Orientalismo e competência midiática: os discursos sobre Ásia

Ao longo das últimas semanas, uma considerável parte da cobertura jornalística brasileira se concentrou nos desdobramentos, possibilidades e resultados da eleição presidencial estadunidense. Enquanto a importância dos Estados Unidos é inegável sob uma perspectiva geopolítica, pouco se fala, em comparação, sobre outros centros econômicos que movimentam a dinâmica global, dentre eles a China, o Japão e a Índia, por exemplo. Considerando as projeções do FMI para 2020, a China, atrás apenas dos EUA, se constitui como a segunda maior economia do mundo, logo à frente do Japão, que é seguido por Alemanha, Reino Unido e Índia, respectivamente (TUON, 2020). Avaliando esses dados, das seis maiores economias mundiais, metade delas são asiáticas.

O papel da Ásia nos fluxos globais não se restringe à economia, contudo. A cultura pop japonesa e sul-coreana são fortes exemplos da influência desses países no âmbito cultural, e o consumo de tais é expressivo no Brasil. Centenas de animês (animações japonesas) estão disponíveis nas plataformas de streaming Netflix, Amazon Prime Video e Crunchyroll, e uma rápida pesquisa nos sites das principais editoras de mangá no país — como Panini, JBC e NewPOP — revela que a publicação de histórias em quadrinhos japonesas também possui considerável espaço no campo editorial. Ao pensar em Coreia do Sul, por sua vez, é inevitável falar do k-pop (música pop sul-coreana), que agrega um fandom brasileiro enorme. Apenas na plataforma Spirit, as fanfics (histórias ficcionais feitas por fãs) sobre a banda BTS ultrapassam as 150 mil.

BTS se apresentou no Brasil em 2019 para mais de 40 mil fãs. Fonte: BigHit Entertainment/Divulgação

Se vários países asiáticos desempenham papeis econômicos e culturais expressivos nos fluxos globais, então por que muito se fala em EUA e Europa e pouco se fala sobre Ásia no Brasil? E, mesmo quando é colocada em pauta, a Ásia, muitas vezes, é representada por discursos caricatos, exotizantes ou orientalistas. Corrêa (2020) pontua como a pandemia de Covid-19 potencializou discursos xenofóbicos contra imigrantes e descendentes leste-asiáticos, e argumenta que o modo de construção da imagem da China pela mídia contribui para a exotização do país, especialmente, nesse caso, no que se refere à alimentação, já que pesquisas indicam que o vírus Sars-Cov-2 pode ter sido transmitido através de morcegos na cidade de Wuhan. Urbano, Araújo e Melo (2020, p.118) também abordam a representação midiática da China ao longo da pandemia, e concluem que os veículos jornalísticos “parecem reforçar e/ ou recuperar narrativas orientalistas que buscam interpretar a China como ‘um outro’, diferente e distante de um ‘nós’, ‘branco e ocidental’”

Essas construções discursivas não são novas, apesar de adquirirem força com a pandemia de Covid-19, e remontam ao que Said (1996) denomina orientalismo. O orientalismo se refere à construção ocidental de um Oriente exótico e inferior, que, pelo contraste, reitera a superioridade e hegemonia do Ocidente. Essa é uma questão histórica que ainda não foi superada. Tanto na cobertura jornalística quanto em outras representações midiáticas ainda se vê — quando se vê — uma Ásia frequentemente baseada em visões orientalistas, que trazem discursos exotizantes, inferiorizantes ou estereotipados.

Raul Gil exibiu comportamentos racistas ao receber a banda sul-coreana Kard em 2017. Fonte: SBT/Divulgação

Nessa perspectiva, a competência midiática é de fundamental importância para que tais discursos sejam questionados. De acordo com Ferrés e Piscitelli (2015), a competência midiática está ligada à análise crítica de conteúdos e à capacidade de produção própria de mensagens. Assim, espera-se que, ao ler uma matéria jornalística ou assistir a filmes, por exemplo, o público seja capaz de analisar criticamente aquilo que está consumindo. Dentre as habilidades desejáveis, está a “capacidade de […] detectar os estereótipos, sobretudo de gênero, raça, etnia, classe social, religião, cultura, deficiência, etc., analisando suas causas e consequências”, bem como de “analisar criticamente os efeitos da emissão de opinião e de homogeneização cultural que exercem os meios” (FERRÉS; PISCITELLI, 2015, p.13). Esses indicadores são especialmente relevantes quando se considera o contexto das representações da Ásia e de povos asiáticos no Brasil, as quais, como pontuado, são comumente questionáveis.

Consumidores e interagentes competentes midiaticamente são, potencialmente, capazes de identificar representações baseadas em estereótipos culturais, que reforçam discursos dominantes e hegemônicos que desconsideram a diversidade de sujeitos ou que representam tal diversidade de maneira negativa ou caricatural. É imprescindível, portanto, que, numa perspectiva educacional, se invista na promoção da literacia midiática, de modo que o público seja cada vez mais crítico em relação ao que consome e identifique discursos midiáticos problemáticos, como os (inúmeros) discursos orientalistas.

Referências

CORRÊA, Lays Matias Mazoti. Em tempos de pandemia, (des)oriente-se: breves considerações sobre cultura e alimentação na China. Cadernos De Campo, v. 29 n. supl., 2020, p.135–143.

FERRÉS, Joan.; PISCITELLI, Alejandro. Competência midiática: proposta articulada de dimensões e indicadores. Lumina. Juiz de Fora, v.9, n.1, 2015, p.1–16. Disponível em: https://cutt.ly/xfGHhpj. Acesso em 23 abr. 2020.

SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1996

TUON, Ligia. Brasil está prestes a deixar grupo das 10 maiores economias do mundo. Exame, 9 nov. 2020. Economia. Disponível em: <https://exame.com/economia/brasil-esta-prestes-a-deixar-grupo-das-10-maiores-economias-do-mundo/>. Acesso em 10 nov. 2020.

URBANO, Krystal Cortez Luz; ARAÚJO, Mayara Soares Lopes Pinto de; MELO, Maria Elizabeth Pinto de. Orientalismo em tempos de pandemia: discursos sobre a china no jornalismo brasileiro. Rizoma, v. 8, n. 1, 2020, p. 106–122.

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