O Cinema como provocação: uma perspectiva sob a ótica da Literacia Midiática do filme “Triângulo da Tristeza”

Ganhador do Palma de Ouro 2022 em Cannes, Triângulo da Tristeza é provocador em seu roteiro e cheio de espaço para gerar reflexões sobre os elementos do nosso cotidiano.

O filme Triângulo da Tristeza atingiu seu ápice ao receber o Palma de Ouro em Cannes 2022, festival de grande relevância, reconhecido pela valorização da arte na produção cinematográfica e pelo destaque da diversidade como forma de expressão entre distintas visões culturais. Dirigido pelo sueco Ruben Östlund, ele apresenta uma abordagem crítica a respeito da sociedade contemporânea, a partir de diálogos que simulam cenas da vida cotidiana, em uma narrativa que permeia realidades projetadas em distintos cenários e navega de acordo com as relações humanas presentes em cada uma das situações. O filme oferece ao espectador uma perspectiva para interpretação da sociedade contemporânea, nele representada pelas experiências culturais das quais participamos todos os dias.

Neste artigo, iremos explorar o filme a partir do entendimento de que ele se torna uma aula de Literacia Midiática, que é a capacidade de acessar, analisar e entender em maior profundidade as mensagens que circulam nos meios de comunicação, possibilitando o desenvolvimento de indivíduos mais críticos e ativos.

Palavras-chave: Triângulo da Tristeza, Literacia Midiática, Cinema, Identidade

Triângulo da Tristeza é uma provocação. Um filme que busca ilustrar antagonismos sociais que imperam sobre a nossa geração. É como se nos mostrasse cenas que chegam a ser assustadoramente reais, por meio de imagens e discursos em um tenso terreno psicológico.

Uma obra pode permanecer em um tom “realista”, construindo um mundo plausível, ao mesmo tempo em que opera um tratamento particular do material narrativo e “por seus desvios de uma estética plenamente realista e clássica, convidam a uma leitura simbólica” (Vanoye, 2012, p. 57). Como uma sátira da sociedade pós-moderna em uma luta de classes por status e capital, o filme é dividido em três partes, demarcadas pela ruptura entre os cenários que aparecem como referências estéticas em cena.

Joan Ferrés explica que uma das formas de se analisar literacia é através da da narrativa apresentada pelo material (2015). O filme começa localizado em uma grande cidade, nos mostrando a dualidade entre glamour e desafios na vida de um casal de modelos, Yaya e Carl. Ambos têm a oportunidade de viajar para um cruzeiro de luxo, patrocinado por uma estratégia publicitária da modelo e influencer. O navio de luxo com poucos passageiros ilustra a segunda parte do filme, mais direcionada a mostrar para a audiência como diferentes pessoas começam a conviver e formar relacionamentos em um ambiente que é restrito fisicamente e ao mesmo tempo possui diversas representações sociais entre os passageiros e os que os servem. Por um acontecimento particular, o terceiro cenário é uma ilha deserta, onde se configuram novas moedas de troca, competências e qualificações pessoais, e as relações se reconstróem em uma nova organização social. Através das cenas dos personagens ao longo da linearidade do tempo que permeia as diferentes partes do filme, observamos como suas identidades, comportamentos, discursos e relacionamentos se transformam em uma disputa por símbolos de poder.

Ao longo da história que nos é contada, percebemos também que necessidades e paixões se redefinem de acordo com os ambientes, mostrando o imenso potencial da resiliência humana e buscando estimular reflexões na audiência. Do ponto de vista da Literacia Midiática que o filme transmite, avaliaremos seu papel para contribuir na formação crítica dos indivíduos em relação aos meios de comunicação, comparando e contrastando, pela perspectiva de Joan Ferrés (2015), de forma qualitativa em relação a: Reflexão Crítica, Representação e Diversidade, Mensagens e Valores.

1. Reflexão Crítica: Como nos comportaríamos caso estivéssemos em uma ilha deserta? Em uma reflexão generalista, pensamos com pouca profundidade sobre “o que eu levaria para uma ilha deserta”. Mas Triângulo da Tristeza vai além. As características humanas que o filme transmite nos mostram diálogos que permeiam, através dos cenários, relações, significados e estruturas sociais. Seu roteiro traz as nuances da multidimensionalidade humana, caracterizando comportamentos que vão muito além da dualidade entre o mocinho e o vilão, entre o bem e o mal.

2. Representação e Diversidade: Como tons que ecoam em representações da realidade dos distintos personagens, cada um está em busca do seu “Eu Ideal”, por meio de lutas solitárias para sobreviver e conviver em busca de um estado mais pleno. Em “O Mal-estar da sociedade”, Freud nos fala sobre o conflito constante, onde nosso Eu racional (conhecido como Ego, consciente, o Homem Cartesiano) se equilibra entre duas dimensões subjetivas que podem se contrapor: as nossas pulsões individuais e as regras que são determinadas pela sociedade. Em uma das cenas, observamos esta representação quando um passageiro está disposto a dar um presente caro para que a modelo tire uma foto com ele para as mídias sociais, demonstrando que uma situação simulada pode ser de grande valia para um sujeito que vive em sociedade.

Interpretando o filme: Reflexões sobre Mensagens & Valores

O capitão do navio. Na trajetória do homem sobre a Terra desde as cavernas, as interpretações fazem parte do cotidiano e são constituintes do sujeito. Vivemos em um mundo onde as representações são importantes para a sociedade. Em uma das cenas, cria-se um evento onde o capitão do navio, que na maior parte do tempo está embriagado e dormindo em sua própria cabine, é convocado a colocar seu traje de Capitão e saludar os passageiros do cruzeiro de luxo em um sofisticado jantar. “Não esquece de colocar a roupa/não vai beber” são algumas das considerações que ele deve priorizar. Essa situação do filme ilustra o quanto a imagem que projetamos socialmente é importante para uma sociedade controlada, como em um simulacro que Baudrillard explica muito bem.

O mal-estar. A cena que ilustra a ruptura entre a segunda e terceira parte do filme demonstra o eterno mal-estar da sociedade. No evento do “Jantar do Capitão” são servidos uma série de pratos que representam o símbolo de status, examinando a elite de forma crítica. Muitos dos pratos não são conhecidos ou saborosos, e se tornam intragáveis no balanço do navio. A tomada da câmera tem o intuito de provocar uma experiência imersiva ao se mexer intensamente como se fosse uma simulação, buscando provocar no sentido de até que ponto somos capazes de engolir o que a sociedade nos propõe como alternativa viável de estilo de vida.

O meio é a mensagem. MuLuhan nos ensina que o meio é parte constituinte da mensagem. O meio analisado, neste caso, é a rádio do navio, com uma comunicação que de forma geral é estruturada, clara, neutra e tem como objetivo de transmitir sensação de conforto, confiança e segurança. O filme satiriza a reação dos passageiros quando recebem uma mensagem que não é esperada através do canal e a confusão ocorre quando os eles acabam ouvindo na rádio uma discussão acalorada entre um americano socialista e um russo capitalista, o que gera um desconforto ainda maior.

Vida para consumo. Bauman argumenta que vivemos em uma sociedade de consumo na qual a busca pela satisfação e felicidade é cada vez mais mediada pelo consumo de bens e serviços. Neste contexto, o filme mostra a vida da personagem Yaya que, como influenciadora digital, desempenha um papel significativo promovendo produtos e estilos de vida associados a marcas e empresas. No filme, o conteúdo que ela produz no Instagram é consumido massivamente por sua legião de fãs, dentro de um cotidiano que é simulado para ser mostrado através da internet. Desde múltiplas tentativas pela foto perfeita a uma preocupação excessiva por uma legenda minimalista que demonstre falta de esforço, até a foto para o Instagram onde a personagem simula comer um prato de macarrão, o filme traz cenas que polemizam o real e simulado nas redes sociais.

O espectador pode ter distintas experiências sobre o filme com base em sua própria literacia midiática e assim compreender as mensagens em diversos níveis de profundidade, de acordo com o seu repertório cultural e a sua crítica individual. A complexidade da mensagem será absorvida por meio do grau de literacia de cada um, já que interpretações ocorrem em praticamente todas as cenas, algumas mais óbvias e outras mais sutis. Triângulo da Tristeza se torna, portanto, um convite a uma reflexão sobre a conjuntura atual em que vivemos com potencial para levar o espectador para um novo patamar de literacia midiática.

Referências

BAUDRILLARD, Jean. A sociedade do consumo. Lisboa: Edições 70, 2007.

_____ . Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio D´Água, 2981.

BAUMAN, Zigmund. Vida para Consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

FERRÉS, J., & Piscitelli, A. Competência mediática: Proposta articulada de dimensões e indicadores. Lumina, 9(1), 16, 2015.

FONTENELLE, Isleide Arruda. Cultura do Consumo. São Paulo: Ed. FGV, 2017.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. London: Penguin Books, 2011.

MCLUHAN, Marshall. Understanding Media: The Extensions of Man. Cambridge: Mit Press, 1994.

VANOYE, Francis. Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas: Papirus, 2012.

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