Diversidade Nerd e competências midiáticas no TikTok

A internet, apesar de ser um elemento relativamente novo da história humana, instaurou uma simultaneidade na comunicação mediada, alterando nossa percepção do espaço e do tempo, rompendo com os processos e lógicas lineares previamente existentes na produção e consumo de bens, serviços e informação.

As tecnologias de mídia digital fazem parte do dia a dia das pessoas, que as utilizam para participar de culturas digitais, onde criam significados e constroem mundos sociais por meio de diferentes formas de linguagem.

Assim, a era digital não se constitui apenas pelos aparatos e técnicas envolvidos, mas, também por um conjunto de modos de cultura, percepções e experiências, que podemos chamar de cibercultura. O digital não é apenas uma mídia, mas é uma dimensão, um espaço de circulação simbólica incessante, de fluxos semióticos, um arquivo vivo constantemente renovado de informações, ideias e produtos.

Neste cenário, um exemplo popular é o TikTok, que se tornou extremamente famoso em todo o mundo durante a pandemia de 2020, especialmente entre os jovens da Geração Z, que nasceram na era da internet e utilizam as redes sociais como sua principal maneira de se expressar e se comunicar.

Uma forma de se entender o melhor o TikTok é imaginá-lo como uma semiosfera, que segundo Lotman (1996) é um espaço abstrato onde ocorrem processos de comunicação e produção de novas informações, assim pode ser visto também como cultura. Na era digital, a semiosfera está relacionada à cultura digital e à circulação constante de símbolos e códigos em sites e aplicativos. O TikTok é um exemplo desse ambiente, onde os vídeos funcionam como formas de expressão carregadas de elementos simbólicos e os usuários desempenham um papel ativo na criação e interpretação desses vídeos.

Voltando ao TikTok, um dos maiores diferenciais do aplicativo, senão o maior, é o modo como seu algoritmo orienta uma curadoria cuidadosa e personalizada para cada pessoa. O TikTok não se baseia apenas nas pessoas que seguimos e interagimos, mas sim no conteúdo que chama a atenção. Conforme explica Stokel-Walker (2022), a plataforma utiliza um ‘gráfico de conteúdo’ que leva em consideração mais o que foi assistido, do que os perfis seguidos como no ‘gráfico social’ utilizado por redes como Facebook, assim o aplicativo prioriza em seu algoritmo o conteúdo publicado e não as relações entre seus usuários, criando uma conexão que se baseia nos interesses em comum.

Dessa maneira, a plataforma promove a formação de comunidades especializadas nos mais diversos temas como BookTok, comunidade focada em literatura, ou comunidades minoritárias formadas por pessoas que se encontram pela plataforma e nela encontram um espaço de expressão. Podemos, então, entender essas comunidades presentes no TikTok como semiosferas. Isso nos leva a pensar em duas características desse conceito que Lotman (1996) aponta: a fronteira e a irregularidade. Para o autor, a fronteira é como um filtro que separa o interior do exterior das semiosferas, traduzindo mensagens entre esses sistemas simbólicos. Já a irregularidade significa que na semiosfera coexistem estruturas centrais e fixas em oposição a outras mais periféricas, é a interação (que é mais acelerada na periferia) entre esses elementos que permiti a criação de novas informações e significados.

No TikTok, um perfil que nos chama a atenção é o Diversidade Nerd[1] (@diversidadenerd), criado por Christian Gonzatti, doutor em Comunicação e pesquisador da cultura pop e diversidade. O perfil, que conta com mais de 420 mil seguidores e conta quase 15 milhões de curtidas[2], tem como objetivo promover a diversidade e inclusão no universo nerd, abordando temas como representatividade feminina, negra e LGBTQIA+ em filmes, séries, jogos e quadrinhos.

Além do que discutir a representação desses grupos, podemos entender o perfil com um modo de divulgação do conhecimento científico sobre o tema, pois Gonzatti faz sua abordagem a partir de seus estudos no campo da comunicação, da semiótica e dos estudos de gênero.

Acreditamos ainda ser preciso reconhecer que o conteúdo criado e distribuído pode ainda ser considerado como um modo de alfabetização midiática, já que seu criador aborda não apenas a representação, mas também os diferentes modos de funcionamento delas, promovendo desse modo o “desenvolvimento de capacidades para consumir e produzir conscientemente os conteúdos midiáticos, mas que também se atenta a observar e analisar como as mensagens são compreendidas e emitidas” (SPINELLI, 2021).

A alfabetização midiática pode ainda ser entendida como a capacidade de acessar, analisar, avaliar e criar mensagens através de uma variedade de contextos (LINVINGSTONE, 2014. E, na medida em que as mídias permeiam cada vez mais as relações na sociedade, é cada vez mais preciso que as pessoas tenham alfabetização midiática para se participarem da sociedade através das mídias e não apenas consumir as mensagens que são transmitidas por ela. Para Spinelli (2021):

Ser alfabetizado para o consumo midiático implica na composição de um repertório consistente, responsável pelos esquemas perceptivos e formas de cognição sobre as ações dos cidadãos no mundo real e virtual, tanto no espaço da educação formal como informal. (SPINELLI, 2021)

Dessa maneira, consideramos que os vídeos do perfil Diversidade Nerd funcionam de modo a incentivar uma reflexão crítica das formas e lógicas pelas quais as culturas pop e nerd tratam questões de gênero e sexualidade e como consumimos essa produção midiática.

Spinelli (2021) organiza em quadros, baseados em estudos já estabelecidos, um conjunto de competências midáticas que colaboram e devem ser exercitadas na alfabetização midiática a fim desenvolver uma percepção crítica e reflexiva em relação aos meios de comunicação. Para a autora, no primeiro conjunto de competências se refere ao acesso às mídias o que implica nas possibilidades de conexão com distintos equipamentos e plataformas tecnológicas; no saber buscar, selecionar, armazenar as informações e conteúdos midiáticos. O segundo grupo é ligado à avaliação crítica dos conteúdos midiáticos e envolvem a constatação da qualidade das informações e conectar o conteúdo com seus respectivos meios, reconhecendo e interpretando contextos sociais, políticos, culturais e econômicos.

Um exemplo em que vemos essas competências serem trabalhadas pelo Diversidade Nerd é o vídeo Impostos e Games de 03 de março de 2022, em o Gonzatti fala sobre a diferença entre Fake News e Desinformação como táticas da extrema direita para ganhar apoiadores e usa como exemplo as notícias sobre o a intenção do governo federal em taxas casas de apostas e cassinos on-line e que foi noticiado como fim da desoneração de jogos de console. Assim, questiona a forma como essas informações são transmitidas e criadas, ao mesmo tempo que esclarece políticas relacionadas ao mercado dos jogos eletrônicos.

O terceiro conjunto trata das competências relacionadas à criação de conteúdo midiático e inclui elaborar e utilizar, conhecer a finalidade das plataformas, proposição de mobilização política e social, monitorar práticas midiáticas de pessoas, grupos e instituições e criar conhecimento de maneira ética e eficaz.

Podemos ver algumas dessas competências serem trabalhadas no vídeo Chega de dar holofote para quem não merece, em que Gonzatti aborda a necessidade da comunidade LGBTQIA+ de não reverberar e dar mais visibilidade para discursos de ódio que a afetem, mas dar destaque para ações e conteúdos midiáticos que fortaleçam politicas públicas atuem na proteção e garantia dos direitos dessa população.

Retornando aos conceitos apresentados por Lotman podemos intuir que perfil Diversidade Nerd se encontra em um espaço interseccional, entre as semiosferas nerd, pop e LGBTQIA+, sendo ao mesmo tempo um texto cultural enquanto gera novos signos e códigos no ambiente digital que se constitui o TikTok. E a partir desse conteúdo observado, que de forma metalinguística, aborda de modo crítico e criativo a produção midiática podemos também destacar a importância de uma educação que busque proporcionar competências para a percepção, reflexão e criação de conteúdos midiáticos.

Referências

LIVINGSTONE, S. Active Participation or just more information? Young people’s take up of opportunities to act and interact on the internet. Information, Communication & Society, v. 8, n. 3, p. 287–314, 2004. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/13691180500259103

SPINELLI, E. M. Comunicação, Consumo e Educação: alfabetização midiática para cidadania. Intercom, Rev Bras Ciênc Comun [Internet]. 2021 Sep; 44(3) p.127–43. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1809-58442021307

[1] O perfil Diversidade Nerd também está presente no Instagram, Youtube e Twitter, porém escolher focar no TikTok por entender que é a plataforma em que o criador tem a maior audiência.

[2] Números do perfil em 16/06/2023, devido a constante atualização que acontece nas redes socias este número pode ser diferente na data de leitura deste texto

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