Aviso prévio: conteúdo altamente problemático no streaming

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Literacia não é somente ler e escrever. Hoje, incorpora o visual, o sonoro e o acesso à produção e aos meios de produção audiovisuais e digitais de forma crítica. Diante de um mundo mediatizado pelo audiovisual, com plataformas de streaming como Disney+, Netflix e YouTube distribuídas globalmente para serem consumidas em telas grandes, de TV, ou pequenas, de tablets ou telefones celulares, é pertinente que se observe a responsabilidade que estas plataformas têm sobre o que produzem e distribuem diante das demandas atuais da sociedade. Nos atemos, neste texto, ao contexto do Disney+, serviço de streaming da The Walt Disney Company, responsável por produzir e licenciar o conteúdo que distribui. Isso difere o Disney+ de plataformas como o YouTube ou o Watch, do Facebook, cujos conteúdos são produzidos pelo próprio usuário e a exigência da governança sobre tais conteúdos se dá ainda entre os próprios usuários ou através das instrumentos legais para que estas plataformas controlem melhor o que seus usuários produzem e distribuem em seus canais. Isso, por si só, já é relevante para entender que há esta diferença basal entre as empresas que são proprietárias verticais de seus negócios, que podemos classificar como publishers de streaming (e, aqui, o Disney+ se situa ao lado outros serviços como a Netflix, Amazon Prime Video, Max, a Apple TV+, entre outras) e as empresas proprietárias de plataformas para as quais o usuário produz seu conteúdo (aqui, entram o YouTube, o Instagram, o Twitter e demais redes sociais).

Lançado em 2020 no Brasil, o Disney+ disponibiliza, desde então, um catálogo com mais de 660 filmes, 100 curtas e 200 séries. A navegação na plataforma pode ser feita por títulos ou por subcanais de franquias proprietárias da Disney, como Marvel, Star Wars, Pixel e National Geographic. O Disney+ se propõe a ser um ambiente seguro para crianças, com conteúdos que considera pouco ofensivos ou violentos, possíveis de serem assistidos em família, sem causar constrangimentos ou grandes estranhamentos. Ainda assim, a plataforma disponibiliza recursos para ampliar o controle dos pais sobre o que seus filhos assistem.

Estereótipos negativos e racistas no filme Dumbo (1941)

Entre o que pode ser filtrado pelo controle dos pais, estão filmes da Disney que, hoje, são classificados como racistas, sexistas e, em linhas gerais, reforçam estereótipos que o debate progressista na sociedade está se esforçando para desconstruir. Essa posição é assumida pela própria empresa e, por isso, filmes como Fantasia (1940), Dumbo (1941), A Dama e O Vagabundo (1955), Aladdin (1992), Pocahontas (1995), A Princesa e o Sapo (2009), entre outros, apresentam, antes de sua exibição no Disney+, uma tela com a seguinte mensagem:

“Este programa inclui representações negativas e/ou maus tratos de pessoas ou culturas. Estes estereótipos eram incorretos na época e continuam sendo incorretos hoje em dia. Em vez de remover esses conteúdos, queremos reconhecer o impacto nocivo que eles tiveram, aprender com a situação, e despertar conversas para promover um futuro mais inclusivo juntos”.

Além do texto, a tela indica o link para o site https://storiesmatter.thewaltdisneycompany.com/, no qual a Disney expõe os erros do passado e se compromete a reconstruir o presente.

Entre os exemplos dos conteúdos racistas, sexistas e estereotipados de conteúdos Disney, expostos pela própria empresa em seu site e, por isso, sujeitos à cartela que antecede a exibição na plataforma Disney+, estão:

  • os personagens de Aristogatos em representações de povos asiáticos com sotaques, dentições e olhos exageradamente caricaturados;
  • a denominação dos povos nativos americanos de “pele-vermelhas” no filme Peter Pan;
Povos nativo-americanos representados de forma estereotipada Peter Pan (1953)
  • e o tema de abertura do filme Aladdin, que qualifica povos árabes como bárbaros.

Veio a público que a Disney já chegou a excluir cenas de seus filmes, como no caso de Toy Story (1999), no qual o personagem Pete Fedido pega nas mãos de duas bonecas e diz que vai arrumar um papel para elas no longa, caracterizando assédio comumente associado ao contexto da indústria do audiovisual.

Toy Story (1999)

Porém, para boa parte de seu catálogo publicado na plataforma Disney+, a empresa adotou a postura de dialogar com a audiência, assumir os equívocos do passado de forma a mantê-los registrados, refletir sobre o presente com entidades parceiras e, acima de tudo, assumir que a audiência é capaz de discriminar, junto com a empresa, comportamentos preconceituosos, racistas e sexistas de forma a usar seu conteúdo audiovisual como uma educação para o presente de forma a não anulá-lo ou editá-lo mas, sim, ressignificá-lo. Essa posição traz riscos, pois não necessariamente a audiência irá concordar com a manutenção das imagens e dos filmes no catálogo. Mas a companhia assume a posição de que o risco é válido e convida o público para manter o debate aberto, com o compromisso de refletir sobre produção presentes e futuras. Isso se dá de forma que a empresa possa manter ativos produtos produzidos no passado ainda possíveis de serem rentabilizados nos contextos de recepção contemporâneos e, para isso, considera que a audiência é capaz de negociar sobre os significados do conteúdo.

Contextos de produção e recepção

O teórico britânico-jamaicano Stuart Hall entende que a audiência consome conteúdos de maneira não exatamente crítica. Mas considera também a audiência capaz de perceber mensagens subliminares e vieses de conteúdo. Na visão de Hall, o público decodifica os conteúdos que recebe a partir de um contexto que é, em essência, diferente daquele de quem codifica. Isso permite que a audiência negocie percepções, assimilações e críticas sobre o que assiste de forma a evidenciar que não há uma simetria entre quem codifica e decodifica, mas há um espaço amplo para elaboração crítica, debates e articulações não exaustivas sobre entendimento de mensagens.

“Mal-entendidos existem. Mas a vasta gama deve conter algum grau de reciprocidade entre os momentos da codificação e decodificação; do contrário, não poderíamos falar de uma efetiva troca comunicativa. (2003, p. 399)”

Essa premissa de que a audiência tem essa capacidade de discernimento é a postura assumida pela Disney ao tratar de manter conteúdos problemáticos em sua plataforma global de streaming. Isso pressupõe alguns riscos:

  • parte do público pode entender que o nível do problema do conteúdo é alto e este deveria ser removido da plataforma;
  • outra parte do público pode apontar que o tratamento da Disney sobre o tema é exagerado e sequer deveria haver um aviso prévio sobre o tema e uma retratamento sobre o passado no contexto atual;
  • outra parte a audiência pode ainda não entender o que está sendo debatido sobre a empresa, não se ocupando da leitura do que o disclaimer antes dos conteúdos convida para refletir.

Ou seja: a empresa sempre assumirá posição, seja qual for sua escolha.

A literacia midiática

A literacia midiática é transversal a várias áreas do conhecimento. Usar a cultura digital para ampliar a discussão sobre temas racistas, lgbtfóbicos, reconhecendo os problemas do passado de modo a repensar o presente e o futuro, é pertinente desde que haja competência entre os entes envolvidos neste debate, sejam nas empresas produtoras de conteúdo, seja na sociedade que os consome.

Os autores espanhóis Joan Ferrés e Alejandro Piscitelli propõem desenvolver a literacia midiática de forma participativa, a partir de uma competência crítica que precisa ser desenvolvida para que todos os envolvidos nos processos de produção e consumo de produtos midiáticos tenham conhecimentos, habilidades e atitudes consideradas necessárias para compreender, de forma autônoma, contextos de codificação e decodificação de mensagens. Um dos exercícios experimentais que estes autores observam como capazes de promover essa autonomia crítica e a compreensão das camadas simbólicas de produção e do consumo midiático entre a audiência é um material lúdico-pedagógico produzido pelo Conselho de Audiovisual da Catalunha (2007). Este material propõe o seguinte exercício: a partir de imagens de guerra fornecidas pela agência Reuters, os participantes editam cinco imagens para dar uma notícia, justificando suas escolhas. O intuito é que percebam que características objetivas factuais da notícia são combinadas ao universo subjetivo dos editores, de forma que carregam elementos construtores de realidade, ou seja, com um ponto de vista.

Propomos a análise da iniciativa da Disney de não remover do catálogo os conteúdos problemáticos do Disney+ à luz do atual contexto de produção e recepção midiática com base no modelo de Ferrés e Piscitelli.

  • Tecnologia: a audiência tem acesso a conteúdos distribuídos globalmente pela plataforma Disney+ e pode escolher ou não assisti-los;
  • Linguagem: a audiência tem contato com as pautas sociais discutidas atualmente sobre diversidade e representatividade ou tem a capacidade de entender que a discussão é justa e pertinente, independente do ponto de vista que adote diante do tema;
  • Processos de Interação: a audiência tem capacidade de apreciar mensagens provenientes de culturas diferentes, bem como pesquisar e interagir com as diferenças;
  • Processos de Produção e Difusão: a audiência compreende que o contexto de produção e difusão do conteúdo é global e, por isso, globalmente precisa estar aderente e coerente às diferentes audiências;
  • Ideologia e Valores: a audiência tem condições de compactuar ou, ao menos, entender as posições críticas da empresa, de forma a modular seu pensamento de maneira a não invalidar a proposta da Disney sobre o tratamento do tema;
  • Estética: a audiência tem capacidade de identificar os pontos apontados pela empresa que merecem uma interpretação crítica em nosso tempo.

É natural que uma pesquisa de recepção com as audiências de produtos Disney em diferentes regiões do planeta poderiam validar as acepções acima. Mas, de alguma maneira, elas reforçam o ponto de vista da empresa em assumir que o público possui uma capacidade crítica revisionista de forma a acompanhar os produtos da empresa em seu contexto contemporâneo de distribuição de modo a não invalidar a proposta de atuação. É uma forma de construir o presente sem anular os problemas do passado.

Referências bibliográficas

Catálogo Disney+ https://disneyplusbrasil.com.br/disney-plus-tudo-o-que-voce-precisa-saber/#:~:text=Em%20rela%C3%A7%C3%A3o%20ao%20conte%C3%BAdo%2C%20o,2800%20filmes%20e%201500%20s%C3%A9ries.. Acesso em: 27 maio. 2023.

FERRÉS, J.; PISCITELLI, A. Competência midiática: proposta articulada de dimensões e indicadores. Lumina, [S. l.], v. 9, n. 1, 2015. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/lumina/article/view/21183. Acesso em: 27 maio. 2023.

HALL. S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

LIVINGSTONE, S. Media literacy and the challenge of new information and communication technologies. London: LSE Research Online, 2004.
Disponível em: http://eprints.lse.ac.uk/1017. Acesso em 27 maio. 2023.

Stories Matter: The Wald Disney Company. Disponível em https://storiesmatter.thewaltdisneycompany.com/. Acesso em 27 maio. 2023.

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Leonardo Moura
COMUNICAR: popularizando a Literacia Midiática

Doutorando em comunicação pela ESPM-SP. É autor de Como Analisar Filmes e Séries na Era do Streaming (Summus, 2023) e Conteúdo de Marca (Summus, 2021).