A “plataformização” da Educação: reflexões sobre o uso de tecnologias educacionais no trabalho docente

De aliada a vilã? Como a emergência das novas tecnologias no contexto educacional tem se tornado um problema para pensar o futuro da educação.

Adaptações de emergência no isolamento social

As constantes mudanças na sociedade contemporânea permitem explorar novas possibilidades em diferentes áreas, sobretudo, quando se refere ao uso das Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC). As TDIC estão cada vez mais presentes nas práticas cotidianas dos sujeitos, na vida profissional, pessoal, educacional, entre outros momentos que são oportunos. No ambiente educacional as TDIC possibilitam explorar diversos cenários que permitem ampliar e inovar as práticas de ensino e aprendizagem.

Os benefícios e possibilidades das TDIC nos processos educacionais e nas práticas de ensino e aprendizagem se tornaram ainda mais evidentes durante a última pandemia. No dia 4 de fevereiro de 2020, por meio da Portaria/MS nº 188, foi declarada Emergência em Saúde Pública em decorrência da Infecção Humana ocasionada pelo novo Coronavírus (2019- nCoV), popularmente conhecido como COVID-19. Uma das medidas para evitar a contaminação rápida do COVID-19, foi a suspensão das aulas presenciais. Neste período, foi publicada a Portaria Nº 343, de 17 de março de 2020, que dispunha sobre a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais enquanto durasse a situação de isolamento social, em decorrência da pandemia.

O ensino remoto emergencial foi uma solução temporária, uma medida alternativa excepcional para que pudesse dar continuidade às atividades educacionais em um período que foi necessário o isolamento social. Esta modalidade não pode ser confundida com o ensino a distância, pois o segundo é estruturado com metodologias planejadas, plataformas digitais apropriadas e equipe qualificada para tal. Já o ensino remoto demandou dos professores assumirem diversos papéis.

Com a necessidade de práticas e metodologias de ensino virtuais, veio também a necessidade de utilizarem ferramentas tecnológicas como Google Meet, Google Classroom, Youtube, Softwares, dentre outros. A pandemia do COVID-19 despertou velhas e novas reflexões do campo educacional quanto às possibilidades e desafios do trabalho do docente, das práticas de ensino, da formação continuada do professor para o uso das TDICs, entre outras.

Durante o ensino remoto emergencial os professores e alunos tiveram que se adaptar às possibilidades oferecidas pelas plataformas digitais existentes. Neste momento foi essencial conhecer e aprimorar conhecimentos sobre o uso dessas ferramentas. Logo, o professor precisou assumir o papel de mediador, permitindo que mesmo à distância, o aluno aprendesse, ou na melhor das hipóteses, tivesse o interesse de realizar as atividades naquele momento. Ser autônomo, crítico e reflexivo, em um momento de caos, perdas e medo era algo a ser pensado como impossível, mas o profissional docente precisou se capacitar, aprender e usar metodologias e ferramentas tecnológicas.

Ressalta-se que para a garantia do trabalho docente o professor precisou aumentar a velocidade da rede de Internet, adquirir equipamentos mais potentes com uma capacidade de memória capaz de arquivar centenas de formulários, imagens e áudios para “comprovar” e vender a ideia de que o ensino remoto foi eficiente. Foi uma solução pensada para um curto tempo, no entanto, permaneceu como alternativa ao longo de aproximadamente dois anos. Foi necessário que os professores assumissem diversos papéis, como mediador e orientador, buscando desenvolver as práticas de ensino de maneira crítica e reflexiva para a construção do conhecimento.

Com a volta das aulas presenciais fica o legado das diversas possibilidades que as TDIC proporcionam para as práticas de ensino, e o quanto essas ferramentas podem enriquecer as aulas, quando utilizadas de forma adequada. Nessa perspectiva, compreende-se também a importância dos estudos e pesquisas voltados para a formação do professor para o uso das TDIC, na qual buscam compreender as contribuições, adversidades, demandas e possibilidades encontradas durante o ensino remoto emergencial, de forma que as experiências vivenciadas possam desencadear novas reflexões e ações sobre a utilização significativas da TDIC.

Adaptações emergenciais para a garantia do ensino e da aprendizagem em tempos de pandemia no Ensino Superior à crescente demanda do formato de Educação à Distância

A rápida transição para aulas a distância durante e após a pandemia de COVID-19 trouxe à tona desafios significativos para pensarmos a educação nos dias atuais. Infelizmente, algumas instituições parecem ter priorizado a conveniência em detrimento da qualidade educacional. O cenário é marcado por uma falta de preparação e investimento adequados em infraestrutura tecnológica e capacitação docente, resultando em experiências de aprendizado menos envolventes e, em alguns casos, deficitárias.

Essa corrida para o ensino online muitas vezes negligencia aspectos cruciais do processo educativo, como a interação professor-aluno e a dinâmica de sala de aula, essenciais para o desenvolvimento acadêmico e pessoal dos estudantes. A ausência desses elementos pode comprometer a qualidade do ensino superior, deixando os alunos desconectados e desmotivados. A falta de avaliação e adaptação contínua das práticas pedagógicas nesse novo ambiente também contribui para a queda na qualidade do ensino.

O aumento significativo na carga horária dos cursos presenciais com o preenchimento de 40% das disciplinas no formato EAD levanta preocupações sobre a qualidade e profundidade do aprendizado oferecido. Uma diminuição tão substancial pode comprometer a interação direta entre alunos e professores, bem como a participação ativa em atividades práticas e discussões em sala de aula, aspectos essenciais para o desenvolvimento acadêmico.

Além disso, a dependência excessiva de plataformas digitais genéricas muitas vezes resulta em experiências de aprendizado padronizadas e pouco adaptadas às necessidades específicas de cada curso ou disciplina. A educação a distância, quando mal implementada, pode se tornar uma abordagem superficial, prejudicando a profundidade do conhecimento transmitido.

Nessa mesma direção, a crescente oferta de cursos a distância por instituições de ensino, especialmente durante e após a pandemia de COVID-19, levanta preocupações sobre a qualidade do ensino proporcionado. Algumas universidades parecem ter adotado a modalidade EAD não apenas como uma resposta emergencial, mas também como uma fonte potencialmente lucrativa, muitas vezes em detrimento da excelência acadêmica. Esse movimento reflete uma tendência preocupante ao priorizar o aspecto comercial em detrimento da missão educacional.

O aumento expressivo na demanda por cursos online foi visto por algumas instituições como uma oportunidade de expansão rápida, sem a devida atenção à infraestrutura necessária e à qualidade do conteúdo oferecido. A pressa em capturar o mercado EAD pode resultar em cursos mal elaborados, falta de interação entre alunos e professores, e uma abordagem genérica que não atende às necessidades específicas de aprendizado. A busca desenfreada pelo lucro muitas vezes compromete a integridade acadêmica.

É importante sinalizar que a comercialização exacerbada de cursos a distância pode levar a práticas questionáveis, como a oferta de diplomas sem o devido rigor acadêmico. A competitividade no mercado EAD pode incentivar estratégias que visam atrair estudantes a qualquer custo, muitas vezes às custas da qualidade educacional.

Evidentemente que as mudanças provocadas pela pandemia trouxeram impactos significativos, mas não devem se resumir a isso. As instituições precisam reavaliar suas abordagens, focando não apenas na expansão do mercado, mas também na entrega de educação de alta qualidade que verdadeiramente enriqueça a experiência de aprendizado dos estudantes.

A implantação e o uso das plataformas educacionais na gestão das escolas públicas: como fica o trabalho docente?

A pandemia do Covid-19 revelou duas faces da educação no Brasil: aquela educação que possibilitou à crianças e jovens, com melhores condições financeiras, disponibilidade acessível aos recursos tecnológicos para o ensino remoto e aquelas limitadas de recursos que os únicos caminhos eram ou acesso limitado à orientação das atividades via aplicativos de interação social de celulares ou a obtenção das atividades impressas via escola. Estados e municípios, em busca de soluções rápidas recorreram a plataformas digitais genéricas para a “garantia do ensino”.

No entanto, a implantação de plataformas digitais não datam do evento pandêmico, mas sim desde os anos de 1990 com diversas reformas na gestão pública, principalmente, mudanças no setor educacional a partir da parceria público-privada, sob a alegação de que modelos gerenciados pelo setor privado resolveria a “crise” do capital.

É notório que esse discurso vem se fortalecendo ao longo dos anos e perceptível principalmente a partir do ano de 2015 nas discussões para a implantação da reforma para o Novo Ensino Médio. O mercado privado, marcado pelas forças de institutos e fundações empresariais a partir de políticas neoliberais, passaram a fazer parte da agenda de discussão sobre os novos rumos a serem tomados para o Ensino Médio no país.

O que vemos hoje, após a implantação do Novo Ensino Médio, em muitos estados brasileiros, é uma hibridação de formas de gestão educacional que usam plataformas digitais específicas para operar tanto na organização curricular, implicando desde a escolha dos cursos técnicos que são integrados ao ensino médio, quanto das disciplinas escolhidas para integrar os itinerários formativos.

Essas plataformas integram os sistemas de dados relacionados à vida acadêmica dos alunos e do trabalho docente, integrando informações de frequência escolar e aulas ministradas. No entanto, a inserção para a garantia fidedigna desses dados intensificou as atividades laborais tanto dos professores, que utilizam diariamente o diário escolar, quanto dos demais servidores que alimentam essas plataformas, tornando-se prisioneiros, uma vez que, precisam cumprir metas em tempo hábil.

A pesquisadora Maria Aparecida Canale Balduíno, professora da Universidade Nacional de Brasília, analisou as implicações geradas nas escolas públicas, por uma tecnologia educacional presente em um programa desenvolvido por um instituto privado no Estado de Minas Gerais, e afirma que, por meio de um sistema de gestão, em forma de ciclos, ou rotas, esse mecanismo empresarial, induz a responsabilização dos resultados às escolas, alterando nas ações pedagógicas, comprometendo a autonomia da gestão escolar, ferindo o que rege a política de uma gestão democrática. Além do mais, não é possível comprovação se há melhoria no desempenho dos discentes nem nos índices de evasão escolar.

A obrigatoriedade do uso da plataforma no ensino fundamental

Em algumas escolas, o uso de plataformas digitais assinadas pelo governo tornou-se obrigatório. Há casos em que os professores têm horários marcados para poderem realizar com a turma, o acesso e o cumprimento do cronograma semanal.

Tais plataformas chegaram sem aviso prévio e os profissionais precisaram se adaptar e aprender a utilizar a ferramenta sem nenhuma orientação. Neste caso, o trabalho em equipe proporcionou o resgate de muitos docentes que não possuíam preparo algum.

Plataformas para o ensino de matemática, língua estrangeira, redação e leitura devem ser acessadas independente da quantidade de aulas ministradas na semana. Há também a obrigatoriedade de postagens de tarefas de casa que chegam prontas e inflexíveis.

Não há de se negar que recursos digitais têm potencial de diversificar o ensino, promover o aprendizado e desenvolver a capacidade crítica dos estudantes. Porém, exigir sua utilização sem considerar o andamento do currículo e a realidade da turma faz com que os profissionais se sintam, no mínimo, desconfortáveis.

Diante disso, notam-se cobranças infundáveis que partem das Secretarias de Educação e descem como cascata até chegarem aos professores, reféns do cronograma vinculado ao calendário. Estes, muitas vezes diante de laboratórios de informática precários, sinal de internet instável, falta de profissional especialista em tecnologia da educação partem para uma zona de inquietação que prejudica não só o profissional, mas a escola em sua totalidade.

Idealiza-se uma escola ideal, incrementada de recursos tecnológicos e profissionais capacitados, mas em geral, o ideal se distancia substancialmente do real. Observa-se a semelhança deste enrijecimento, cobrança e inflexibilidade com o processo de industrialização e cumprimento de metas de produção vinculados ao capitalismo.

Espera-se que haja maior flexibilização no uso das plataformas bem como que os profissionais possam adaptar as atividades de acordo com o conteúdo trabalhado com a turma e o desenvolvimento dos conteúdos propostos no currículo escolar.

Uma crônica:

O ano se iniciou, as orientações sobre o desenvolvimento do trabalho estão sendo dadas, e, de repente, os professores se deparam com a obrigatoriedade de cumprir horários semanais marcados para a utilização das plataformas digitais exigidas pelo governo. Professores recém formados ou experientes, professores recém chegados ou com muito tempo de casa, o que se observa é a necessidade de um aprendizado e adaptação urgentes. O primeiro acesso será na próxima semana.

Então inicia o trabalho conjunto… Alguém aprende antes e passa a compartilhar os conhecimentos com os colegas de trabalho. Forma-se uma rede de compartilhamento de conhecimentos.

Uma semana se passou e aquela professora se preocupa porque ainda não aprendeu e precisa ensinar a turma terça feira na segunda aula.

_ Professora, a senhora sabe que hoje é seu dia de levar o sétimo ano no laboratório. Já se organizou?

Disse a diretora.

Pressionada, a professora diz que ainda não conseguiu acessar, pois o sistema não aceita seu login, mas ela precisa entrar, e vai levar a turma. Apreensão no ar. A turma desce para o laboratório de informática e a professora pede que os estudantes façam seu primeiro login, se familiarizem com a plataforma, gerem sua senha e procurem conhecer o site.

Uma estudante encontra a lista de atividades, que já está pronta, postada pelo governo, sem sequer saber se a professora explicou o conteúdo em sala… e mais uma vez a professora tem que cumprir o cronograma.

Atividade localizada, a turma passa a responder as tarefas e a professora, que ainda não conseguiu acesso pede para ver o que está disponível na plataforma pelo login de uma aluna. Organizada, anota as atividades disponíveis na plataforma para planejar os futuros acessos da turma.

Próxima semana, login efetuado com sucesso! A professora encaminha mais uma vez a turma ao laboratório para fazer atividades preparadas por outro profissional, inflexíveis para adaptações.

Na terceira semana foi feriado no dia de levar a turma ao laboratório. Sem possibilidade de acesso em outro horário, a professora não cumpre o cronograma da semana. O sistema avisa a secretaria de educação, que cobra a diretora, que cobra a professora, que diz que foi feriado.

_ Você não pode descumprir o cronograma. A secretaria está cobrando.

Diz a diretora.

_ Mas foi feriado e não tinha outro horário disponível. O calendário está completo por todos os outros professores que precisam cumprir seus horários, assim como eu.

Responde a professora.

Na semana seguinte segue a rotina de laboratório uma vez na semana…

Alunos: Emylia Angélica da Costa, Flávia Helena Pereira, Nayara Rocha Fernandes, Valdemir Soares dos Santos Neto

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Valdemir Neto
COMUNICAR: popularizando a Literacia Midiática

Doutorando e mestre em Ciências da Linguagem. Estuda memória, cultura da convergência e televisão.