Não falamos da literacia

Por Débora Oliveira

Alerta importante: este texto pode conter spoiler!

Você pode até não ter ouvido de Literacia, mas, do filme Encanto, com certeza já. A mais recente grande produção da Disney que tomou as telonas do cinema em 2021, e também as telinhas através do streaming deu o que falar entre as crianças, profissionais infantis e famílias. O sucesso foi tão grande que o filme liderou por meses o ranking de audiência da Disney+. Mas, afinal, o que a história da Família Madrigal e a Literacia têm em comum?

As produções infantis apresentam uma série de fatores que podem ser essenciais para a formação de diversos elementos do sujeito, desde os mais simples como a apresentação de diferentes culturas, cores e sotaques, até mesmo sobre relações familiares, sentimentos, etc.

Essa função educativa, apesar de não ser apresentada como o principal papel destas produções, não pode ser descartada, uma vez que, apesar de inserida em um momento de descontração, pode acarretar em aprendizados tão — ou mais duradouros — que aqueles tidos a partir de uma aprendizagem formal.

A mídia utiliza desses recursos para uma evidente função socializadora e educadora da sociedade, principalmente os segmentos mais expostos a ele, como as crianças e os jovens, sua atuação é sutil e age sobre o inconsciente, influencia mais pela sedução que pela argumentação, a percepção das pessoas da realidade é influenciada por esse poderoso agente. (OLIVEIRA, 2015, p.2383)

O fato é que, apesar de não se falar amplamente em Literacia, as produções midiáticas estão cheias de elementos que cumprem seu papel essencial de contribuir para o desenvolvimento de variadas competências para o público através dos mais diversos tipos de roteiro.

Afinal, li te ra -o quê?

Apesar de ter um significado bem simples, o conceito de literacia é amplo, e ainda causa muita confusão por aí. Podendo ser considerado sinônimo de letramento por alguns autores, a literacia é a “qualidade de quem é letrado”. Note-se que nesse caso não utilizamos alfabetizado de propósito, uma vez que esse letramento vai além ler e escrever.

Algumas ‘alfabetizações’ dependem mais de ver e ouvir do que de ler e escrever, e referem-se à capacidade de captar e organizar imagens tecnologicamente, em vez de escrever ou desenhar manualmente. A realidade é que muitas pessoas consideradas não alfabetizadas no sentido tradicional usam, agora, uma série de mídias e tecnologias. Elas ouvem rádio, assistem à televisão, usam telefones móveis, olham ou ‘leem’ imagens de jornais, livros ou revistas e interagem com o conteúdo audiovisual na internet com amigos, ainda que isso possa acontecer sem as competências necessárias para compreender de maneira crítica e usar de forma eficaz a informação ou mídia à mão. (GRIZZLE, et. al, 2016, p. 45)

Assim, o capital cultural apresentado em produções voltadas para o público infantil é um grande propulsor de competências que devem gerar a literacia.

A OFCOM, agência reguladora britânica voltada principalmente para a alfabetização midiática, determinou três dimensões para auxiliar na avaliação da literacia, sendo elas: acesso, compreensão e criação (PEREIRA, PINTO e MOURA, 2015, p.7).

Para esta discussão, consideramos principalmente o desenvolvimento da dimensão da compreensão.

Eu vim pra falar dos Madrigal

Quem teria orgulho em dizer que a sua família não é perfeita?

Os Madrigal, com certeza não. A família fundadora do vilarejo encanto apresenta a trajetória dos seus personagens que, em tese, integram uma família perfeita e dedicada ao seu lar. Entretanto, nem tudo que parece, é, e aos poucos os personagens mostram seus verdadeiros anseios e os percalços em busca uma intensa afirmação da sua importância.

A discussão é suficiente para levantar inúmeras questões, principalmente voltadas à relação entre as famílias. E é através desses, e de diversos outros elementos que a literacia se apresenta nas produções infantis.

Os jogos de computadores e os programas Disney são muito apreciados pelas crianças e pouco valorizados pelos adultos, que os consideram de baixo valor educativo. É preciso desconstruir essa percepção, para aproveitamento dos interesses das crianças e da cultura popular para o letramento/literacia. (KISHIMOTO, 2010, p.32)

No fim das contas, apesar dos dons, os Madrigal são uma família perfeitamente normal. E o que haveria de errado nisso?

Este é um fator essencial, o processo de compreensão na literacia tem início a partir da confiança naquele conteúdo, seja ele na televisão, internet, ou outro. A criança, ou até mesmo a família que assiste compreende a produção como um conteúdo relevante, que vale apena ser assistido. A Disney, por si só, apresenta um grande nome que gera expectativa, mas também uma grande confiança nas suas produções.

Muito mais que um dom

Luisa é a irmã de Mirabel, e recebeu como dom a superforça. Entretanto, o filme apresenta a dificuldade da personagem em lidar com a ansiedade e o nervosismo de “carregar a vila em suas costas”, com inúmeras responsabilidades e com medo de decepcionar a sua família. Uma temática forte e importante, considerando o crescimento dos índices de ansiedade em crianças e adolescentes.

Já Isabela, irmã mais velha de Mirabel possui o dom de criar os mais diversos tipos de flores, um dom tido pela família e por toda a vila “tão perfeito quanto ela”. A pressão pela perfeição criou na personagem o dilema de não poder falhar e seguir exatamente aquilo que esperavam dela.

Outros personagens aparecem ao longo da animação com o destaque para seus dons e os reflexos da pressão principalmente familiar.

Com destaque, o personagem Bruno, tio de Mirabel é visto como vilão pela família, sugerindo que seu dom é o de fazer com que coisas ruins aconteçam. Um grande engano, uma vez que o dom é justamente prever os acontecimentos.

Devidamente contextualizados, é importante ressaltar como esse diálogo traz diversos benefícios para a compreensão de quem está assistindo, apresentando de maneira clara alguns comportamentos e até mesmo definições voltadas para a saúde mental dos personagens, criando uma clara ponte com o que acontece além das telonas e telinhas.

Mas e a Mirabel?

O sucesso do filme carrega na sua essência a identificação com o personagem. Mirabel é uma garota colombiana, possui cabelo cacheado e utiliza óculos, elementos estéticos geralmente distantes das famosas princesas da Disney. Vinda de uma família grande, Mirabel é a 5ª neta de Alma, que recebeu a vila de encanto através de um milagre, e desde então todas as suas gerações recebem um dom com o objetivo de manter e fortalecer a vila.

A personagem, entretanto, é a única que não recebeu dom algum, e vive no dilema entre se aceitar da maneira exata que é, e também se sentir acolhida como parte da família.

Uma discussão importante, que apresenta ao público principalmente às competências voltadas para a análise crítica de como Mirabel é tratada pela família, e como ela se sente em relação a isso, e o percurso que a personagem passa até ser reconhecida exatamente por ser quem ela é.

Aqui a vida é fantástica, mágica?

Com esta breve iniciação à literacia buscamos apresentar como as produções infantis são fundamentais para o desenvolvimento das mais diversas literacias, incluindo a midiática. Podendo assim, se tornarem grandes aliadas, andando de mãos dadas com a escola e a família para a construção de indivíduos mais letrados, atentos e autônomos.

Referências

GRIZZLE, Alton; MORRE, Penny; DEZUANNI, Michael; ASTHANA, Sanjay; WILSON, Carolyn; BANDA, Fackson; ONUMAH, Chido. Alfabetização midiática e informacional: diretrizes para a formulação de políticas e estratégias. Brasília: UNESCO, 2016.

KISHIMOTO, Tizuko Morchida. Alfabetização e letramento/literacia no contexto da educação infantil: desafios para o ensino, para a pesquisa e para a formação. Revista Múltiplas Leituras. V.3, n.1–2, 2010, p. 18–36.

OLIVEIRA, Priscila Estevo de. O fantástico mundo da animação: Uma breve reflexão sobre o uso dos desenhos de Walt Disney em sala de aula. In VII CONGRESSO DE HISTÓRIA, 2015, Maringá-PR, Anais do Congresso. 2015, p. 2381–2393.

PEREIRA, Sara; PINTO, Mnauel; MOURA, Pedro. Níveis de Literacia Mediática: Estudo Exploratório com Jovens do 12º ano. Braga: Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, 2015.

--

--