. E não fosse pelas suas ações, o plano espiritual do projeto não estaria concretizado na Terra. Vestindo seu avental com o logo da ONG, ela tem muito claro para si mesma que seu lugar é na cozinha improvisada do PF das Ruas. Aos sábados, no Viaduto do Brooklyn, é lá onde quer estar.

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