Muito além das dancinhas…

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Posso encontrar política e Estética no TIKTOK?!!

O Brasil é o segundo país que mais usa o TIKTOK no mundo, segundo o levantamento realizado pela consultoria alemã Statista . A rede social de vídeos, criada em 2016 e lançada internacionalmente em 2017, continua crescendo aceleradamente aqui e no mundo todo: em menos de três anos os usuários ativos mensais passaram de 680 milhões para 1,1 bilhão. O seu público é predominantemente infanto-juvenil, cerca de 62% dos usuários têm entre 10 e 29 anos e apenas 7,1% tem mais de 50.

Um cenário composto por bilhões de usuários, sendo a maioria jovens, não pôde ser ignorado por pesquisadores e pensadores das ciências sociais e políticas e logo começamos nossos primeiros questionamentos sobre a plataforma e seus efeitos na construção sociocultural.

Como todo novo meio de comunicação, o TIKTOK é recebido com um mix de fascínio e resistência. Por exemplo: De um lado, ele oferece, fácil acesso a ferramentas de edição de vídeo, tais como cortes, zoom, efeitos de áudio para a voz, escolha de trilhas musicais e até chroma key, que podem ser encontrados e operados por usuários com pouquíssimas habilidades técnicas. Essa característica não determina, mas possibilita maior acesso à linguagem cinematográfica. Pois, por outro lado, a forte lógica mercadológica predominante ali força suas diretrizes: a limitação no tempo dos vídeos, que são muito curtos e a indução do algoritmo de entrega para que os usuários façam cópias e mais cópias do que está em alta, a fim de serem mais vistos, são exemplos disso.

Nada novo! O nascimento do cinema (e da fotografia!) foi de igual modo cindido por questões semelhantes: De um lado, havia o fascínio de uma nova técnica, com imensas possibilidades políticas e grande potencial artístico-estético a serem explorado (o cineasta Eisenstein, 1898- 1948 rapidamente percebeu isso!). Mas, de outro lado, logo veio a sua rápida absorção pelo mercado capitalista, com sua lógica de infinita reprodutibilidade técnica, sem aura, sem política e “sem Estética”! (?).

A cisão não foi resolvida, mas deu início a diferentes segmentos históricos paralelos, por vezes, opostos, de uso dos mesmos meios e dos mesmos códigos de linguagem para diferentes fins, os quais, de forma absurdamente reducionista, costumamos chamar de “cinema comercial” e “cinema experimental” (“cult”, “lado B”, “de arte”, etc.).

Na perspectiva do filósofo francês Jacques Rancière, isso ocorre porque, em princípio, não há vocações políticas (no sentido amplo do termo, não o “partidário”) e de nenhuma outra ordem pré-estabelecida para os meios, como a escrita, a fotografia, o cinema, ou, como defendemos aqui, o TIKTOK.

Os meios e suas produções são “maneiras que a sociedade inventa para falar de si mesma, para representar-se”, por isso, é no modo de usá-los que é possível construir, para eles, vocações (RANCIÈRE, 2014). A Arte, em si, também não é necessariamente política. As formas de arte podem ser percebidas e pensadas como “formas de inscrição do sentido da comunidade”, elas “refletem estruturas ou movimentos sociais” (RANCIÈRE, 2001, p.18).

Para autor, existem desenhos estéticos das sociedades, evidências sensíveis de como são as suas estruturas (RANCIÈRE, 2001, p.07), e esses desenhos podem apenas ser repetidos nos meios e nas artes, como forma de reforço da dominação, ou podem ser desvelados e “bagunçados” neles! Quando o segundo acontece, estamos diante de uma obra, ou de um meio político:

A maneira em que inicialmente o cinema se apresentou como instrumento político não foi realmente através das capacidades do aparato em si mesmo, mas através da capacidade do artista político de selecionar momentos desta realidade para construir um discurso, que é coerente sobre a sociedade […] . (RANCIÈRE, 2014).

Ou seja, pensando rancierianamente, um vídeo do TIKTOK pode SIM ser político, desde que seja intencionalmente vocacionado para isso, pois quem torna um meio político é quem se coloca como “artista político”! E se há política, nesse sentido, também há Estética, pois a Estética versa sobre os desenhos sensíveis dessas partilhas do comum, nas sociedades!

Então você pode se tornar um artista político, até mesmo no TIKTOK?

Depende…Isso não é para qualquer um! É preciso ter COMPETÊNCIA!

Isso mesmo, “competência midiática”, melhor dizendo… A competência midiática é a habilidade de acessar, analisar, avaliar criticamente e criar mensagens em contextos e plataformas midiáticas diferentes.

Joan Ferrés e Alejandro Piscitelli propõem um modelo que serve tanto para medir a competência midiática de uma pessoa, ou de um grupo, como para nortear projetos que desejam ampliá-la. Ele possui 6 dimensões: Linguagem; tecnologia; processos de interação; processos de produção e difusão; ideologia e valores; e estética. Cada uma dessas dimensões possui vários indicadores em dois âmbitos, que são os da análise (como você recebe e interage com mensagens) e da expressão (como você produz mensagens).

O modelo completo é complexo para ser todo explicado aqui, por isso vamos mencionar apenas alguns de seus pontos. Para você entender melhor, também vamos exemplificar esses pontos com vídeos e movimentos realizados no TIKTOK, sempre tendo em mente a pergunta: há potencial político neles? Vamos lá!

A dialética das princesas: crítica e fomento da representação feminina da Disney no TIKTOK.

As princesas da Disney se tornaram parte do imaginário social globalmente, por isso, volta e meia estão presentes nas discussões sobre a representatividade do feminino (Veja o nosso artigo sobre o novo filme da Cinderela!). Mesmo que uma mudança nos perfis e protagonismos das princesas mais recentes seja percebida, muitas delas ainda reforçam padrões questionáveis.

No TIKTOK , em termos de usuários brasileiros, várias trends e manifestações de artistas independentes surgiram inspiradas nessas princesas nos dois últimos anos. Vamos citar três:

A primeira foi uma onda de releituras das histórias dessas princesas para os dias atuais: artistas independentes, humoristas e digital influencies fizeram suas versões. Entre eles, o perfil @instanoa , de uma jovem artista de mangás, que não se identifica.

A artista desenha os mangás e com eles faz vídeos animados, usando recursos de edição da plataforma. O Instanoa lançou seu primeiro vídeo em outubro do ano passado e possui hoje mais de meio milhão de seguidores. Foram feitos até o momento oito vídeos relacionados às princesas. Veja o da Branca de Neve abaixo:

Para fazê-lo, a artista teve que ter competência na dimensão da Linguagem, pois ela precisou interpretar os códigos de representação contidos no filme da Disney, no TIKTOK e no universo de mangás para conseguir modificar e ressignificar um produto já produto existente (o filme), unindo os três universos de linguagem em um híbrido.

Mas isso só foi possível pela sua competência na dimensão da Tecnologia, pois a desenhista de mangás, além de dominar a linguagem do TIKTOK (vídeo rápidos, tom humorístico, gírias predominantes, etc.) dominou também as ferramentas de edição de vídeo, se adaptando a esse novo espaço para atingir seu objetivo comunicacional e divulgar sua arte de mangás, na plataforma.

Ao fazer isso, a artista conseguiu atingir a dimensão Ideologia e valores. Note como a construção da Branca de Neve passa da “ingênua-boazinha” para uma versão mais ácida e mal-humorada!

A dimensão Ideologia e valores tem a ver com essa capacidade de descobrir o modo como as representações midiáticas estruturam nossa percepção da realidade e, a partir dessa leitura questionar e modificar estereótipos. Se Instanoa faz contra-esteriótipos dos estereótipos das princesas e do amor em seus filmes, a trend iniciada pela digital influencer Leh Videira (@lehvideira) os questiona, veja o vídeo abaixo:

O áudio dela foi reproduzido por várias mulheres que fizeram suas próprias versões desse vídeo, no qual as atitudes de “amor” das princesas são colocadas como desordens psíquicas.

A trend iniciada pela atriz e maquiadora Mônica Tostes no seu perfil @.moni também trouxe esse questionamento. O processo de seguidas ressignificações que ocorrem dentro dessa rede chama atenção nesse caso: Mônica pegou o áudio de um vídeo do perfil @lustavosantana que misturava um áudio da Youtuber Tulla Luana com um trecho do filme Enrolados, da Disney. Na legenda desse vídeo a frase: “se enrolados fosse protagonizado pela Tulla Luana”. Já se tratava de um híbrido da cultura da internet brasileira com o filme.

Mas Mônica fez um híbrido do híbrido, ressignificando a ideia, ao criar dois vídeos, um em que ela interpreta as personagens da cena original e um em que ela interpreta apenas a madrasta, para que outras pessoas pudessem “costurar” (criar suas versões). Daí em diante, várias mulheres criaram os seus vídeos a partir dessa costura e surgiram comentários contra a ideia do direito de ir e vir da personagem principal ser negado. Alguns vídeos inclusive excederam a temática do feminino para lutas contra outras repressões e situações de enclausuramento. A trend fez tanto sucesso entre o público feminino que até atrizes famosas entraram. Veja os vídeos abaixo:

Com toda certeza, quando uma trend estoura, cada pessoa entra nela por seus motivos; e sim, podemos supor que o motivo da maioria seja apenas aumentar seus views, conforme as leis de entrega do algoritmo! Nada novo, de novo. A história do cinema é marcada por artistas políticos criando formas que foram posteriormente absorvidas e pasteurizadas pelo “cinema de mercado”. O diferente aqui talvez seja a velocidade com que isso ocorra: o que antes era um movimento histórico de anos, hoje acontece em poucos dias!

As várias repetições acabam se tornando o que Rancière chamaria de “murmúrios”, pois mesmo trazendo um assunto relevante, perdem seu valor como uma “voz” na enxurrada de informações e pasteurização, o que enfraquece o potencial político do signo original. Mas o contrário também pode acontecer, uma “voz” pode surgir no meio de murmúrios!

Para exemplificar isso vamos à terceira trend: “Mad at Disney”, que surgiu a partir da música de mesmo nome da cantora Salem Ilese. A música fala sobre a desilusão com o amor, que na vida real é bem diferente dos contos de princesas da Disney, com o seu famoso “e viveram felizes para sempre”.

A trend surgiu reforçando os sentidos expressos na música e foi largamente adotada por maquiadores e atores, que interpretavam os personagens dos filmes, porém desconfigurados.

Mas, em meio há centenas de vídeos “mais do mesmo”, começaram a surgir alguns com intertextualidades, questionamentos de estereótipos e ressignificações. Vídeos que mostram desenhos estéticos sobre estruturas sociais e os excluídos delas, tanto na realidade brasileira, quanto nos filmes das princesas. Separamos dois exemplos:

Viu só? Um meio, ou um gênero, por si só, não pode ser chamado de político, mas são os nossos usos deles que geram, ou não, esse potencial de revelar os desenhos das estruturas sociais e de pautar questionamentos. Mas, para fazer isso você precisa ter competências diversas relacionadas à leitura dos códigos, aos usos das ferramentas, às percepções das ideologias escondidas nos estereótipos…Você precisa saber ler, interpretar, analisar criticamente e produzir conteúdo, assim como alguns desses usuários do TIKTOK que apresentamos aqui!

Quer ter uma “voz”? Então bora aumentar seu conhecimento sobre competências midiáticas! Que tal começar lendo mais artigos desse blog e os textos que indicamos neles?

[1] https://periodicos.ufjf.br/index.php/lumina/article/view/21183/11521

[1] https://exame.com/tecnologia/brasil-e-segundo-pais-que-mais-usa-tiktok-no-mundo/

[2] https://polisconsulting.com.br/estatisticas-tiktok-2021/

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Thalita Rocha
COMUNICAR: popularizando a Literacia Midiática

Thalita Rocha é doutoranda em Comunicação Social (UFJF) e profissional em marketing digital empresarial.