A experiência estética sob uma ótica afetiva

A experiência estética estabelece um momento único, de grande intensidade. Ela representa um instante repleto de significado, cuja principal promessa é de proporcionar algo para descobrir ou compreender.

A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA provém de uma peça de teatro, de um concerto, da contemplação de um quadro ou de uma escultura, mas também pode advir da penumbra de uma floresta ou do anonimato dos subúrbios abandonados. Ela cessa os nossos movimentos e nos impulsiona, produz uma série de sensações e pensamentos. A experiência estética estabelece um momento singular, um momento de intensidade, um instante repleto de significado, dotado da promessa de algo para descobrir ou compreender (MORICEAU; MENDONÇA, p.78, 2016)

O poder da experiência estética está na capacidade de nos afetar e transformar o âmago da nossa subjetividade para conduzir-nos na direção da aventura de algo desconhecido e inesperado. Poeticamente falando, podemos associar nossa imersão dentro de uma experiência estética como se fosse um “banho de sensações, emoções e reações” e isso nos mostra que para compreendê-la , não podemos nos distanciar, mas sim, vivenciar e nos deixar afetar e, eventualmente sermos alterados. “A experiência estética é, primordialmente, uma experiência sensível” (MORICEAU; MENDONÇA, p.79, 2016). A experiência estética pode nos chegar através de vários modos, como por exemplo: prazer / desprazer; estranheza / reconhecimento; lugares e posições de poder que estabelece; capacidade de expressão que proporciona; movimento que ela engendra, entre outros. A partir desse entendimento, é possível afirma que a experiência estética é, raramente, una. Regularmente, ela possui múltiplas formas e atravessa distintos momentos e isso vai variar de acordo com o indivíduo que está vivenciando aquele momento.

A experiência estética é uma experiência que vem de fora, mas que se endereça particularmente a cada um de nós. Ela é um encontro conosco e nós desconhecemos a potência desse encontro. […]. Para não perdermos sua qualidades, precisamos combinar a experiência subjetiva com a estrutura e contexto do encontro, levando em conta os modos de aparições da experiência estética, sua materialidade e a memória que a assombra, sua singularidade na cultura e as peculiaridades históricas que a tornam possível (MORICEAU; MENDONÇA, p.80, 2016).

Sendo a experiência estética um momento sensível, será que é possível uma abordagem que envolva os afetos, ao invés de metodológicas mais duras e menos subjetivas? De acordo com Moriceau e Mendonça (2016), existe um tipo de abordagem que se baseia na virada afetiva e torna possível uma vivência muito mais profunda e única do que o olhar distante de um pesquisador acadêmico, por exemplo. A virada afetiva se refere, principalmente, a novas possibilidades epistemológicas, ou seja, ao modo de investigação em que o pesquisador é guiado por afetos, é movido pela situação, como ponto de partida da reflexão.

Segundo os autores, o momento decisivo para a virada afetiva foi o reconhecimento da importância do afeto. Esse pensamento é contrário aos pensamentos teóricos que muitas vezes ignoram ou minimizam o papel dos afetos. Para Hardt (2007), o termo afeto se refere ao corpo e ao espírito. À razão e à paixão. Se oferece como uma oportunidade para enriquecer nossas descrições, possibilitando que as tornemos mais humanas e mais convincentes.

O método proposto pelos autores não tem como objetivo, produzir representações mais ricas, mas sim de encontrar formas para efetuar um mergulho no concreto, no específico, no relacional, permitindo “surfar as ondas do afeto na crista das palavras, encharcados até nosso esqueleto conceitual pela delicadeza dessa aspersão” (MORICEAU; MENDONÇA, p.81, 2016), para, em seguida, tentar pensar e escrever sob os efeitos desse banho experiencial. A abordagem, portanto, baseia-se em um duplo movimento: o da presença do sensível — deixar-se afetar — e o da reflexividade — pensar os e através dos afetos.

O primeiro movimento propõe a percepção da marca; a reação; sentir o momento e deixar as impressões trabalharem o nosso interior. Neste momento, precisamos nos tornar curiosos para vermos para onde as impressões levarão nossos corpos e nossos pensamentos e assim, poderemos nos engajar com a experiência estudada. Os autores explicam que este movimento tem a capacidade de reduzir os processos de mediação entre o pesquisador e a experiência. Além disso, é necessário observar que a abertura à experiência exige coragem, pois não sabemos para onde ela nos conduzirá. O significado dos afetos ordinários está nas intensidades que os constroem e nos pensamentos e sentimentos que os tornam possíveis. Eles são carregados de informações e potencialidades compreensivas, daquilo que é designado pelo capitalismo ou pela globalização e nos mostram a variedade e a eficácia dos seus efeitos sobre nossas vidas, nossos corpos, nossa atuação.

Já o segundo movimento, tem o objetivo de refletir sobre os traços dos efeitos políticos, memoriais, éticos, estéticos e existenciais. Os afetos assim percebidos nos dizem que algo está acontecendo e que algo não se encaixa com o que é esperado ou naturalizado.

Os afetos nos ajudam a desestabilizar essas representações instaladas, definições de papeis que nos parecem naturais, nos convidam a reviver a investigação, a imaginar outras maneiras de ver e, também, invocam uma experiência singular. Uma abordagem possível seria deixar-nos ser afetados pela experiência estética e sermos impulsionados por ela a um processo reflexivo sobre esse contato.

A principal peculiaridade da abordagem pelo afeto está no modo de contato com a experiência estética, através dela, procuramos perceber a experiência com todos os sentidos e, quanto mais próximo é nosso contato, mas ele nos afetará. Devemos, portanto, aceitar a contaminação e a experimentá-la plenamente. O significado que criamos nestes contatos estão plenos se sensibilidade, sensorialidade e uma gama de sentimentos.

A abordagem através dos afetos pode deixar a impressão que toda essa relação sentimental não leva em conta a história e a política dentro da experiência estética. Naturalmente, os afetos deixam transparecer cicatrizes e revoltas, construções identitária frente aos discursos percebidos e as batalhas em torno da subjetividade. A experiência estética nos afeta de uma maneira particular e a reflexão sobre ela não poderá evitar perguntas sobre as questões de gêneros, sexualidade, etnia, idade, classe social, nação, religião, entre outros. Os autores afirmam que o poder e a ideologia estão por toda parte, mas são em suas aparências ordinárias e banais que se tornam palpáveis, esmagadores e ameaçadores. Nossa ligação com as forças políticas não é apenas de cunho cognitivo, ela é presente e afetiva, nossa existência está contaminada e já engajada nessas relações políticas.

Quando o pesquisador se envolve com uma experiência estética, isso pode envolver uma questão ética, já que os afetos são relacionais. Eles nos descentralizam e nos reposicionam em uma configuração maior da qual fazemos parte / nos forçam para fora do nosso modo de criar o mundo, nosso modo de encontrar narrativas já dadas. Se deixar afetar por outra experiência pode levar a recompor a posição, crenças e a ideia de justiça e bem comum. A experiência estética engendra um complexo de afetos e é este complexo que temos que refletir, mesmo que não mostre uma imagem positiva de nós mesmos ou da experiência estudada.

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