O que a Cinderela da Amazon, o feminismo neoliberal e o empreendedorismo têm em comum?

A nova versão do clássico Cinderela, lançada pela Amazon no dia 3 de setembro, tem dividido ainda mais os brasileiros que circulam pelo ambiente já polarizado das redes sociais digitais. Muitas críticas são direcionadas às opções estéticas e de linguagem adotadas pela diretora Kay Cannon. Mas a polêmica que mobiliza mesmo o público fica por conta da repaginada feminista dada ao velho conto de fadas. Feminista? Mas que tipo de feminista?

Nesta releitura do clássico da Disney de 1950, a Cinderela não mantém a beleza clássica europeia do desenho animado que conquistou gerações. Quem lhe dá vida é a cantora cubana Camila Cabello, com seu balanço cheio de latinidade. Mas a principal inovação é que o sonho da personagem Ella, muito mais do que se casar com o príncipe encantado e ser feliz para sempre, é se tornar empreendedora do mundo da moda — e quem a ajuda a realizá-lo é seu “fado madrinho”.

“Eu não quero uma vida cativa acenando de uma varanda real”, justifica a personagem.

Literacia midiática

Em Alfabetismo transmedia — uma introdução, Scolari, Winocur, Pereira e Barreneche (2018) afirmam que o alfabetismo, o processo de desenvolvimento de competências de leitura e escrita, dura a vida toda. O mesmo, conforme os autores, acontece com a alfabetização transmidiática, o desenvolvimento das competências ou habilidades necessárias para que as pessoas possam consumir e criar conteúdos para os meios de comunicação — incluindo as redes sociais digitais.

Eles defendem, reforçando uma tendência mundial, que estas competências sejam ensinadas na escola, dado o quanto são importantes para o pleno desenvolvimento do indivíduo na sociedade contemporânea.

Em Competência midiática: proposta articulada de dimensões e indicadores, Ferrés e Piscitelli (2015) propõem que, para operacionalizar a análise metodológica dessas competências, é necessário relacionar as seis dimensões que atestam como o público recebe a mensagem e como gera novos conteúdos a partir dela: linguagem, ideologia e valores, estética, tecnologia, processos de interação e de produção e difusão.

A partir da análise dos comentários feitos pelo público nos posts publicados pela Amazon Primei na campanha de divulgação do novo filme da Cinderela, é possível perceber que os brasileiros têm muito o que caminhar neste processo permanente de alfabetização midiática: faltam habilidades que articulem algumas destas dimensões apresentadas pelos autores, como é o caso da estética e a da linguagem.

São muitas as críticas que demonstram o desconhecimento das características, por exemplo, do gênero cinematográfico musical . “Filme chato, cheio de música”, é um comentário usual. Há grande confusão também com o fato do lançamento ser uma versão do filme original da Disney: “Desvirtuar a obra original, que absurdo”, é reclamação comum nos comentários.

A falta de habilidade com a dimensão de ideologia e valores, entretanto, é a que mais causa impacto. Além de preconceitos religiosos, de classe, de raça e de gênero, tanto fãs quanto críticos da nova Cinderela demonstram profundo desconhecimento sobre questões pertinentes ao debate sobre feminismos, o que prejudica a análise da obra e da forma como a mensagem contida na nova versão do conto de fadas impacta na “homogeneização do pensamento” contemporâneo, conforme observam Ferrés e Piscitelli.

Visto e mal visto

A Amazon investiu alto na publicidade pré-lançamento de Cinderela, com a distribuição de farto conteúdo nas redes sociais. E o público reagiu. No Tik Tok, só a postagem Trailer Parte 2, feita no dia 4 de agosto, há um mês do lançamento oficial, recebeu 25,2 mil curtidas. Foram 415 comentários até o dia 4 de outubro, dos quais apenas dois criticaram a opção pela releitura feminista do clássico infantil. Evidência de que a expectativa do público em relação à obra era positiva.

No post, o spoiler ficou por conta da cena em que o “fado madrinho” ajuda Cinderela a se preparar para o grande baile. “Mentira que a fada madrinha vai ser uma mona”, disse uma fã. “Já vimos que vai ser o melhor personagem kk”, afirmou outro. “Quando vi o ‘fado medonho’ entrando, escutei o som do tabu sendo quebrado”, destacou A.S.

O viés feminista também foi aplaudido. “Já gostei só pelo fato de não ser a mesma releitura clichê de sempre e fugir dos padrões”, ressaltou uma fã de Camila Cabello. E mesmo quem discordava, o fazia com a expectativa positiva em relação à obra: “Eu ia querer uma vida cativa acenando da cabine real”, confessou A.L.G., dialogando com a princesa que fala o contrário. Esta realidade mudou completamente após o lançamento oficial, em 3 de setembro.

Uma pesquisa feita no Google, no dia 3 de outubro, exatos 30 dias após o lançamento do filme, mostrou aproximadamente 16,3 mil resultados da busca pela hashtag de trabalho da campanha no Brasil: #CinderelaNoPrime. O filme, portanto, foi visto e comentado. Mas não foi bem aceito pelos fãs. Na plataforma de streaming, a nota de Cinderela é 4,2 pontos, de um total possível de 10.

Ao contrário do que ocorreu no post de pré-lançamento do Tik Tok, a postagem “Quem mais cinderelou por aí?”, feito pela conta @primevideobr, na sua página do Instagran, no dia 20 de setembro, recebeu mais comentários negativos do que positivos. Do total de 591 registrados, 150 foram escolhidos aleatoriamente e analisados para este artigo. Dentre eles, 94 são negativos, contra 39 positivos e 17 isentos. Um exemplo é o da jovem A.W., bastante objetiva: “Cinderela feminista? Tô fora”.

No Facebook, as críticas que explicitaram motivações religiosas ou moralistas foram minoria, mas impactaram o debate. Foram apenas duas dentre os 45 comentários feitos em postagem da Amazon Prime feita em 1 de setembro, mas que recebeu vários retornos dos internautas após o lançamento do filme e, por isso, também foram analisados para este artigo.

A enfermeira I.N. condenou o filme em comentário feito em um post intitulado “Cinderela está chegando”: “Gosto muito do Prime, mas já é demais colocar um filme, um clássico onde a fada madrinha é gay. Nada contra…porém, as crianças assistem, é desrespeito…”. O carioca J.P. ironizou: “Cinderela lacradora? Com “fado” madrinha? Fala sério!”.

Em comentário publicado na página Cristo Vive, também no Facebook, L.R. atribuiu as opções da releitura da obra à “agenda demoníaca”: “Uma Cinderela que acha o casamento antiquado, que foge dos padrões, uma fada homem vestido de mulher, que apoia que a mulher faça o mesmo, perdendo sua identidade de gênero. É nítido o que vemos, parte dessa agenda demoníaca que aos poucos se impõem para que se normalize os padrões mundanos até mesmo chegando a área infantil, mexendo com nossas mentes já a partir da infância, querendo trazer à normalidade o que a palavra de Deus sempre condenou (…)”.

Alguém falou em abrir um MEI?

Uma minoria de internautas conseguiu ir além da polarização entre os favoráveis e contrários à versão feminista. E acabaram por debater outras ideologias e valores abordados pelo filme, ainda que de forma superficial. Dentre eles, estão os que conseguiram relacionar a “moral da história” ao empreendedorismo e à meritocracia — esses valores tão caros ao neoliberalismo, sistema no qual o emprego formal é cada vez mais escasso e só resta aos trabalhadores “o sonho de viabilizar o próprio negócio pelo seu próprio esforço”.

Dentre os comentários feitos nesta linha, destaca-se um transformado em post pela própria @amazonprimebr, que faz um trocadilho ao apoiar o fato de Cinderela ter trocado o casamento pela abertura de um MEI, o registro de microempreendedor individual que, no Brasil, regulamenta o trabalho autônomo. Aquele de quem trabalha por conta própria e, por isso, fica isento dos direitos trabalhistas convencionais: “AMEI Cinderela! Principalmente pelo fato de que tudo que Ella precisava realmente não era casar com um príncipe, mas abrir um MEI”.

G.C. foi na mesma linha: “Ela só queria um MEI”. R.R., também: “Ela abre o MEI dela”. A Escola de MEI não pensou duas vezes e usou sua página no Instagram para comentar e se fazer vista: “Alguém falou em abrir uma MEI?!?”. S.P. destacou até as estratégias usadas pela protagonista para viabilizar seu empreendimento: “Ela foi pra festa fazer network e fechar negócio”.

A ex-dançarina do É o Tchan, Carla Perez, fez da promoção do filme um negócio para ela própria, em um post-propaganda feito no seu Instagram, no dia 17 de setembro, em que exibe um vídeo, gravado a convite da Amazon, em que ela própria é a Cinderela. Neste negócio, ela reforçou a ideologia do empreendedorismo, caracterizada pelo viés meritocrático: “Você pode ser quem você quiser”. O post obteve 237.288 visualizações.

Feminismo neoliberal

Em 2019, Cinzia Arruzza, Nancy Fraser e Tithi Bhattacharya lançaram simultaneamente em todo o mundo, com surpreendente sucesso, o livro Feminismo para os 99%: um Manifesto. Na obra, elas defendem que um feminismo que se propõe a exigir o fim das opressões e das desigualdades não pode se contentar em lutar apenas pela representatividade feminina no mundo dos negócios.

Para as autoras, um feminismo capaz de tornar o mundo melhor deve ser anticapitalista, antirracista, antiLGBTfóbico e ecológico.

Na obra “Feminismo, capitalismo e a astúcia da história”, publicada em 2009, Nancy Fraser já dizia que, ao trocar o feminismo radical dos anos 1960 e 1970 pela luta por reconhecimento da diferença, o movimento feminista passou a caminhar lado a lado com a economia neoliberal e, assim, perdeu seu potencial transformador.

Mais recentemente, em O velho está morrendo e o novo não pode nascer, publicado em 2020, Fraser elaborou ainda mais o argumento para demonstrar como o neoliberalismo foi capaz de articular uma política regressiva na economia com outra progressiva de reconhecimento. Na economia ele retira direitos dos trabalhadores e fecha postos de trabalho, enquanto nos costumes, prega que qualquer um pode ser tudo o que quiser, desde que acredite em si mesmo.

Trata-se do que vem sendo chamado ironicamente de “neoliberalismo com face humana”, um sistema que abraça o politicamente correto nos costumes, mas continua a expropriar os trabalhadores nas relações de trabalho. Trabalhadores que são levados a crer que se realmente acreditarem nos seus sonhos, irão vencer como empreendedores — a ocupação símbolo de uma economia cada vez mais desregulamentada, meritocrática e cruel com os mais pobres.

Tal como faz parecer a nova Cinderela da Amazon.

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Najla Passos
COMUNICAR: popularizando a Literacia Midiática

É jornalista, mestre em Linguagem e doutoranda em Comunicação pelo PPGCOM/UFJF