Bom dia, Verônica: dimensões da competência midiática
Produção nacional da Netflix denuncia violência doméstica e evidencia casos de feminicídio no Brasil
Por Veruska Yasmim
Bom Dia, Verônica completa três anos da estreia de sua primeira temporada em 1º de outubro de 2023. Baseada no romance homônimo de Ilana Casoy e Raphael Montes, a série produzida pela Netflix, dirigida por José Henrique Fonseca, trata de violência contra a mulher, com ênfase na violência doméstica.
A trama conta a história de Verônica Torres (interpretada por Tainá Müller), que trabalha como escrivã na Delegacia de Homicídios de São Paulo e presencia um suicídio no local de trabalho, de uma mulher vítima do golpe “Boa noite, Cinderela” chamada Marta Campos.
Revoltada com a falta de ação de seu chefe, o delegado Wilson Carvana (Antônio Grassi), Verônica decide investigar por conta própria crimes contra mulheres. Um dos casos é o de Janete(Camila Morgado), uma mulher que sofre violência física e psicológica praticada pelo marido, o policial Cláudio Antunes Brandão.
Como ocorre com a maioria das mulheres vítimas de violência, Janete tem medo do agressor, é machucada, fiscalizada, privada de acesso à internet, dinheiro e contato com a família. Sem autonomia para contestar o esposo, ela pede ajuda à Verônica depois de assistir a uma entrevista da policial num telejornal sobre o suicídio da vítima que se mata após ter sido dopada.
Ao longo de oito episódios é mostrado os tipos de opressão que Janete sofre. O agressor, por sua vez, a manipula(por meio de olhares e falas) para que a ela fique cada vez mais vulnerável, sem autonomia, identidade e ação.
A série faz questão de evidenciar diferentes nuances de relações abusivas e traz de maneira verossímil as atitudes de um agressor, onde o trato não é sempre agressivo, pois há oscilações de ternura e carinho, que dão espaço para explosões de ódio e violência extrema.
Essa variação de humor, inclusive, nos ajuda a ilustrar e compreender a dificuldade de muitas mulheres para denunciar seus parceiros. Isto é, ao ter esperanças na mudança de comportamento do companheiro, a vítima fica presa no chamado “ciclo da violência”, que é o aumento da tensão, ato de violência e lua de mel (INSTITUTO MARIA DA PENHA, 2023).
Deplorávelmente, o desfecho de Janete é o mesmo de muitos casos da vida real. Verônica não consegue salvá-la e a personagem morre queimada pelo próprio marido. Ainda que a história seja uma ficção, com atores e roteiro, ela ecoa muitos problemas atemporais e nos lembra que a violência doméstica é um problema real e podemos conviver mais perto do que imaginamos com “Janetes” e “Brandões”.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, todos os tipos de violência contra a mulher no Brasil aumentaram em 2022, um total de 2,9% a 2021. Ao todo, foram mais de 245,7 mil mulheres que procuraram delegacias para registrar ocorrência de lesão corporal por misoginia ou violência doméstica.
Os casos de feminicídio também bateram record,desde que a lei de feminicídio entrou em vigor, em 2015. Segundo o Monitor da Violência, mais de 1,4 mil mulheres foram mortas, em média de uma a cada seis horas. Dados alarmantes para um país que já ocupa o quinto lugar em um ranking de 83 nações que mais matam mulheres, conforme apontam dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.
Mas, e a Competência Midiática?
Com o surgimento de novos dispositivos tecnológicos, acompanhamos constantes transformações no campo da comunicação. Agora,mais do que nunca, é necessário adquirir senso crítico para interpretar a realidade e os discursos promovidos pela mídia. É preciso desenvolver competências midiáticas.
Ferrés e Piscitelli(2015) entendem que ter competências é apresentar “uma combinação de conhecimento, habilidades e atitudes consideradas necessárias para um contexto determinado” (p.3). Os pequisadores relacionam o conceito com a capacidade de contribuir para o desenvolvimento da autonomia pessoal de cidadãos e para o fortalecimento da democracia. Borges e Silva(2019) vão ao encontro dessa perspectiva e acrescentam que a literacia midiática está relacionada à capacidade de acessar, analisar e avaliar as mensagens transmitidas pelos meios de comunicação social.
Voltando aos estudos de Ferrés e Piscitelli (2015: 8-14), os autores defendem que “a competência midiática envolve o domínio de conhecimentos, habilidades e atitudes relacionadas a seis dimensões básicas, a partir das quais são elaborados os indicadores”. As dimensões linguagem, ideologia e valores, estética, tecnologia, processos de interação e de produção e difusão podem estar relacionadas a dois âmbitos: ao de análise, quer dizer, participação do público que recebe e interage com as mensagens, e ao âmbito da expressão, ou seja, o modo como as mensagens são produzidas a partir da interação.
Considerando isso, os indicadores definidos para a análise da competência midiática neste trabalho estão relacionados com os dois âmbitos e retornam ao entendimento de dois momentos do processo comunicativo: a criação audiovisual (plano da expressão e do conteúdo) e a circulação (conversação e produção de conteúdos no Instagram e Facebook).
Salientamos a compreensão de que a coleta de dados em redes sociais como no Instagram, Facebook e YouTube é limitida pelo fato dos conteúdos participarem de um corte específico, como apontado por Borges et all. (2022). Vale também dizer que a compreensão das dimensões da competência midiática, assim como todos fenômenos humanos, deve ser visto de forma holística. Nenhuma das variáveis que o compõe pode ser explicada se não tiver em interação com todas as outras.
Isto posto, vamos realizar a análise das competências midiáticas a partir do
entendimento da criação audiovisual. Para isso, vamos nos ancorar nos indicadores de qualidade da criação(BORGES. et all, 2022) que se destinam a auxiliar na reflexão sobre papel e a inserção do público ao interagir com a narrativa e cuja produção de sentido pode acrescentá-la ou desenvolve-lá melhor.
Alicerçados na compreensão“[…]de que as narrativas contemporâneas propiciam experiências estéticas diferenciadas, a partir de pistas encontradas nos planos da expressão e do conteúdo, que podem estimular a leitura crítica” (BORGES. et all 2022: 29–29), os autores do e-book “A qualidade e a competência Midiática na ficção seriada contemporânea no Brasil e em Portugal” definem como indicadores de qualidade de criação: a composição imagética, a experimentação da linguagem audiovisual, setas chamativas, efeitos especiais narrativos, recursos de stotytelling e referências intertextuais.
O que aprendemos com “Bom dia, Verônica”?
Como produtos audiovisuais, como Bom dia Verônica podem estimular o senso crítico da sociedade?
Continua comigo que vamos analisar a seguir quais elementos componentes da série — e de sua produção — que contribuem para a formação de competências midiáticas relacionadas à prevenção e enfrentamento da violência contra as mulheres.
No que se refere à criação audiovisual podemos dizer que a ambientação de Bom dia, Verônica é marcada por cenas de dominação e tortura e composta por locações internas(casa, delegacia) e externas(rodoviária, ruas). Alguns cenários recorrentes contribuem diretamente para o desdobramento dos arcos narrativos centrais. Como, por exemplo, a casa de Janete e Brandão, onde acontecem os abusos, a delegacia, onde Verônica trabalha e “acolhe” outras mulheres vítimas de golpes, e o sítio onde o tenente coronel da PM e marido de Janete mata suas vítimas.
A ambientação ajuda na delimitação da violência sofrida por Janete e, posteriormente, como este trauma reverbera no ambiente doméstico. As poucas sequências externas da cidade de São Paulo, onde a série se passa, são usadas para ilustrar quando as vítimas, meninas e mulheres que vêm para cidade trabalhar, são abordadas por Janete — que forçada por Bandrão — promete emprego de diarista a elas.
O recorte cronológico de Bom dia, Verônica também está presente na ambientação da série como algo contemporâneo. É sinalizado por objetos de decoração, figurinos e automóveis. Porém, não são datados a ponto de o telespectador identificar de maneira instantânea a marca temporal da atração, contudo remete a algo recente. Pela caracterização dos cenários, podemos inferir sobre o contexto de cada família apresentada. Enquanto Verônica parece morar em uma casa mais moderna, a decoração da casa de Janete indica uma residência simples, ornamentação estilo anos 90, o que podemos associar, de certa forma, às personalidades dos personagens.
Um dos aspectos centrais da ambientação da série é o diálogo
que o recurso estabelece com a dualidade de Brandão. Na história a imagem construída pelo policial de um homem trabalhador ligado à família contrasta com a de serial killer. Este contraponto pode ser observado, por exemplo, em momentos de agressão dentro e fora de casa com instantes de carinho e religiosidade.
Essa áurea espiritual é construída, sobretudo, pelos cenários compostos por elementos sacros como crucifixo, velas e Bíblia. Esses signos formatam o universo religioso de Brandão que, ao mesmo tempo, tem reverência pelo sagrado agride sua companheira. Atitudes paradoxais que reforçam que agressores não tem perfil e nem classe social. São homens que assim como Brandão podem se esconder sob o manto da religiosidade.
A fotografia da trama se concebe como elemento significativo na concepção da unidade visual da temporada, à medida que cria arranjos para os diferentes cenários por onde a série caminha. Os quadros são marcados por contraste entre luz e sombras que reflete a ambivalência dos personagens e confere dramaticidade à trama. Segundo Arthur Eloi, colunista do site Omelete, “[…] a fotografia acerta em cheio ao conduzir o suspense com as cores e luzes macabras dos filmes neo noir”. Exemplo nítido desse cenário são as cenas do sítio, onde Brandão faz seus rituais macabros e tortura Janete ao obrigá-la a presenciar a morte de outras mulheres a sangue frio.
Ao mesmo tempo, podemos perceber tons leves, e artigos que se combinam, disfarçando toda violência e terror por traz da vida naquele local. Quando Nice irmã de Janete vai visitá-la também é possível observar que Janete retoma todo frescor de quem ela já foi, se enxergando de outra maneira. Esses momentos também são pautados em cores mais leves e alegres. Já a delegacia tem o aspecto cinzento, preto, cores mais frias que remetem a função do local.
São predominante nas cenas as cores como amarelo, verde, azul, preto e branco, que também integram a abertura da série, nela acompanhamos cenas que remetem o trabalho de Verônica na delegacia, seus dilemas, o âmbito doméstico e religioso que Janete sofre violência, a instituição Polícia que Brandão usa como escudo para esconder seus crimes e — também — o pano vermelho e a caixa que o policial colocam na cabeça de Janete.
Em entrevista à revista Cláudia, da editora Abril, a atriz Carmila Morgado, que interpreta Janete, afirmou que a principal mensagem que a personagem poderá passar para as mulheres que assistirem à série é a metáfora da caixa de passarinho que Brandão coloca na cabeça da dona de casa.
Para artista, a caixa de pássaros, onde a personagem é trancada e obrigada a presenciar situações horríveis, semelhantes à vida diária dela, simboliza a prisão e a dificuldade que a maioria das mulheres têm de reconhecer quando está num relacionamento abusivo.
Em livre interpretação, acrescento que a figura de linguagem também pode ilustrar as diversas formas de violência contra a mulher que podem acontecer dentro de casa, na rua, na tela. Às vezes fingimos que não as vemos ou as ignoramos por distintos fatores mas, sobretudo, porque a violência contra a mulher apresenta múltiplas camadas assim como a que Brandão trata Janete.
Os planos adotados em “Bom dia, Verônica” se destacam, em especial, durante as cenas de tortura e de agressões, com planos fechado(“close-up”) como, por exemplo, detalhe do corpo de Janete e das vítimas vítimas de outro golpe. Os enquadramentos são mostrados, numerosas vezes, sob o ponto de vista da vítima. A câmera fica bem próxima às mulheres ou parte de seus rostos e corpos, de modo que suas expressões e movimentos ocupam quase todo o cenário, sem deixar grandes espaços à sua volta. São planos de impressão e intimidade que dão mais valor à personagem e menor ao ambiente. Nesse sentido, o público pode se tornar mais empático ao sofrimento das mulheres e ficar mais impactado sobre a violência de gênero que tem como a maior parcela a categoria feminina.
Em algumas sequências, também podemos observar o uso de contra plongée, uma estratégia para transmitir a sensação da tirania de Brandão, sua imagem onipotente e autoritária sobre sua mulher, Janete. Esse tipo de cena onde vemos a cena de baixo para cima, como se a câmera estivesse deitada e apontada para cima(em direção ao policial), tem como objetivo dar a sensação de poder, aumento de força ou crescimento para o personagem que está sendo filmado no plano plongée — de cima para baixo (Figura 12).
Além de acompanhar o percursso narrativo da série, o uso das cores no figurino em Bom dia, Verônica representa as características e o papel dos personagens. O núcleo Janete e Brandão tem como propósito passar a ideia de um casal anacrônico (FARAGE, 2020), parado no tempo. Para isso, a figurinista da série Marina Franco mistura, particularmente, peças atuais e vintage em Janete para reforçar a ideia de que a personagem ficou presa no tempo e perdeu o contato com o mundo e de si mesma.
Há uma cena específica, aliás, que ela decide sair de casa com a irmã e usa um figurino totalmente desconectado da realidade, com destaque aqui para uma bota branca de cano alto, que remete às botas que Xuxa usava em seus programas nos anos 90, no auge de sua carreira. Além disso, podemos notar rosa e vinho nos looks de Janete, “cores quentes que emocionalmente são ligadas a afeto, maternidade, paixão, amor e romantismo” (FARAGE, 2020).
Brandão é o marido que humilha e também agrada. Para frisar que homens violentos podem estar em qualquer lugar, Brandão não é caricato. É um personagem construido com viés bastante brasileiro, por meio de peças práticas, esportivas, calça reta. No tocante à cor, o personagem usa muito verde que, de acordo com a figurinista Mariana Franco é uma estratégia perigosa, um dos pontos altos do figurino. “Os verdes e amarelos são mais frios, refletindo a personalidade do personagem” (FARAGE, 2020).
Verônica, por sua vez, apresenta uma vestimenta simples. A anti-heroína da série usa muita calça jeans, t-shirt e regata com cores neutras, preto e branco, que estão diretamente ligadas à profissão de escrivã que se aventura na investigação de crimes. A Anita segue essa mesma lógica, mas apresenta roupas mais sofisticadas.
A edição de Bom dia, Verônica também se utiliza de analepses, em outros termos, flashbacks, a interrupção de uma sequência cronológica narrativa pela interpolação de eventos ocorridos anteriormente na vida dos personagens. Apesar de usar esses recursos, a série não expõe todos os acontecimentos passados dos personagens.
As sequências da trama são conduzidas, na maior parte, por músicas incidentais, de suspense, ação. Além dos clássicos da MPB, traz também versões reinventadas para combinar ainda mais com a história apresentada e tem trilha sonora da série assinada por Dado Villa-Lobos e Roberto Schilling que disponibilizam na plataforma de streaming Spotify uma playlist entitulada “Bom dia, Verônica”(Música da série Original da Netflix). A Netflix, ao encontro da proposta, também disponibilizou no mesmo serviço digital de música a playlist “Bom dia, Verônica” S1 Official Playlist” com 35 músicas começando com uma canção da cantora brasileira Elza Soares, “Maria da Vila Matilde”, que toca ao final do segundo episódio, fazendo alusão à violência doméstica.
Embora a série de suspense e drama não seja inspirada em uma história real e verdadeira, sendo uma obra de ficção, ela nos lembra dos desequilíbrios de poder na sociedade e os abusos decorrentes desse contexto. Isso de dá, tal como, por meio de diferentes camadas que cada personagem apresenta. Embora não tenha havido nenhum serial killer com o nome de Coronel Brandão na vida real, seu perfil pode corresponder a vários serial killers no Brasil com antecedentes policiais.
Outro aspecto interessante no que se refere aos desdobramentos reais e fictícios, é a caracterização do arco de Verônica. Ao colocar uma detetive mulher, que muitas vezes cai no fundo da disputa pelo poder, no meio do problema, o criador destacou o aspecto da desigulade gênero.
À vista disso, considerando todas as informações, a série pode não ser uma documentação precisa de um caso criminal real, mas apresenta partes bastante realistas. De acordo com o professor e pesquisador francês de estudos de televisão e audiovisual François Jost, os gêneros televisivos podem ser classificados pautados em três mundos: o real, o fictivo e o lúdico.
O autor informa que apesar de existir uma oposição radical entre os dois primeiros, “a realidade parece intrometer-se na ficção de várias maneiras(2009, p.18). ” A primeira localiza-se no nível da globalidade da história contada. Mesmo que a obra seja enunciada como realidade fingida, existem trechos da série que realmente fazem referência como “cidade de São Paulo”. Ademais, a ficção de Bom dia, Verônica é desempenhada por Eu-Origem fictícios(atores) e não Eu-Origens reais.
O segundo ponto que permite complefixicar a questão da ficção com a realidade é a semiótica. O que diferencia a fantasia do “verdadeiro” é, para início de conversa, a diferença de estatuto do referente, existencial(real) e essencial(fictivo). A ficção apesar de parasitar a realidade pegando seus elementos, pode inventar. Nesse contexto, os gêneros apresentariam — segundo Jost(2009) — dois tipos de promessas : a ontológica(constituitiva, com base no gênero) e pragmática(rótulo dos programas).
Esse ato de nomeação pode, neste caso, influenciar o uso de um programa pelos telespectadores. Cada uma desses promessas é gerada sobre uma relação do documento aproximadamente perto e fiel à realidade, o que se estabelece pela construção de enunciador(cujo ponto de vista é adotado)e por uma figura com aparência semelhante à especie humana.
Jost(2009) propõe três tipos de promessas de realidade dos gêneros: restituição, testemunho e reconstituição. A primeira o enunciador seria a própria realidade, a imagem “fala por si”, há uma anulação do olhar e o máximo de objetividade pela lente. Nesse caso, a promessa ontológica seria a crença do espectador que as imagens não sofrem nenhum trantamento (ex: câmeras de vigilância/ BBB); e no que diz respeito à promessa pragmática, esse tipo de promessa pode ainda estender seu território caso produtores afirmem que o filme seja fonte de saber verdadeiro(não é para acreditar, não obstante para educar-se).
Nessa conjuntura, o autor enfatiza que o único obstáculo insuperável dos gêneros do real é quando eles recorrem à atores. Se isso acontece, independente da precisão dos fatos eles caem na ficção. Voltando à apresentação das promessas, temos o pacto do testemunho. Ao contrário da restituição, o signo não remete mais a um objeto que seria o mundo, mas o enunciador se insere como um sujeito humano que estaria ligado ao mundo pelo olhar. A realidade não é mais instituída sobre o visual mas sobre a franqueza de uma memória que registra os fatos como um jornalista, testemunha ocular.
Em terceiro lugar, mas não menos importante temos a figura da reconstituição. Resultante da ação policial, pertence ao reino do fingimento. Pertence ao mundo das provas jornalísticas. “Não se trata mais de mostrar, como na restituição, mas de explicar o encadeamento dos fatos (Jost, 2009, p.24). Para realizar esse feito, o jornalista pode proceder de duas formas: a primeira recorre a arquivos para ligar os fatos, o que lança sobre o acontecimento um olhar espectorial, o comunicador sabe mais que os próprios atores e envolvidos no acontecimento.
A segunda maneira, por sua vez, se opõe à primeira e consiste em reconstituir o olhar de um dos atores da realidade e, por conseguinte, nos mostrar a sua vivência. É o caso de quando um jornalista percorre um vagão de metrô com a câmera no ombro para mostrar a título de exemplo uma situação de estupro. Todavia, essa reconstituição em ocularização interna primária, recai na ficção a medida que não traduz a visão de um jornalista na realidade.
Em síntese, essas três abordagens da realidade — restituição(oposta à reconstituição/tem como prioridade o sensível), testemunho(fundado sobre o sensível mas, ao passo que se utiliza do relato, é da categoria do inteligível)e reconstituição (reconstrução inteligível)— são promessas que podem ser encontrados em maior ou menor grau nos gêneros televisivos. Em Bom dia, Verônica, mesmo que se trate de uma ficção, podemos perceber a estratégia da restituição quando Brandão utiliza das câmeras de segurança para controlar Janete. Testemunho e Reconstituição não são identificáveis pois essas partem da lógica do inteligível.
Ainda que a história gire em torno de diferentes conflitos: os de Verônica, os das mulheres dopadas enganadas por um homem em um site de namoro e os de Janete, a história de Bom dia, Verônica alterna os arcos dos personagens com autonomia, apresentando pontos de convergência que alinham a construção dramática. Apesar de evitar construções esteriotipadas, a série apresenta alguns arquétipos. Verônica, por exemplo, é uma anti-heroina muito humana que luta por justiça.
Em entrevista à plataforma de conteúdo Meio e Mensagem sobre a proposta da obra, Raphael Montes, um dos criadores da série, explica que apesar do audiovisual ter um alcance muito grande, a produção não tem como intuito educar. Propor discussões seria uma consequência da história.
Eu não acredito que obras audiovisuais tenham que ser didáticas ou moralistas. […] . A dramaturgia trabalha com emoção. Estamos atingindo muitas pessoas, no seu lugar mais íntimo, o que faz com que a pessoa, eventualmente, repense algumas coisas. É um desperdício só contar uma boa história. Além de contar uma boa história, acredito que é importante, sim, propor debates, propor provocações, lançar discussões, alertar sobre situações, mas nunca numa maneira didática ou moralista, nunca falando ‘isso tem que ser feito, aquilo tem que ser feito’, mas no sentido de ‘olhe como é o sistema’. Sem querer dar spoiler, o que acontece com a Janete na primeira temporada é um soco no estômago, porque é para o público pensar e falar ‘olha, isso que acontece aqui na dramaturgia é o que acontece todo dia na vida real’. Acredito que cabe, sim, às séries de televisão, além de entreter, provocar reflexões (MONTES, 2022).
Ao final de cada episódio de Bom dia, Verônica , os telespectadores são encorajados a denunciarem casos de violência contra a mulher por meio da seguinte mensagem
“Se você ou alguém que você conhece sofre com violência e abuso, e precisa de ajuda para encontrar recursos de apoio, acesse o site Wanna Talk About It”.
Bom dia, Verônica também foi adaptada para território internacional ganhando nomes como “Good Morning, Verônica” e “Buenos días, Verônica”.
Em uma publicação do trailer de “Good Morning, Verônica” pela Netflix no YouTube, a maioria dos comentários fazem coro parabenizando a produção. Confira a seguir alguns deles (Mensagens traduzidas do inglês:
Uma série maravilhosa, o assunto é conflitante — mas é bem tratado. Tainá Muller faz um ótimo trabalho como protagonista, ela é durona e vulnerável ao mesmo tempo — uma mulher surpreendentemente bonita, ela é um verdadeiro talento. Espero que a segunda série não esteja muito longe… Quero ver a Verônica se vingar!!
Apesar de comentários como esse serem recorrentes observamos que a questão de gênero não foi uma pauta comentada entre os usuários. Já no trailer da série em português além de opiniões sobre a produção, percebemos falas que remetem a importância da série.
Percepções como essa são de extrema importância, uma vez que embora trate-se de uma ficção, “Bom dia, Verônica” é, na verdade, um retrato social da história de diversas mulheres brasileiras.
#ALutaÉReal: Campanha de ‘Bom dia, Verônica’
Durante o lançamento da série, em 7 de outubro de 2020, a Netflix lançou um vídeo promocional(vinculado na página do Facebook e Instagram) para divulgar a campanha #ALutaÉReal.
A ação foi concebida por meio de atrizes, influencers, cantoras que discutiam o tema da violência contra a mulher e apontavam para a necessidade do empoderamento feminino, à luz da série.
O vídeo se encerra convidando o público a conferir os relatos de cada partipante por meio das contas de IG da revista CLÁUDIA, Glamour, Marie Clair, Elle, Midia Ninja, Folha de São Paulo, Quebrando Tabu.
Diferentes conteúdos foram publicados, nessa data. Enquanto na conta da Glamour, a fundadora do Coletivo Thinkg Olga, Juliana de Faria, discute os mitos da violência com a seguinte legenda:
A gente costuma entender como violência doméstica as agressões físicas: o soco, o tapa, o puxão de cabelo. Mas existem outras violências, menos visíveis, que também deixam marcas profundas. Veja como derrubar esse e outros mitos sobre violência contra a mulher com Juliana de Faria, fundadora e diretora do @think_olga, e “Bom Dia, Verônica”, a nova série da @netflixbrasil. #ALutaÉReal
Na página Quebrando Tabu, por exemplo, temos a cantora de funk Valesca Popozuda refletindo, em um reels com mais de cinco minutos, sobre assédio sofrido e a importância de não se culpabilizar e denunciar. Ao se comparar com Janete, a artista vai pontuado questionamentos que mulheres têm, sobretudo, quando estão num contexto de agressão. Paralelamente, foram postados conteúdos em carroseis que foram repostados na conta do Instagram do “Bom dia, Verônica” (@bomdiaveronicanetflix) que conta com mais de 10 mil seguidores.
O primeiro post envolvendo a cantora veio acompanhado da seguinte legenda:
A Netflix convidou a cantora e ativista @valescapopozuda para assumir nosso Instagram por algumas horas e comentar cenas da sua nova série de suspense “Bom Dia, Verônica”, trazendo à tona um tema tão urgente como o combate à violência contra mulher. Valesca selecionou algumas cenas da série e fez reflexões importantes que servem de alerta para que histórias como a da série não se repitam no nosso dia a dia. Verônica é só uma personagem, mas a luta pelo FIM DA VIOLÊNCIA contra a mulher é real.
Se você quer saber mais sobre esse tema, acompanhe vídeos por aqui e os conteúdos dos outros canais que também se juntaram a essa conversa @marieclairebr, @folhadespaulo, @glamourbrasil, @ellebrasil, @midianinja, @claudiaonline #ALutaÉReal #publi
Interessante observar que um dos posts publicado pela conta do Instagram da Folha de São Paulo levanta a discussão sobre a naturalização do machismo e das relações abusivas que, deploravelmente, acabam se tornando “normalizadas”. Três anos depois, em setembro de 2023, a mesma discussão é levantada pela cantora Luisa Sonza, no programa de TV, Mais Você, conduzido pela apresentadora Ana Maria Braga. Ao anunciar o fim do namoro com o influencer Chico Moedas e expor a traição que sofreu, a artista lê em seu celular uma espécie de carta aberta.
A dona do hit “Chico”, canção que fez em homenagem ao ex-namorado e que chegou ao Spotify Global, fala ao final do programa sobre como as mulheres se sentem burras e como a traição é aceita por conta do machismo estrutural. Afinal, “todo homem traí”. Contudo, extremamente corajosa e marketeira, ela exibe sua dor e decepção em TV aberta. Discorre sobre o que envolve uma traição e pondera que enquanto sua mãe e tias não tiveram escolha a não ser perdoar — dada a dependência financeira — ela escolhe o término, se escolhe.
[…]Mentem olhando no olho, como se fossemos uma ameba que cai em qualquer coisa que eles possam dizer. A verdade é que eles acreditam em tudo isso. Eles acreditam que somos burras, frágeis, fáceis de convencer, de manipular, que o mundo é deles e eles podem tudo. Que nada é grave. Que, sabe como é, homem é assim. […]Hoje eu quebro um ciclo pela minha mãe, por minhas tias, e por todas as mulheres que eu vi minha vida inteira sendo traídas e não tinham muitas vezes nem pra onde ir, acabando por ter que ficar com o traidor dentro de casa. […]Hoje eu te dou um adeus, por mim e por todas nós.E antes de ir, eu quero te responder que: escolher não estar mais com você não é viver o amargor ao invés do amor como você me disse. Eu vou viver o amor. Só não vai ser com você. (Sonza, Globoplay, 2023).
Essa mesma perspectiva foi adota por Shakira meses antes ao divulgar a traição do ex-marido Gerard Piqué por meio da música lançada com o DJ argentino Bizarrap Bzrp Music Sessions #53, que apresenta trechos como “as mulheres já não choram, elas faturam”. A canção é cheia de referências e indiretas para o ex-marido, a amante e até a ex-sogra da latina. Se tornou a maior estreia latina da história do YouTube, com mais de 100 milhões de views.
Que assim como Luísa, Shakira e Jante, eu e você, nós, mulheres, possamos viver o amor. Não necessariamente o romântico, idealizado. Mas com aqueles que de fato nos respeitam. E que a literacia possa, cada vez mais, abrir a caixa de pandora do machismo que acaba nos subordinando a uma cultura em que os homens são favorecidos.
Informação pode salvar vidas. Afinal, quem ama não bate, não mata. O 180 funciona, viu?
Se chegou até aqui assista ao trailer abaixo. Saiba mais!
Agradecimentos: Veruska Yasmim agradece o apoio recebido da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e ao PPGCOM da UFJF.
Referências:
BORGES, Gabriela; BARBOSA, Márcia Barbosa Silva. Competências midiáticas em contextos brasileiros. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2019. Disponível em:<https://issuu.com/ppgcomufjf/docs/compete_ncias_mida_ticas>. Acesso em: 5 set. 2023.
BORGES, Gabriela; et al. A qualidade e a competência midiática na ficção seriada contemporânea no Brasil e em Portugal. 2022. Disponível em:<https://observatoriodoaudiovisual.com.br/>. Acesso em: 5 set. 2023.
ELOI, Arthur. Bom Dia, Verônica — 1ª Temporada | Crítica. Omelete. (30.09.2020). Disponível em <https://www.omelete.com.br/netflix/criticas/bom-dia-veronica-1a-temporada>. Acesso: 17 jul. 2023.
FERRÉS, J.; PISCITELLI, A. Competência midiática: proposta articulada de dimensões e indicadores. Lumina, v. 9, n, 1, p. 1–16, 2015. <https://periodicos.ufjf.br/index.php/lumina/article/view/21183>. Acesso em: 17 jul. 2023.
INSTITUTO MARIA DA PENHA(IMP). Ciclo da Violência: Saiba identificar as três principais fases do ciclo e entenda como ele funciona. 2018. Disponível em: <https://www.institutomariadapenha.org.br/violencia-domestica/ciclo-da-violencia.html>. Acesso em: 1 set. 2023.
JOST, François. Que significa falar de “realidade” para a televisão? In: GOMES, Itânia Maria Mota (org). Televisão e Realidade. Salvador: EDUFBA, 2009. Disponível em: <https://repositorio.ufba.br/bitstream/ri/1048/1/Televis%C3%A3o%20e%20Realidade.pdf>. Acesso em: Acesso em: 1 set. 2023.
MARACCINI, Gabriela. ‘Bom Dia, Verônica’ trata de violência contra a mulher em trama instigante. Cláudia Abril. 1 out 2020. Disponível em: <https://claudia.abril.com.br/cultura/bom-dia-veronica-trata-de-violencia-contra-a-mulher-em-trama-instigante>. Acesso em: 5 set. 2023.
MONITOR DA VIOLÊNCIA. Brasil bate recorde de feminicídios em 2022, com uma mulher morta a cada 6 horas. (07/08/2023).
Disponível em: <https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2021/08/07/lei-maria-dapenha-pedidos-de-medidas-protetivas-aumentam-14percent-no-1o-semestre-de-2021-no-brasilmedidas-negadas-tambem-crescem.ghtml>. Acesso: 07/08/2023.
MONTES, Raphael. Raphael Montes, de Bom Dia, Verônica: “A dramaturgia trabalha com emoção”. [Entrevista concedida a] Amanda Schnaider. Meio e Mensagem. 16 de agosto de 2022. Disponível em <https://www.meioemensagem.com.br/midia/raphael-montes-de-bom-dia-veronica-a-dramaturgia-trabalha-com-emocao>. Acesso: 17 jul. 2023.
UNIVERSA UOL. Brasil tem aumento em todos os tipos de violência contra mulher. (20/07/2023). Disponível em: <https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2023/07/20/feminicidio-cresce-6-e-pais-tem-piora-de-indices-de-violencia-de-genero.htm>. Acesso: 07/08/2023.
UOL. Feminicídio — Brasil é o 5º país em morte violentas de mulheres no mundo. Disponível em: <https://vestibular.uol.com.br/resumo-das-disciplinas/atualidades/feminicidio-brasil-e-o-5-pais-em-morte-violentas-de-mulheres-no-mundo.htm>. Acesso: 07/08/2023.
FARAGE, equipe. O figurino de “Bom dia, Verônica” por Marina Franco. Thais Farage. Disponível em:<https://thaisfarage.com.br/o-figurino-de-bom-dia-veronica-por-marina-franco/>. Acesso: 07/08/2023.
SONZA, Luísa. Luísa Sonza revela que terminou namoro com Chico. [Entrevista concedida a] Ana Maria Braga. GloboPlay, São Paulo, 20 set. 2023. Disponível em: <https://globoplay.globo.com/v/11961570/?s=0s>. Acesso: 20/09/2023