A aposta na literacia midiática contra a violência política de gênero

Por Bárbara Duque e Najla Passos

Crédito da ilustração: Justificando

Conter o avanço dos discursos de ódio pelas redes sociais é um tema que tem mobilizado especialistas. Ainda mais quando os discursos se direcionam a grupos como mulheres, LGBTQIA+ e de pessoas negras. No campo político tais ataques se repetem, aparentemente numa tentativa de retirar esses grupos do cenário político ou de um cenário social que possa ouvi-los, que os torne mais audíveis do que foram historicamente. A pesquisadora Fernanda Martins, diz que “é possível perceber nesses ataques uma tentativa nítida de silenciamento e propagação de violências discursivas contra esses grupos”.

Bruna Brlaz, presidenta da UNE.

Recentemente, Bruna Belaz, primeira mulher negra e da região Norte a presidir a União Nacional dos Estudantes (UNE), após conceder entrevista ao jornal Folha de São Paulo em outubro, recebeu, via redes sociais, violentos ataques racistas e misóginos, que incluíram ser chamada de “cadela”, “fascista”, “traidora safada” e “Mais uma negra a serviço da casa-grande”. É importante ressaltar a diferença entre posicionamento político e violência política de gênero. Saber identificar é fundamental para a democracia, para que liberdade de expressão não seja confundida com discursos de ódio sexistas, machistas e misóginos.

Quando assumiu seu mandato, a deputada federal Vivi Reis (PSOL-PA) ouviu que “deveria ter o mesmo fim que a vereadora Marielle Franco”, a vereadora carioca assassinada em 2018. Já para a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ), um internauta desejou que caísse “nas mãos do Lázaro”, o homem acusado de matar uma família no Distrito Federal que se tornou alvo de uma das maiores perseguições policiais da história do país.

As deputadas federais Vivi Reis (PSOL-PA) e Jandira Feghali (PCdoB-RJ).

Elas não são casos isolados. Assim como Vivi Reis, oito em cada dez parlamentares do Congresso Nacional relatam já terem sofrido violência política de gênero. Seis em cada dez afirmam que este tipo de abuso ocorreu no ambiente virtual. Os dados fazem parte de uma pesquisa sobre violência política de gênero realizada pelo jornal O Globo, divulgada em 25 de julho deste ano, que ouviu 73 das 90 deputadas e senadoras brasileiras.

No caso das mulheres negras, a violência política é interseccional: abarca ao mesmo tempo questões de gênero e de raça. Durante a campanha de 2020, a candidata à prefeitura de Osasco (SP) pelo PSOL, Simony dos Anjos, de 34 anos, sofreu ataques LGBTfóbicos, sexistas e racistas em um grupo de WhatsApp exclusivo para trocar informações sobre a candidata.

Uma pesquisa feita pelo Instituto Marielle Franco, em parceria com as ONGs Terra de Direitos e Justiça Global, aferiu que 78% das candidatas negras no país relataram ter sofrido ataques virtuais no período eleitoral. No exercício do mandato, a situação não melhora. Mesmo depois de ter sido assassinada, a vereadora carioca Marielle Franco continuou tendo sua memória atacada pelas fake news racistas e sexistas. Mensagens diziam que ela foi eleita pelo Comando Vermelho, que era ex-mulher de traficante, que havia engravidado aos 16 anos, entre outros ataques.

Licença maternidade em espaços masculinos?

Jandira Feghali contou à reportagem do jornal O Globo que, na Câmara desde a década de 1990, a primeira violência Política de gênero que sofreu foi ter seu direito à licença-maternidade negado. Em troca, lhe ofereceram uma licença saúde. “Foi a primeira violência que sofri. Era a negação de um direito fundamental dentro da Casa. É como se dissessem: seu lugar não é aqui” — afirmou Jandira ao Globo.

Duas décadas depois, a vereadora de São João del-Rei, Lívia Guimarães (PT), passou por constrangimento parecido quando se tornou a primeira mulher em exercício de mandato a engravidar no município. “O legislativo local é um espaço tradicionalmente masculino. A possibilidade de uma vereadora engravidar sequer foi prevista pela Casa”, disse ela ao Notícias Gerais em fevereiro de 2020, às vésperas de ter seu primeiro filho, aos 32 anos.

Louca, histérica e descontrolada

A perseguição on-line é mais uma forma de violência na internet que acomete as mulheres. Samira Pereira explica que, no Brasil, ainda não existe um crime específico para esse comportamento, que já é reconhecido, por exemplo, nos Estados Unidos. Mas afirma ser possível enquadrar como crime de ameaça ou perturbação da tranquilidade, dependendo do grau de periculosidade. Uma delas é atribuir ao chamado “sexo frágil” uma pré-disposição a problemas psiquiátricos sem comprovação científica. Foi o caso da senadora Simone Tebet que, durante sessão da CPI da Covid, transmitida ao vivo pela internet, foi chamada de “descontrolada” por Wagner Rosário, ministro da Controladoria-Geral da União.

O termo “descontrolada” é, inclusive, um exemplo clássico do tipo de xingamento comumente direcionado às mulheres, assim como louca e histérica. Outra vítima contumaz foi a ex-presidenta da República Dilma Rousseff, que chegou a ser comparada à Maria, a louca, pela revista Isto É, provocando reações de indignação das organizações feministas do país e do mundo. É também matéria para farta pesquisa, como estudo da UnB que mostra que as mesmas qualidades são valorizadas quando verificadas em um homem.

De acordo com a pesquisa realizada pelo jornal O Globo, 34,2% das parlamentares disseram que já foram taxadas como louca por seus pares. 63% das deputadas e senadoras relataram ataques feitos pela internet. Nesse espaço, a violência inclui ameaças de morte e estupro contra as parlamentares e familiares.

Caminhos possíveis

De acordo com os dados da pesquisa Violência Doméstica durante a Pandemia de Covid-19 em Juiz de Fora — MG, desenvolvida pelo professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Wagner Batella, o número de denúncias pelo telefone sobre violência doméstica em Juiz de Fora foi agravada no período de pandemia. É fundamental abordarmos que as agressões praticada via redes sociais são sim consideradas violência quando o objetivo claro é o de silenciamento, estresse emocional e danos à reputação. Combater esse tipo de ataque é essencial para garantir as liberdades e combater os valores sexistas e racistas ainda predominantes no país.

O enfrentamento dessa situação evidentemente é multissetorial. Um dos caminhos passa pela literacia midiática que pode contribuir desde o reconhecimento da gravidade dessas ações, passando pela prevenção desses ataques à compreensão da gravidade de atitudes como essas, mesmo que não haja contato físico. Numa sociedade democrática, “um indivíduo que tenha literacia midiática tem mais capacidade de formar uma opinião informada nos assuntos da esfera pública, e de ser capaz de se expressar individual e coletivamente em domínios públicos, cívicos ou políticos. Deste modo, uma sociedade com literacia mediática seria capaz de suportar uma esfera pública sofisticada, crítica e inclusiva” (Livingstone, Couvering & Thumin, 2005, p.7).

Vivemos em uma cultura participativa na qual o cidadão deve não só dominar e compreender todas as implicações ao produzir suas próprias mensagens, como o impacto da interação com as mensagens alheias. As potencialidades de expressão nas redes sociais aliada à autonomia pessoal deve seguir rigorosamente o mesmo compromisso social e cultural de outros ambientes. Por ser formas novas de interação e manifestação, a maioria dos navegadores ainda não desenvolveu habilidades capazes de fazer do uso algo saudável e proveitoso.

Evidentemente que o combate à violência contra a mulher seja no ambiente que for ainda está longe de cumprir seus objetivos. Conter os assédios virtuais passa por investir em literacia midiática, tanto para compreender o funcionamento dos algoritmos, os mecanismos de interação, consumo e produção, quanto as legislações vigentes que amparam os cidadãos. A pesquisadora Fernanda Martins reforça que é “preciso entender que esses ataques cibernéticos não são apenas uma transposição, o anonimato e as dinâmicas das redes sociais levam ao surgimento de novas práticas e, assim, ao fortalecimento do que já ocorria em outros espaços”.

Bibliografia

Livingstone, S., Van Couvering, E. J., & Thumim, N. (2005). Adult media literacy: A review of the literature. London: Ofcom. Acesso em 10/11/2021 http://www.ofcom.org.uk/advice/media_literacy/medlitpub/medlitpubrss/aml

https://congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/pesquisa-nacional-mapeia-violencia-politica-contra-mulheres/

https://congressoemfoco.uol.com.br/temas/direitos-humanos/violencia-de-genero-atinge-81-das-parlamentares-no-congresso-mostra-pesquisa/

https://oglobo.globo.com/politica/eleicoes-2020/pesquisa-mostra-violencia-politica-sofrida-por-mulheres-negras-durante-campanha-1-24729776

https://www.noticiasgerais.net/gravidez-da-unica-vereadora-de-sjdr-escancara-machismo-na-politica/

https://oglobo.globo.com/politica/violencia-de-genero-atinge-81-das-parlamentares-no-congresso-25125079

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/10/presidente-da-une-tem-apoios-em-serie-apos-ataques-racistas-machistas-e-politicos.shtml

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Najla Passos
COMUNICAR: popularizando a Literacia Midiática

É jornalista, mestre em Linguagem e doutoranda em Comunicação pelo PPGCOM/UFJF