O que sobrou do céu, o que sobrou da gente

O Rappa sempre foi uma das minhas bandas favoritas. Conheci o grupo na adolescência, pela televisão, através da MTV Brasil (a antiga, raiz!). Ainda que não tivesse a consciência crítica que tenho hoje sempre tive fascínio pelas letras das músicas. São a mais suave e dura poesia do cotidiano brasileiro. A violência urbana, a religiosidade, o sincretismo, a desigualdade, as injustiças… a vida seca, sabe?! Aliás, o nome da banda veio da expressão “rapa”, usada no Rio (acho que em São Paulo também) para se referir as abordagens truculentas de policiais aos camelôs (tô tentando ser diplomático! Mas olhem essa cena da novela “Verão 90” que não me deixa mentir! Deram uma amenizada no teor já que trata-se de uma ficção de comédia ás 7 da noite, mas a cena não foi incluída na novela por acaso a crítica a esse tipo de ação, muito comum nos anos 90, tá lá).

Fonte: Wikipedia
Fonte: Wikipedia

Desconfio que o teor do que é cantado e o som original e brasileiro da banda se devem as diferentes origens dos integrantes d’O Rappa. O baterista e tecladista Marcelo Lobato vinha do grupo Afrika Gumbe (só esse grupo já renderia um outro artigo sobre N’Gumbe, dança e ritmo da Guiné Bissau, e o encontro de imigrantes africanos na Lapa, no Rio), o guitarrista Xandão Menezes acumulava experiências com grupos africanos na noite parisiense e o baterista e compositor Marcelo Yuka (morto em janeiro desse ano) saía da banda de reggae da Baixada Fluminense KMD-5. Só para registrar a BXD (ou a BF, como queiram) é berço de gerações talentosíssimas (compositores, cantores e bandas) do nosso rap, do funk, hip hop, do reggae…

O Rappa nasceu para ser provisório. Tinha data para morrer. Foi reunido às pressas para acompanhar os shows do cantor de reggae Papa Winnie no Brasil, em 1993. O trabalho deu certo, o som agradou, e o que era provisório virou permanente. Só faltava um vocalista, encontrado a partir de um anúncio nos classificados do jornal O Globo. Foi assim que Marcelo Falcão entrou para o Rappa. Essa reunião de gente tão diferente (os músicos vinham de realidades, experiências e estilos distintos) podia dar muito errado. Deu certo.

Até anunciarem uma pausa na banda (esperança de que voltem!), em 2017, foram lançados mais de 10 discos. Transformando em arte a vida e as dores do povo, colocando o dedo nas feridas brasileiras, sabe?! Nesses 24 anos de trajetória, a música “O Que Sobrou do Céu” (Ouçam a versão do “Acústico MTV” em parceria com a Maria Rita) se tornou uma das minhas preferidas. A letra fala sobre a capacidade do ser humano de se distrair da vida real, da realidade que o cerca. Segundo a composição, a televisão e a tecnologia tem parcela importante de responsabilidade nessa distração. Não por acaso a parte que eu mais gosto é: “Faltou luz, mas era dia./O sol invadiu a sala./ Fez da TV um espelho refletindo o que a gente esquecia.” Não quero bancar o chato aqui, mas sacam a poesia disso? Foi num dia sem energia elétrica que o sujeito viu na tela da TV (no reflexo da tela preta, deligada) a vida que acontecia lá fora de casa, como canta na sequência: “O som das crianças brincando na rua como se fosse um quintal./ A cerveja gelada na esquina como se espantasse o mal”. Como um espelho, refletindo o que ficava esquecido nos outros dias, na rotina, com a TV ligada. Acho que a identificação com a música vem da sensação de que ela faz uma leitura crítica do real. E de como esse simulacro que é a tevê, de representações diárias desse “real” no telejornal, na novela, na série, pode nos confundir e confinar nossa experiência com o real real.

Fonte: Divulgação HBO

Nos últimos dias terminei de assistir a primeira temporada da série “Euphoria”, da HBO. A ficção é a sensação da temporada, tanto de crítica quanto de público. (O conselho de pais dos Estados Unidos chegou a pedir a HBO o fim da exibição da série) O motivo? Cenas de sexo, de consumo de drogas e bebidas alcoólicas, de estupro, de abuso sexual e psicológico, de agressões físicas violentas, de machismo… todas protagonizadas por jovens e adolescentes. O universo ficcional da série acompanha a história de estudantes do ensino médio em uma escola norte-americana e aborda situações as quais eles estão expostos como ansiedade, vazamento de conteúdo íntimo na internet e violência em uma sociedade medicamentalizada, competitiva e hiperconectada.

Agora, o que O Rappa tem a ver com “Euphoria”? Além de abordar temas que deveriam ser amplamente discutidos na sociedade para ontem, tem a questão do “real”. Acredito que o que incomoda alguns ao assistirem a série, ou ouvirem as músicas, é o modo real (ou próximo ao real) como essas questões são (re)apresentadas ao público (outras séries, filmes e livros já retrataram temas de “Euphoria”, por exemplo, sem levantar muitas reações contrárias). A conclusão que eu chego é de que as pessoas gostam do real, ele fascina, elas o querem, mas quando o real (ou o que forja o real) se apresenta causa estranheza, repulsa. As vezes por sua dureza e crueldade.

Um dia desses estava lendo um livro do Jean-Louis Comolli para uma disciplina do doutorado (chama “Ver e Poder”, lançado em 2008, pela Editora UFMG. Juro que não é um publipost! Mas é que o livro é muito bom!). Comolli é um cara inteligentíssimo, cineasta francês e escritor a frente de seu tempo. Escreve muito sobre o cinema, sobre tecnologia, audiovisual, essas coisas. Em um de seus textos Comolli lembra que a apresentação das primeiras imagens em movimento ao público em um café francês pelos irmãos Lumière, em 1895, foi marcada pelo medo. “Medo diante da impressão de realidade” produzida pelo cinematógrafo. Sendo assim, concluiu que o audiovisual (no caso dele o cinema) não tem outro sentido senão o de virar pelo avesso nossas sensações. Assim como as músicas e séries de hoje.

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