Rolê eletrônico underground no Brasil

Cultura, sociabilidade e juventude: um mapeamento dos coletivos de música eletrônica brasileiros

Cultura de Pista
Máquina de investigar o rolê
6 min readFeb 24, 2021

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Mamba Negra, São Paulo. Foto: Alexandre Furcolin.
Mamba Negra, São Paulo. Foto: Alexandre Furcolin.

Festas são reconhecidos espaços de sociabilidade, sobretudo da juventude, por serem lugar de experimentação coletiva e um contraponto à lógica produtivista¹. Nas festas, nos divertimos torrando recursos, tanto financeiros quanto físicos: gastamos e dançamos como se não houvesse amanhã. Nesse caldeirão manifestam-se modos de ser e estar no mundo que, por vezes, não são possíveis à “luz do dia”. Desde os anos 1970, com a popularização das discotecas, desenvolve-se um tipo específico de festividade, a chamada club culture, com destaque para a figura do DJ e da pista de dança. A música eletrônica² surge e cresce da íntima relação entre DJ e pista.

No Brasil, esse fenômeno já passou por clubs underground e inferninhos, nos anos 1990, até raves em áreas rurais, com força a partir dos anos 2000. Nessa mesma época, grandes clubs de música eletrônica são responsáveis pela difusão dessa cultura em solo nacional, como Warung (SC), Club Vibe (PR), D.Edge (SP) e Deputamadre (MG). Desde os anos 2010, surgem movimentos alternativos aos clubs, considerados elitizados por parte do público. Tais movimentos passam a ocupar espaços não tradicionais — como a própria rua ou locações em bairros industriais — para realizar as festas, imprimindo uma nova ética-estética ao rolê eletrônico. A coletividade e a horizontalidade são pontos fortes da ética dos novos atores, além da atenção às pautas políticas — com foco no espaço urbano e na afirmação de identidades marginalizadas. Esteticamente, notamos a mudança no som, mais heterogêneo, na ambientação (locais e cenografia) e, principalmente, na diversidade de corpos que ali circulam³.

Coletivo Plano, Porto Alegre. Foto: Vinicius Luz.
Coletivo Plano, Porto Alegre. Foto: Vinicius Luz.

Os coletivos, nomenclatura que se torna popular no cenário, dão visibilidade para questões políticas que estavam presentes nos primórdios da club culture (liberdade sexual e de gênero e uso de substâncias), mas que se perderam com a comercialização dos clubs. Além disso, resgatam valores que estão atrelados ao surgimento da música eletrônica, principalmente a questão racial. Outras pautas, como o compartilhamento de informação e a profundidade do fenômeno festa, também ganham força: “Dançar é um ato político!”. A falta (proposital) de institucionalidade reverbera em dificuldades financeiras e de relacionamento com autoridades, dando caráter precário e/ou clandestino ao rolê.

Base PoA, Porto Alegre. Foto: Marini Bataglin.
Base PoA, Porto Alegre. Foto: Marine Bataglin.

Na tentativa de entender o momento e contribuir com o debate, iniciamos um mapeamento dos atores que compõem o cenário. Optamos por chamar de “coletivos” todas as iniciativas, mesmo aquelas de caráter empresarial e/ou individual, entendendo que toda empreitada é, no fim das contas, coletiva. Esse é um trabalho colaborativo que contou com pesquisa prévia da galera da Masterplano, Rave Radar, Forninho Traxx, Traquejoo, Tontura e do grupo de telegram “Pandemia Eletrônica”. A versão primária do mapeamento foi realizada através de pesquisa nas redes sociais e de ativação de contatos. Agora, para maior alcance e refinamento das informações obtidas, lançamos um questionário via Google Forms, aberto para os próprios coletivos preencherem.

Base PoA, Porto Alegre. Foto: Yuri Junges.
Base PoA, Porto Alegre. Foto: Yuri Junges.

A relevância deste trabalho reside em dois principais aspectos: primeiro, capturar um frame, mesmo que parcial, do cenário contemporâneo, auxiliando na compreensão do fenômeno “festa de música eletrônica” em suas dimensões artísticas, políticas, laborais, etc.; segundo, servir como catálogo à disposição de coletivos, produtorxs, DJs, curadorxs e demais envolvidxs no cenário, possibilitando articulações locais, regionais e nacionais. No mapeamento constam festas, núcleos, clubs, rádios, labels, bares etc., todos envolvidos de uma forma ou de outra com o rolê.

Nessa primeira versão, mapeamos 261 coletivos, distribuídos em todos os estados brasileiros. A maioria deles concentra-se nas regiões Sul (87 coletivos) e Sudeste (85 coletivos), seguido pelo Nordeste (40 coletivos), Norte (38 coletivos) e Centro Oeste (11 coletivos). Sabemos que o fato de constarem mais atores nas regiões Sul e Sudeste está ligado a uma questão de representatividade, visibilidade e distribuição de recursos, não necessariamente à presença maior ou menor dos coletivos. Isso demonstra uma insuficiência do mapeamento, que precisa ser ampliado e pulverizado.

NBOMB, Recife. Foto de je0an.
NBOMB, Recife. Foto de je0an.

Em uma análise ainda superficial, percebemos que, conforme aumenta a infiltração da cultura de pista nos cenários locais, aumenta a produção de nichos ainda mais específicos, normalmente capitaneados pelo estilo de som, pois a cultura DJ segue sendo um dos principais pilares do universo das festas de música eletrônica. Cada nicho produz uma performatividade singular que se expressa em modos de vestir, falar, tocar, dançar etc. A criação de subnichos — ou especialização — é uma característica do capitalismo contemporâneo. Na medida em que se multiplicam os nichos, evidenciam-se divergências, o que, eventualmente, pode criar afastamentos entre atores que antes pertenciam a um mesmo cenário. Nos lugares onde foram mapeados muitos coletivos, é possível verificar uma diferenciação explícita entre eles baseada no estilo musical. Quanto menor o número de atores envolvidos, menor a dicotomia mainstream/underground mobilizada internamente no rolê.

Tendo em vista que a pesquisa partiu do diálogo existente no grupo “Pandemia Eletrônica”, que é composto majoritariamente por coletivos do Sul e do Sudeste que possuem uma linguagem específica, inicialmente o mapeamento estava restrito à estética House, Techno e Downtempo. Ao nos depararmos com atores localizados nas regiões Norte e Centro Oeste, identificamos uma predominância de estilos musicais como Psytrance e Brazilian Bass, por isso ampliamos o leque de estilos musicais, verificando que em alguns estados somente estes gêneros estavam presentes nos coletivos encontrados (até agora). É importante ressaltar que tais estilos musicais também existem no Sul, Sudeste e Nordeste, mas que nessas regiões, devido à multiplicidade de atores encontrados, configuram-se como um cenário distinto. Ainda não temos certeza da aproximação das cenas Psy/Brazilian Bass com a realidade do cenário de coletivos que têm predominância de House, Techno e Downtempo, mas optamos por incluí-las para termos todos os estados representados. Além disso, identificamos apenas música eletrônica de batidas mais retas e sem MC. Buscaremos incluir no futuro coletivos que trabalham com batidas mais quebradas e com presença de MCs, como Funk, Hip Hop e Dubstep/Drum’n’Bass/Grime, por entender que tais cenários também partilham das noções de coletividade e da cultura DJ.

Base PoA, Porto Alegre. Foto: Yuri Junges.
Base PoA, Porto Alegre. Foto: Yuri Junges.

Mesmo partindo de um quadro mais homogêneo, a realidade das diferentes regiões brasileiras demonstra a complexidade do fenômeno “festa de música eletrônica” em território nacional, suscitando a dificuldade em delimitar o nosso campo: o rolê. Permanecem as dúvidas: quais atores fazem parte desse universo? Quais são os critérios de inclusão de um coletivo no rolê? Estilo musical? Pautas políticas? Linguagens artísticas? Por isso, inserimos estas categorias no formulário do mapeamento e convidamos as clubbers a multiplicarem esta pesquisa e a pensarem junto com a gente. Esta é apenas a primeira versão, a ideia é ampliarmos e complexificarmos cada vez mais, contribuindo com o registro da nossa cena.

Baixe a primeira versão do mapeamento dos coletivos, com 261 atores espalhados em todo o Brasil, como festas, núcleos, rádios, labels, clubs e bares.

¹ Sobre gasto improdutivo e a noção de dispêndio, ver Georges Bataille.

² Sobre a diferença entre música eletrônica de pista e música eletrônica experimental/eletroacústica, ver Pedro Peixoto Ferreira.

³ Entendemos que, mesmo as festas organizadas por coletivos alinhados à ética-estética mencionada acima, não há uma diversidade de corpxs tão grande entre seu público e, sobretudo, entre xs artistas e produtorxs. Mesmo assim, é fato que, em comparação aos clubs mais elitizados, as festas produzidas por coletivos contemporâneos representam um espaço minimamente mais seguro para corpxs dissidentes. Para uma visão crítica a este respeito ver Arthur Giraldo e Ariana Almeida.

Por Eduarda Heineck e Gabriel Bernardo.

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Máquina de investigar o rolê — ponto de articulação e produção de conhecimento.