A literacia midiática em Cells at Work!

Este texto propõe a ficção seriada Cells at Work![1] (David Production, 2018–2021) como aporte didático aos estudos de Ciências Biológicas para estudantes de ensino médio e superior, entendendo a capacidade de aprendizagem sobre o corpo humano presente no conteúdo da série. A base teórica do texto está no conceito de Competência Midiática ou Literacia Midiática, isto é, a capacidade que um indivíduo tem de acessar e analisar mensagens audiovisuais ou de cria-las. Neste caso, a literacia por trás do conteúdo de Cells at Work! serve para desenvolvimento pessoal do ser humano, para isto, o estudante deve ser capaz de encontrar o conteúdo, assistir, avaliar e discorrer sobre ele. Cells at Work! é um animê japonês que conta a história do funcionamento do corpo humano através da antropomorfização de células em personagens tridimensionais.

[1] Originalmente: Hataraku Saibō

Literacia Midiática

As questões sobre alfabetização midiática receberam fama com o fenômeno da desinformação através de mensagens online na eleição do ex-presidente Donald Trump, nos Estados Unidos. No Brasil, a preocupação se tornou ainda maior com a repaginação dessas desinformações em nossa última eleição presidenciável (2018), o fenômeno também é conhecido como fake news, notícias falsas, o que parece ser contraditório, pois, no jornalismo, se algo é notícia não é falso. Este é o estopim da falta de literacia midiática nos cidadãos, mas a preocupação está presente na UNESCO desde 1982, quando foi realizado o Simpósio Internacional de Mídia e Educação em Grunwald, Polônia. Nos anos seguintes, o mesmo órgão realizou declarações, agendas, congressos e reuniões sobre esta relação, e para além da UNESCO, a ONU e a Comissão ou Parlamento Europeu também tem discutido a pauta. A literacia midiática começou a fazer parte do currículo escolar obrigatório de algumas escolas no mundo e na formação de pedagogos e profissionais de comunicação, a tendência é que este movimento cresça cada vez mais.

Segundo Mihailidis (2014), as dimensões da competência midiática são desenvolvidas em 5 As, em inglês: acess, awareness, assessment, appreciation e action, em tradução livre ao seu texto, temos: acesso, conscientização, avaliação, apreço e ação. O autor explica que o indivíduo letrado midiaticamente deve questionar quem controla o acesso às informações, como as tecnologias alteram este acesso e quais são as barreiras de acesso que diferentes cidadãos, em contextos distintos, possuem; deve ter consciência dos sistemas de valores por trás das mensagens audiovisuais, o que elas significam em contextos cívicos mais amplos e quais representações culturais, políticas, sociais ou econômicas estão embutidas na informação; deve avaliar como a mídia retrata eventos e problemas, qual o propósito, autor e público da mensagem, qual apelo é utilizado e quais símbolos existem ali; deve ter apreço pela diversidade de informações, diálogo, colaboração e múltiplas vozes; por fim, deve agir (ação) para se tornar parte do diálogo proposto, saber usar a mídia disponível para expor seus pensamentos, casos e temáticas. Na perspectiva de Livingstone e Van Der Graaf (2010), a mídia tem capacidade de moldar nossas escolhas, valores e conhecimentos, desta forma, uma posição crítica de competência midiática se faz necessária em nossos tempos.

Com currículos escolares que incentivem a literacia midiática, no futuro teremos alunos que sejam capazes de ter o desempenho de alguém letrado midiaticamente. Possuindo uma base de como acessar e analisar conteúdo audiovisual, a espectatorialização de ficções seriadas pode começar a fazer parte do material didático escolar. A opção que sugiro aqui é a série Cells At Work! para ser trabalhada em aulas de Ciências Biológicas do ensino fundamental e médio.

Cells at Work! como ferramenta educacional

Antes de compreendermos a narrativa do objeto é interessante perceber o seu circuito midiático. As animações japonesas, conhecidas internacionalmente como animês, são derivadas, em sua maioria, dos traços estilísticos, e até de histórias e personagens dos mangás. No Japão, as revistas em quadrinhos começaram republicando tirinhas ocidentais e, após, artistas japoneses trouxeram suas realidades, principalmente através de charges com cunho político e social (NAGADO, 2007). Os mangás, assim como os animês, possuem uma característica interessante de universalização, ou seja, em qualquer parte do globo são entendidos estilisticamente e narrativamente, mesmo que abordem particularidades de suas culturas e dilemas. Ainda se há o preconceito que estes são apenas desenhos de personagens com olhos grandes, expressões exageradas e elementos fofos, entretanto, apesar de tudo isto poder estar presente, muitas animações japonesas possuem complexidade narrativa e podem ser usadas como ferramentas educacionais.

A série de tevê Cells at Work! surgiu a partir de um mangá escrito e ilustrado pelo jovem Akane Shimizu e publicado na revista mensal Shōnen Sirius da Kodansha em março de 2015. O mangá ainda está sendo escrito, mas já se aproxima de sua versão final, com procedural sobre o novo coronavírus. A adaptação para televisão foi realizada pelo estúdio David Production e estreou em julho de 2018. No Japão, a ficção foi distribuída por vários canais, tanto de televisão aberta quanto fechada: Tokyo MX, BS11, GYT, GTV, MBS, TV Aichi, RKB, HBC. No Brasil, a série se encontra no catálogo da Netflix[2]. São duas temporadas lançadas com cerca de treze episódios cada. Os episódios são procedurais, isto é, um problema é disposto no início do episódio para que seja resolvido até o seu final. A estrutura do episódio é similar ao paradigma de Syd Field (2001): três atos. No primeiro um incidente incitante e um ponto de virada, no segundo, os confrontos, o midpoint, em que se instaura a crise, e outro ponto de virada, e, por fim, no terceiro, o clímax e a resolução.

[2] Disponível em: <https://www.netflix.com/search?q=cells%20at&jbv=81028791>. Acesso em: 12 nov. 2021.

O enredo conta a história do que acontece dentro de um corpo humano, em que inúmeras células zelam pelos seus trabalhos a fim de que o corpo esteja saudável. Existem dois protagonistas: a Glóbulo Vermelho, que é uma hemoglobina, e o Glóbulo Branco, que é um neutrófilo. No início de cada episódio temos um incidente incitante, que já vem em spoiler no nome do episódio, e uma missão é dada para o corpo resolver. No meio do caos instaurado no corpo, os dois protagonistas se encontram e tentam solucionar a situação. A Glóbulo Vermelho é uma personagem aérea, sorridente e confusa, geralmente não sabe o que fazer em momentos de crise. Já o Glóbulo Branco é sério, forte e conhece bem o corpo humano. Junto a estes dois aparecem outras células recorrentes, como macrófagos, plaquetas e os vasos linfáticos. Os personagens são tridimensionais, com aspectos fisiológicos, sociológicos e psicológicos. A cada episódio uma doença é instaurada e estas, com outras células menos recorrentes, tentam solucionar o problema.

Protagonistas de Cells at Work!

Como ferramenta educacional, a série se apresenta didática. Após música de abertura, temos a primeira apresentação da série, que já aponta para o que ela tem a oferecer: “Dentro do corpo humano, cerca de 37,1 trilhões de células estão trabalhando cheias de energia” (Cells at Work!, T01E01, 01’40’’). Nesta apresentação, visualiza-se os personagens que aparecerão em constância na ficção. Cada personagem é uma célula do corpo humano e ao surgir em tela acompanha uma descrição de sua estrutura e as funções que possui no organismo, isto acontece em uma caixa branca com descrição em algum lugar da tela, além da voz em off da narradora. Por exemplo, quando a Glóbulo Vermelho aparece no episódio Pneumococos (T01E01), temos a descrição: “Glóbulos vermelhos: são vermelhos devido a quantidade de hemoglobina. Transportam oxigênio e dióxido de carbono na corrente sanguínea” (Cells at Work!, T01E01, 02’01’’).

Apresentação dos glóbulos vermelhos

Uma observação interessante sobre a estrutura óssea (EGRI, 2004) desta personagem é que sociologicamente ela é vista como dispersa e desordenada entre os glóbulos vermelhos, principalmente na visão de sua chefe de departamento, que é gentil com a protagonista, mas sabe de suas dificuldades. Além disto, psicologicamente, ela se mostra insegura. Fisicamente, possui uma ponta em seu cabelo vermelho, que lembra um glóbulo vermelho falciforme. Essa questão é vista se olharmos com profundidade a personagem, foi o que Medeiros (2020) propôs no blog Maratona de Sofá. Ele aponta que a personagem possui tal deficiência, que faz a célula parecer uma foice, por isso o nome falciforme. Essas células se rompem facilmente, ou seja, são mais frágeis, causando anemia no corpo.

Glóbulo Vermelho falciforme / Fonte: Blog Maratona de Sofá

Outros desenvolvimentos de personagens intrigantes são os da Eosinófilo e o das plaquetas. A Eosinófilo nasceu na mesma medula óssea do Glóbulo Branco Neutrófilo, o protagonista. Assim como ele, também é um glóbulo branco, responsável por combater bactérias no organismo. Diferente dos neutrófilos, eosinófilos são uma pequena porcentagem dos glóbulos brancos e se multiplicam durante reações alérgicas ou infecções parasitárias. A personagem Eosinófilo, com seus trajes rosas e postura sempre ereta, não é boa na luta contra bactérias, geralmente perde a batalha, o que a faz sofrer bullying por parte de outras células que a consideram incapaz para a função a qual foi designada. É no episódio Intoxicação Alimentar (T01E04) que o espectador acompanha o arco da Eosinófilo, sempre perdendo para bactérias e se sentindo inútil. No clímax, as células descobrem que o que assolou o corpo não foram apenas bactérias em uma intoxicação, e sim um parasita. Naquele momento, a Eosinófilo mostra que seu talento para bactérias pode não ser promissor, mas ela tem outra função na qual é excelente, na luta contra parasitas. A personagem se descobre forte e salva o corpo.

Eosinófilo mata parasita

As plaquetas são personagens crianças, o ponto meigo do animê. Em Arranhão (T01E02), as células as identificam como fofas. Estão sempre trabalhando em equipe e carregando itens de um lado para o outro. Esta união reflete sobre a responsabilidade das próprias plaquetas no sangue, cobrir feridas se agregando quando os vasos sanguíneos são danificados. Quando o corpo é arranhado (incidente incitante), bactérias o penetram, então os glóbulos brancos lutam para manter a ordem. Entretanto, existe um buraco no corpo que faz com que as bactérias entrem e células morram, só as plaquetas podem fechar a raiz daquele mal. A fim de apontar para o quesito de união, uma das plaquetas faz o discurso para os colegas: “Lembrem de ficar juntos para ninguém se perder no caminho. Sem brigar com o amiguinho. Lembrem-se de usar suas GP1b[3] para que não sejam levados para longe” (Cells at Work!, T01E02, 16’2’’). Sendo assim, quem pareceu frágil no início, salva o dia, levando fibrinas e fatores de coagulação na realização do coágulo.

[3] Glicoproteína Ib. Este componente liga-se ao fator de von Willebrand, que proporciona adesão plaquetária no dano vascular.

Plaquetas trabalhando

Ademais o desenvolvimento de personagens, a cada episódio o espectador descobre como as células sanguíneas trabalham diante de um problema no corpo, que geralmente é o nome do episódio, exemplos: pneumococos, arranhão, influenza, intoxicação alimentar, alergia a pólen de cedro, eritroblastos e mielócitos, célula cancerígena, staphylococcus auereus, entre outros.

Em alguns momentos, o animê se mostra repetitivo, pois ao final de cada episódio há um resumo sobre os movimentos realizados pelas células diante do incidente incitante, entretanto, em termos didático, essa repetição é válida. Penso que reflexões como essa e as outras deste medium pode abrir os olhos para literacia midiática em nossos currículos. Espero que logo mais possamos ter ficções seriadas em nossos materiais didáticos, rompendo com a forma clássica do processo de aprendizagem.

Referências

EGRI, Lajos. The Art of Dramatic Writing: Its Basis in the Creative Interpretation of Human Motives. New York: Touchstone, 2004.

LIVINGSTONE, Sonia; VAN DER GRAAF, Shenja. Media literacy. The International Encyclopedia of Communication, First Edition. Edited by Wolfgang Donsbach. John Wiley & Sons, Ltd., 2010. DOI: https://doi.org/10.1002/9781405186407.wbiecm039

MEDEIROS, Fernando. Cells at Work! — Informação e entretenimento. Blog Maratona de Sofá, set. 2020. Disponível em: <https://maratonadesofa.com/cells-at-work-informacao-e-entretenimento/>. Acesso em: 14 nov. 2021.

MIHAILIDIS, Paul. Media literacy and the emerging citizen: Youth, engagement and participation in digital culture. Berna: Peter Lang, 2014.

NAGADO, Alexandre. Almanaque da cultura pop japonesa. São Paulo: Via Lettera, 2007.

FIELD, Syd. Manual do roteiro: os fundamentos do texto cinematográfico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

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