A competência midiática e a qualidade audiovisual: uma análise do telejornalismo regional, caso Bom dia São Paulo

Na última década muita coisa mudou no campo da comunicação midiática com a surgimento de novos dispositivos tecnológicos que demandaram diferentes processos comunicacionais. Tais alterações tensionam o olhar do pesquisador para a dimensão da comunicação em diferentes aspectos que antes nem eram sonhados. Agora, para se entender e desfrutar da comunicação midiática é preciso ter competências e esse conceito é entendido por Ferrés e Piscitelli (2015) como “uma combinação de conhecimento, habilidades e atitudes consideradas necessárias para um contexto determinado” (2015, p. 3). Neste ensaio abordaremos o fenômeno da comunicação midiática no telejornalismo brasileiro, levando em consideração o estudo sobre as relações entre a Qualidade Audiovisual e a Competência Midiática na ficção seriada lusófona, desenvolvida pelo Observatório da Qualidade no Audiovisual (2016–2021), realizado por Gabriela Borges e Daiana Sigiliano (2021). A proposta teórico-metodológica do projeto analisa séries brasileiras e portuguesas a partir dos estudos de qualidade no audiovisual e competência midiática. Para efeito de análise pretendemos observar um dia na produção do telejornal Bom Dia São Paulo[1] e vamos decupar a escalada e o primeiro bloco do programa[2]. Hoje o Bom Dia São Paulo é apresentado por Rodrigo Boccardi. A jornalista Sabina Simonato acompanha informando o trânsito e o tempo, além de apresentar as notícias de última hora. Escolhemos o Bom Dia São Paulo do dia 4 de agosto de 2022, edição de quinta-feira, meio de semana. Este programa foi escolhido por não apresentar destaque para datas comemorativas.

Aqui avaliaremos as questões da qualidade da produção audiovisual, no ambiente da cultura participativa, que criou outros parâmetros de análise. A proposta teórico-metodológica adotada compreende e sistematiza diferentes etapas do processo considerando que as estratégias de transmidiação determinam o desenvolvimento, entendendo estas ações como uma ferramenta para exercitar o engajamento do usuário.

Importante destacar que para Spinelli, “a compreensão da competência midiática não é regida apenas pelas estratégias mercadológicas e hegemônicas, mas é vista em diálogo com as demandas sociais e com as novas experiências culturais que emergem historicamente a partir da materialidade” (2021, p.128).

Diante deste diálogo, podemos inferir que uma produção audiovisual na televisão deve levar em consideração o consumidor como um interagente. Segundo Alex Primo (2003, p. 8), ser interagente é agir com o outro, ou seja, participar da interação e assim consumir os telejornais de forma diferente. Um dos aspectos que se destaca é que este consumidor de telejornalismo hoje compartilha, produz conteúdo, comenta, envia sugestões de pauta e opina sobre as reportagens, dentro do telejornal até mesmo nas redes sociais. Esta capacidade de interação apenas se dá porque ele é alfabetizado midiaticamente.

A contribuição para o debate é que há uma competência midiática anterior por parte do interagente e que esta competência impacta na narrativa e na estética do produto telejornal. A ideia é entender os diferentes processos que o produto telejornal passa para ser produzido e consumido.

Figura 1: Modelo teórico metodológico de séries audiovisuais.

Fonte: Borges e Sigiliano (2021)

A criação audiovisual deve ser analisada diante da sua complexidade por isso a primeira chave descrita, a da criação, traz o universo do estético e do conteúdo no plano de expressão e plano de conteúdo. O plano de expressão indica o modo como o produto é elaborado por meio dos recursos técnicos-expressivos (áudio, vídeo, edição e grafismo) e sua produção de sentidos. Neste item podemos inferir que o telejornal no seu primeiro bloco analisado impacta o telespectador pela velocidade da edição e pela utilização de planos sequências que revelam não o conteúdo da notícia em si, mas a experiência do repórter indo até o local dos fatos, como no caso da repórter Zelda Melo. O áudio é o da repórter comentando sobre a notícia que fará, pois está a caminho. A imagem é dela dentro do carro em primeiro plano e este enquadramento não se altera. Os outros repórteres seguem a mesma dinâmica. Falam da reportagem que farão, pois estão a caminho da notícia. Estão em movimento em pé, na locação, ou sentados dentro dos carros.

Do ponto de vista estético o enquadramento dos repórteres não é plasticamente perfeito, mas cumpre a sua função de imediatismo na sua imperfeição. Isto porque o enquadramento dentro do carro que se move quase sempre enquadra os elementos sem equilíbrio estético. Os repórteres estão sempre em primeiro plano ou plano conjunto. A edição é corte seco o que mais uma vez remete a objetividade e a rapidez. O áudio ambiente das repórteres nas ruas reforça o efeito de ubiquidade. Os grafismos como gcs reforçam didaticamente os lugares e nomes dos envolvidos na comunicação. Já os jornalistas que apresentam estão no estúdio e exploram a conversa com tom de informalidade, mais uma estratégia para aproximar a audiência que não dialoga mais com uma estética distante e asséptica dos antigos locutores e apresentadores de telejornal. A ambientação do programa é um cenário construído no alto do prédio da TV Globo. É um estúdio com as paredes em vidro que mostra a cidade de São Paulo ao fundo. Este cenário remete a grandiosidade, transparência, ubiquidade e a agilidade da notícia. As roupas são neutras. O apresentador sempre de terno e as mulheres quase sempre de saia. Já os colunistas estão com um figurino mais despojado como calça jeans e camisa. O que indica uma diferença no grau hierarquia entre os jornalistas, sendo apresentadores mais importantes que os colunistas.

Apesar do discurso normativo vigente indicar que os apresentadores e repórteres devam ser distantes e isentos em suas colocações, o que se vê hoje é exatamente o contrário. Juliana Gutmann (2014) constata que nos programas telejornalísticos “atuam sujeitos sociais que se implicam nos relatos e fazem do seu corpo lugar de personificação da notícia” (2014, p. 109). Desta forma, para a autora, a estratégia de proximidade do jornalista é vista como um elemento constitutivo da narrativa multifacetada que inclui corpo, texto, transmissão direta. Este espaço de subjetividade contrasta com o discurso normativo. Assim, podemos inferir que a performance (corpo e texto) dos jornalistas cria um valor de credibilidade e proximidade, e legitima o telejornalismo como um lugar de produção de sentidos.

Já o sujeito cúmplice ocupa uma outra posição. É quando o repórter “se insere na notícia e dialoga com o espectador” (…) “recorre-se a ideia de cumplicidade, relacionada ao sentido de partilha, consentimento, cooperação, conivência, o que implica na construção de sentido de interação com o interlocutor” (GUTMANN, 2014, p. 115). O repórter deixa de ser um narrador e passa a ser o sujeito da ação e o valor de proximidade com o tema e o espectador o coloca numa posição de credibilidade e destaque. Acreditamos que em ambos os casos tanto apresentadores, colunistas, repórteres já lançam mão da performance de partilha nos telejornais. Tais qualidades têm sido culturalmente construídas muito com base nas narrativas das mídias sociais e se iniciou na década de 1990 com a valorização da personificação e da emoção nos telejornais. (MACHADO, 2001; HAGEN, 2009)

Os aspectos estéticos mencionados acima remetem a um paralelo com o universo da internet. Desta forma, entendemos que a adaptação feita no produto telejornal na última década leva em consideração o público, que tem consumido audiovisual com elementos estéticos e narrativos das redes sociais. A agilidade, a estética imperfeita, o áudio ambiente muitas vezes com ruídos nos remetem ao universo das mídias sociais.

De acordo com a figura 1, o plano do conteúdo na análise das séries ficcionais leva em consideração a dramaturgia, a composição dos personagens e a quanto a construção narrativa, mas para esta análise do telejornal levaremos em consideração a construção dos apresentadores. Como aponta Iluska Coutinho (2012), o telejornalismo é uma dramaturgia da realidade e sendo assim a narrativa do telejornal se aproxima muito das redes. A conversa com tom de informalidade, a mudança acelerada de formatos de notícias, quadros que valorizam a participação do público com opiniões e apontamentos, os repórteres ao vivo comentando sobre a experiência de realizar a reportagem que estão produzindo.

Agora, para debater sobre a qualidade, veremos outras bases: Oportunidade: se refere a pertinência dos temas. Na escalada do telejornal foram: a chegada do 5g, um assassinato na represa Billings, as condições da ciclovia e um colecionador de miniaturas. Além disso, destaque para os repórteres que faziam aniversário no dia.

Já no quesito ampliação do horizonte vemos que o telejornal traz temas polêmicos, de interesse da população e que faz com que muitos telespectadores comentem, assim estimulando a participação todo final de bloco. A diversidade, outro item destacado pelas pesquisadoras, está presente no quesito diversidade étnica. As questões de gênero e religiosas não são trazidas aqui. Por se tratar de um telejornal, não acredito que ele desconstrua algum estereótipo e nada destoa na construção dos personagens. Com relação a originalidade, é importante lembrar que ao longo dos anos o telejornal foi incluindo a participação do telespectador mediada. Mas não há nada de novo na construção do telejornal Bom dia São Paulo.

O próximo passo seria analisar a circulação transmidia nas mídias sociais e plataformas. Pesquisando as mídias sociais, observamos que o Bom dia São Paulo explora o Whatsaap e a conta oficial do Facebook, que reúne os telejornais Bom Dia SP e SPTV), como um canal de conversa, já You Tube e Instagram não são utilizados. Aqui cabe destacar que dentro do telejornal existe um momento durante a exibição que as mensagens dos internautas são lidas e sempre se referem a reportagens que acabaram de ser exibidas. O conteúdo do telejornal fica disponível no site Globoplay somente para assinantes. Não há uma produção diferente das exibidas na televisão aberta, existem as reportagens em separado e o telejornal edição completa.

Reflexões

Podemos observar a partir do mapeamento que as mídias sociais quase nunca são utilizadas pelo Bom Dia São Paulo. Há uma intenção do telejornalismo na rede aberta em manter a audiência na emissora, não há estratégias de propagação oficial. O que encontramos extraoficial foram perfis de repórteres que divulgam as suas experiências nas reportagens. As estratégias de trasmidiação não exigem nada do interagente.

O destaque se concentrou na qualidade audiovisual do programa que alterou a sua narrativa para se aproximar das dinâmicas comunicativas das mídias sociais. Incluiu quadros de participação do interagente, aumentou a presença do repórter ao vivo, aumentou a velocidade da edição, desmembrou reportagens para ampliar a dramaticidade e segurar a audiência e apostou numa comunicação espontânea e coloquial.

Referências

BORGES, Gabriela; SIGILIANO, Daiana. Qualidade Audiovisual e Competência Midiática: proposta teórico-metodológica de análise de séries ficcionais. Compós, São Paulo, 2021. Disponível em: file:///C:/Users/heidy/Downloads/QUALIDADE_AUDIOVISUAL_E_COMPETENCIA_MIDI.pdf. Acesso em: 14 jun. 2023.

FERRÉS, J.; PISCITELLI, A. Competência midiática: proposta articulada de dimensões e indicadores. Lumina, [S. l.], v. 9, n. 1, 2015. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/lumina/article/view/21183 . Acesso em: 14 jun. 2023.

GUTMANN, J.F. Entre tecnicidades e ritualidades: formas contemporâneas de performatização da notícia na televisão. Galáxia. São Paulo, PUC-SP, n. 28, 2014.

HAGEN, Sean. A emoção como estratégia de fidelização da audiência: Jornal Nacional e os laços de afetividade com o telespectador. Verso e Reverso, São Leopoldo, 2008.

PRIMO, Alex. Quão interativo é o hipertexto?: Da interface potencial à escrita coletiva. Fronteiras: Estudos Midiáticos, São Leopoldo, v. 5, n. 2, p. 125–142, 2003. Disponível em: http://www.nuted.ufrgs.br/edu3375_2009_2/links/semana_9/quao_interativo_hipertexto%5B1%5D.pdf

SPINELLI, Egle Müller. Intercom — RBCC São Paulo, v. 44, n. 3, p.127–143, set./dez. 2021.

[1] O Bom Dia São Paulo é exibido de segunda a sexta-feira, das 6h às 8h30 da manhã, na Rede Globo. O telejornal regional está no ar desde abril de 1977 e é o primeiro telejornal matutino da emissora. A aposta desde a estreia foi em um jornalismo regional de prestação de serviço, ao vivo e descontraído, pois a faixa que ocupava na grade de programação à época era difícil para formar público (Memória, n.d).

[2] https://globoplay.globo.com/v/10819707/?s=0s

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Heidy Vargas
COMUNICAR: popularizando a Literacia Midiática

Adora jornalismo e documentário. É professora de audiovisual e doutoranda em comunicação.