CRÔNICAS

Tudo menos chocolate

Caroline Guarnieri
Cultura da Mesa
Published in
4 min readAug 29, 2023

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Os sabores que carregam memórias | Foto: Caroline Guarnieri

Eu nunca gostei de sorvete de chocolate.

De chocolate, sim, com certeza. De sorvete, também. De sorvete com coisas de chocolate, aí sim. Mas, por algum motivo, eu nunca consegui gostar do sorvete-de-chocolate em si.

Talvez seja por causa dessa peculiaridade que eu sempre preferi ir em sorveterias com buffets lotados de sabores diferentes, toppings e caldas. Talvez esses lugares saciavam a minha vontade de encontrar combinações inusitadas de leite, açúcar e afeto.

Eu cresci em Canoas, em um bairro que carecia de lugares assim. Aos 11 anos, comecei a estudar em Porto Alegre, em frente ao Parque da Redenção. Meus colegas, em sua maioria porto-alegrenses, já tinham seus lugares preferidos na cidade. Eu, porém, ainda procurava cantinhos para poder chamar de casa.

Para uma criança com passagem diária na capital, não precisa de muito para configurar uma aventura. Os 700m de caminhada pela José Bonifácio até a Felipe Camarão que separavam eu e meus amigos das doces delícias da sorveteria Cronks, normalmente percorridos em cerca de 10 minutos, passavam voando pelos nossos pés nas tardes depois da aula.

Potinhos eram enchidos rapidamente de confeitos coloridos por baixinhos que carregavam mochilas maiores que as próprias costas. A gente chamava o mezanino de nosso. A nossa mesa preferida ficava perto de plantas que coloriam a vista do bairro Bom Fim. Conforme a adolescência foi chegando, o cenário bonito servia de story no Instagram, e o passeio era eternizado em forma de tweet.

Quando Porto Alegre virou, de fato, lar para mim, a tradição de verão – estendida pelo ano todo, afinal, não existe época certa para a boa comida – ganhou companhias diferentes. Os colegas de faculdade me seguiram para uma sobremesa pós-almoço no restaurante universitário; as amigas sentaram confortáveis nas cadeiras vermelhas e amarelas prontas para aliviar o peso dos corações partidos da semana; e as visitas da família ganharam um final mais docinho.

Em um dia ensolarado de junho, depois de uma semana chuvosa, com o frio finalmente dando trégua, fiz algo que já tinha perdido o costume: fui atrás de um sorvete sozinha. Mesmo sabendo que não gosto de sabores de chocolate, e sim com chocolate, resolvi fazer um teste. Dividi o concorrido espaço da minha barquinha de casquinha com alguns nomes que eu não estava acostumada, na promessa de fugir dos meus 50 tons de creme e deixar meu pedido mais colorido.

Foi só quando sentei em uma daquelas mesmas mesas, encarando a sequência de quadros disposta pelas paredes, embaixo das luzes quentes em diferentes tons de amarelo, que eu percebi. Na primeira colherada, recebi a enxurrada de memórias. Me dei conta de que havia, sem querer, buscado um pouquinho das preferências das pessoas com quem eu divido essas lembranças, mesmo os sabores não sendo meus preferidos.

Representei minha mãe, uma amante dos doces de fruta, com uma bola roxa de sorvete de uva. A menta com chocolate foi a forma de buscar a minha irmã. O doce de leite é o doce preferido da minha melhor amiga de infância, a Amanda. No meio, tinha uma bola de creme, o clássico que todo mundo gosta, e de negresco, meu favorito, com pedaços grandes de biscoito.

O sabor de flocos de neve, um chocolate amargo com pedacinhos de chocolate branco, foi para desafiar meu paladar. Até procurei um daqueles sabores rosas meio estranhos, algo entre chiclete e danoninho, que nunca falta na casquinha de uma das minhas melhores amigas, a Maria, a defensora de que precisamos escolher doces “divertidos”.

Fecho os olhos e tenho 13 anos. Minha mãe me leva a tiracolo para “resolver coisas de adulto” no centro da cidade. Eu a venço no cansaço e ganho uma daquelas casquinhas de máquina. Eu sempre pedia para ser de uva, com muita calda de chocolate. Talvez eu fosse uma criança um pouco esquisita.

Abro os olhos e tenho 16 anos, na casa da minha melhor amiga do colégio. O pai dela, um aficionado em “comer bem”, como explicava, nos oferece sorvete de creme com amarula. A parte de mim convencida de que já era uma grande adulta no auge da adolescência achava isso o máximo. Sempre tirava uma foto para depois mostrar minhas aventuras culinárias com destilados. Cada sabor evoca uma lembrança. Desculpa, mana, mas o de menta tem gosto de pasta de dente e estragou o meu combo.

Os clientes ao meu redor talvez não estivessem obcecados com o conceito de memória como eu estava naquele momento. Talvez a mãe não esteja conscientemente pensando que o filho vai lembrar do quanto se divertiu com o rosto lambuzado de calda de chocolate até a bochecha. O casal de jovens pode não olhar para trás e lembrar do prato que dividiram antes do jogo do Internacional, torcida carregada na camiseta do garoto. Ou o homem e a mulher mais velhos talvez esqueçam da discussão acalorada sobre não gostarem do mesmo tipo de passeio que estavam tendo logo atrás de mim.

Mas eu vou lembrar. Cada um desses episódios são partes distintas da imagem que eu construí na minha mente sobre a primeira sorveteria de Porto Alegre a abrir durante o inverno. O prédio, que até a década de 1980 acumulava os 50 anos de uma mercearia judaica, e desde então era a sorveteria da família Arenzon, colecionava histórias nas frestas da sua parede de tijolos expostos. Histórias minhas, do Bom Fim e de todos nós.

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Caroline Guarnieri
Cultura da Mesa

Estudante de Jornalismo da UFRGS e Assistente de Conteúdo em GZH. Com textos em Correio do Povo, revistas Claudia e Crescer, Matinal, Intercept Brasil e Yahoo.