Dicionário para quem? A recontextualização de palavras em dicionários "oficiais".

Como a recontextualização de palavras e expressões nos dicionários ditos oficiais podem gerar ruído na literacia midiática que significa o público LBGTQIA+

Art By Priscilla Paranhos

Um dicionário é uma ferramenta essencial para a literacia midiática, sendo um recurso valioso para aqueles que buscam compreender e interpretar de forma eficaz a vasta quantidade de informações presentes na sociedade contemporânea. O dicionário, em sua essência, é um compêndio organizado de palavras, seus significados e usos. Ele atua como um guia linguístico confiável, fornecendo definições teoricamente precisas e abrangentes, além de informações adicionais, como sinônimos, antônimos, etimologia e exemplos de uso.

Na era digital e da comunicação globalizada, em que somos constantemente bombardeados por uma enxurrada de notícias, opiniões e conteúdos diversos, é crucial desenvolver habilidades de literacia midiática. A ideia da literacia por si só apresenta uma abordagem a qual inclui não só os usos sociais da leitura e da escrita, mas também as habilidades necessárias para alfabetização e o desenvolvimento da escrita: como o conhecimento alfabético, o desenvolvimento da consciência fonológica, compreenção de linguagem social entre outras (KLEIMAN,1995). Sendo assim a literacia midiática envolve a capacidade de analisar, interpretar e avaliar criticamente as mensagens midiáticas, sejam elas provenientes da imprensa, redes sociais, publicidade ou outras fontes.

Nesse contexto, o dicionário desempenha um papel fundamental. Ele permite que os indivíduos tenham uma compreensão precisa das palavras e termos usados em diferentes contextos. Ao consultar o dicionário online, por exemplo, é possível obter clareza sobre o significado exato das palavras, evitando assim mal-entendidos e interpretações errôneas. Porém, ele também ajuda a identificar o uso de jargões, metáforas e outras figuras de linguagem, o que pode ser essencial para uma análise crítica dos discursos midiáticos e é aí que muitas vezes sua utilização pode gerar ruídos.

Afinal, compreender o significado e a intenção por trás das palavras utilizadas em diferentes contextos ajuda a identificar a objetividade ou subjetividade de uma mensagem, bem como possíveis estratégias de persuasão ou viés ideológico. Dessa forma, o dicionário precisa também se atualizar diante das evoluções linguisticas, das práticas sociais, do contexto público e até mesmo das resignificações conceituais. O que permite que a sociedade se torne mais crítica e conscientes das informações que encontram nesta grande ferramenta de convenção social.

No ano de 2016, o grupo Afroreggae lançou uma campanha publicitária, criada pela agência ArtPlan, com o objetivo de criar um dicionário de gênero que refletisse de maneira precisa e realista o significado de cada expressão do universo LGBTQIA+. A iniciativa buscou preencher uma lacuna existente na linguagem, proporcionando uma compreensão adequada e respeitosa dos termos relacionados ao gênero, como “mulher trans” e “travesti”. Essa campanha evidenciava a necessidade de abordar e descrever de forma precisa as diversas identidades de gênero, reconhecendo sua existência e promovendo a inclusão social.

O que é mais curioso nesta campanha datada de 2016 é que estas palavras e expressões não estavam presentes nos dicionários oficiais, e aqui estamos considerando os mais relevantes em circulação como o Aurélio, Michaelis, Houaiss e Lexikon, e ainda hoje, 2023, não estão.

Filme principal da Campanha "Dicionário de gêneros" Afroreggae — Artplan

Atualmente, é até possível encontrar alguns dicionários e glossários de gênero disponíveis em muitos sites, especialmente voltados para o público LGBTQIA+, e em dicionários online como o Dico.com.br essas palavras já foram recontextualizas. No entanto, é fundamental que esses conhecimentos também sejam oficialmente reconhecidos e incorporados aos dicionários de referência escolar e utilizados em nosso cotidiano.

Afinal, a atualização dos dicionários oficiais ou impressos, como o Aurélio e o Houaiss, é de extrema importância para promover uma educação inclusiva e combater a orientação e preconceitos em relação às questões de gênero. Embora hoje em dia existam muitas informações disponíveis sobre os termos de gênero, a falta de reconhecimento e inclusão desses termos nos dicionários tradicionais representa um verdadeiro desserviço para o tema.

No livro “Discurso e Prática” (2008) de Teo van Leeuwen, o autor introduz o conceito de recontextualização, afirmando que o conhecimento é gerado dentro de um contexto pedagógico no qual é reproduzido e difundido (van Leeuwen, 2008:2). Dessa forma, o autor destaca a importância de compreender o discurso como uma recontextualização da prática social, a qual possui diversos elementos, como os participantes, suas ações e modos de atuação, bem como as condições que qualificam os participantes, determinando suas qualificações específicas para serem considerados elegíveis ou aptos para uma prática particular. Também é relevante considerar os estilos de apresentação, que são influenciados pelos participantes, o tempo, o local e as condições envolvidas. Portanto, o autor ressalta que a recontextualização não se limita apenas à transformação da prática social em discurso, mas também é resultado de uma legitimação específica contextualmente (van Leeuwen, 2008:105). O autor discute a existência de quatro categorias de legitimação: autorização, avaliação moral, racionalização e narrativa mítica (mythopoesis), além da legitimação multimodal o que explica a necessidade de uma mudança em todo o contexto social, seja ele discursivo ou pedagógico.

Os dicionários oficiais são considerados fontes autoritativas e aguardados, consultados por estudantes, profissionais da educação e pela população em geral. Portanto, sua atualização é crucial para refletir a evolução da linguagem e garantir que os termos de gênero sejam devidamente reconhecidos e compreendidos pela sociedade. Ao incorporar os novos termos relacionados ao gênero estamos indo de encontro a uma conscientização e promoção da diversidade, além de combater a perpetuação de estereótipos, preconceitos e marginalização de grupos minoritários.

Imagem extraída do site: www.dicio.com.br

Ao abraçar a possibilidade de incluir os termos de gênero em sua atualização, os dicionários oficiais podem desempenhar um papel significativo na educação nacional. Eles ajudam a construir uma sociedade mais inclusiva, onde as pessoas respeitadas em sua identidade de gênero e onde a linguagem seja um reflexo e preciso atualizado da realidade. Essa atualização também é importante para o campo acadêmico, fornecendo uma base terminológica consistente para pesquisas e estudos sobre questões de gênero.

Lançado originalmente em 2015, o livro “Dicionário Crítico de Gênero”, que já está em sua segunda edição se tornou uma referência nos estudos de gênero . O artigo contém 162 verbos escritos por 156 intelectuais de diversos campos do conhecimento. Organizado por Ana Maria Colling e Losandro Tedeschi, historiadores doutorados pela PUCRS e Unisinos, respectivamente. O livro busca estabelecer e ampliar o psicológico analítico no debate epistemológico dos estudos das mulheres, de gênero e das sexualidades. Ao longo do texto podem ser encontrados junto aos verbos, pensamentos como família, feminicídio, higienismo, teologia feminista, lógica do sensível, dominação masculina segundo Bourdieu (1998), identidade transgênero segundo Foucault (1989), entre outros.

O dicionário busca estimular a reflexão crítica e possui uma linguagem acessível ao público não especializado, sem perder o rigor acadêmico.

O autor do livro fala no site GZH Contemporâneo, que o dicionário traça a história desse campo de estudo e apresenta as discussões desenvolvidas ao longo do tempo sobre diversos temas, como feminino/masculino, corpo, homossexualidade, patriarcado, maternidade, misoginia, entre outros . Ele ressalta que a obra é uma referência de cabeceira e elogia a forma didática e sintética com a qual é apresentada.

É fundamental reconhecer que a linguagem possui um impacto poderoso na formação de ideias, no comportamento social e na percepção de identidades. Portanto, a atualização dos dicionários oficiais com os termos de gênero não é apenas uma questão de inclusão linguística, mas também uma forma de promover a igualdade, o respeito e o entendimento mútuo entre as pessoas.

Referências Bibiográficas:

CALDAS-COULTHARD, C. R. e VAN LEEUWEN, T. Stunnig, shimmering, iridescent:toys as the representation of gendered social actors. In: Sunderland, J. e Litosseliti, L. (orgs.) Gender Identity and Discourse Analysis. Amsterdam: Benjamins, 2002, p. 91-108.

_____.Teddy Baer Stories. Social Semiotics, 13 (1):5-29, 2003.

COLLING, Ana Maria e Losandro Antônio Tedeschi. Dicionário crítico de gênero. prefácio [de] Michelle Perrot. – 2.ed. – Dourados, MS : Ed. Universidade Federal da Grande Dourados, 2019..

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber, tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988.

KLEIMAN, A.(Orgs.) Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado das Letras, 1995.

SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.

Sites:

www.dicio.com.br

https://gauchazh.clicrbs.com.br/comportamento/noticia/2019/05/dicionario-se-torna-referencia-nos-estudos-de-genero-cjvs6dora05am01mapr78xj2r.html

https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=travesti

https://glamour.globo.com/lifestyle/noticia/2017/09/dicionario-de-genero-entenda-e-use-os-termos-certos.ghtml

https://queer.ig.com.br/2021-03-03/dicionario-de-genero-conheca-todos-os-termos-e-saiba-quando-usa-los.html

https://mybest-brazil.com.br/18653

https://www.youtube.com/watch?v=rWmMrDNdSks&t=4s

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