Otakus nas redes: como a atividade de fãs de animês e mangás pode estar relacionada à literacia midiática

Quando se fala em fãs, muitas imagens diferentes podem vir à mente. Algumas delas, inclusive, pejorativas. Com certeza, alguns pensam logo em grandes filas para a compra de ingressos, acampamentos improvisados por dias por aqueles à espera de shows ou mesmo adolescentes “histéricas” tentando uma foto com seus ídolos. Os estereótipos que assombram a imagem dos fãs são muitos, e seria impossível listar todos aqui.

Ao falar de fãs de animês e mangás, não poderia ser diferente: os estereótipos também estão presentes. Muitos imaginam cosplayers de roupas “estranhas”, alheios à realidade e, talvez, pouco sociáveis, o que faz com que essas características sejam frequentemente associadas aos otakus. No Japão, o termo otaku faz referência, de modo geral, a fãs de produtos como animês, videogames, ficção científica, tecnologia, dentre outros (AZUMA, 2009). No entanto, como explica Azuma (2009), a palavra adquiriu conotações negativas no país após o assassinato de quatro crianças em Tóquio e Saitama entre 1988 e 1989. O responsável pelos crimes era consumidor de animês, mangás e filmes de terror, o que foi enfatizado pela mídia na época. Como consequência, os otakus passaram a ser associados, por muitos, à perversão e a comportamentos antissociais, sem habilidades de comunicação e absortos em seu próprio mundo (AZUMA, 2009). No Brasil e em outros países ocidentais, entretanto, a palavra foi absorvida com um significado mais positivo, designando, de forma geral, os fãs da cultura pop japonesa, ainda que, de certo modo, também possa carregar a ideia de antissociabilidade, fanatismo ou exclusão. Dessa forma, embora seja um termo controverso, comumente é possível encontrar fãs de animês e mangás se denominando otakus no Brasil.

Pode-se perceber, portanto, como os fãs da cultura pop japonesa são frequentemente associados a estereótipos negativos. A realidade, contudo, é mais complexa, e a atividade de fãs demonstra como o engajamento desse público pode evidenciar, e mesmo estimular, habilidades e competências relacionadas à literacia midiática. Como argumenta Jenkins (2009), consumidores e produtores não desempenham, hoje, papéis totalmente separados, já que o público é capaz de produzir e ressignificar mensagens ativamente, se afastando da ideia de passividade que as primeiras teorias da comunicação defendiam. Nesse sentido, os fãs são interagentes ávidos, que podem comentar nas redes sociais, discutir sobre as narrativas ficcionais que acompanham e mesmo ressignificá-las de acordo com seus interesses e vontades, seja através de fanfics, podfics, fanarts, dentre outros.

Fanart da obra Shingeki no Kyojin (Attack on Titan). Fonte: Deviantart/ IFrAgMenTIx

Alguns fãs de animês e mangás atuam até mesmo na tradução e distribuição de conteúdos. Exemplos disso são as práticas de fansubbing e scanlation. Os fansubbers são fãs que legendam informalmente e gratuitamente conteúdos para o consumo por outros. Isso não se restringe à cultura pop japonesa, mas abrange qualquer outro tipo de legendagem informal: há legendas para games, filmes, séries e doramas, por exemplo. Urbano (2013, p.153) defende que “a prática fansubber passou de uma condição amadora para se constituir na principal base de mediação dos animes para os fãs brasileiros”, já que nem sempre os títulos são disponibilizados por fontes oficiais, como canais de TV e serviços de streaming. Já a prática de scanlation se refere à digitalização, tradução, edição e disponibilização de mangás para outros fãs (CARLOS, 2011). O scanlation permite que o fã tenha acesso, por meio de sites ou aplicativos, à tradução de títulos de mangá que não são publicados no Brasil, ou mesmo cujos capítulos ainda não tenham sido compilados em uma edição própria. No Japão, os capítulos saem primeiro em revistas e só depois compilados nos formatos utilizados pelas editoras brasileiras. Desse modo, mesmo que certo mangá seja publicado no país, há um espaço de tempo considerável entre o lançamento de determinado capítulo no Japão e a disponibilização dele no Brasil.

Mangá Yakusoku no Neverland (The Promised Neverland) traduzido por fãs. Fonte: Manga Bird

E como isso pode se relacionar à literacia midiática?

Segundo Livingstone (2004), a literacia midiática abrange a capacidade de análise, acesso, avaliação e criação de mensagens em uma variedade de contextos. A literacia midiática, portanto, está ligada tanto à análise crítica, quanto à produção própria de conteúdos, o que requer proficiência em diversos âmbitos de um processo comunicacional. Para legendar e distribuir animês e mangás, é necessário que o fã possua uma série de habilidades, que vão desde o conhecimento da linguagem — nativa e estrangeira — à capacidade de manusear as ferramentas digitais. A legendagem é composta por diversas etapas, que não se restringem apenas à tradução em si, mas que também envolvem a utilização de programas e softwares e o entendimento das dinâmicas de distribuição e difusão de conteúdos online. Muitas vezes, as comunidades de fãs também adotam posturas éticas em relação aos produtos legendados, estimulando a utilização de meios oficiais e pregando o respeito aos autores das obras, sendo que tal compromisso ético também pode ser considerado um aspecto da literacia midiática.

Capa da primeira edição de Yakusoku no Neverland, na qual os tradutores incentivam a compra oficial da obra. Fonte: Manga Bird

Embora o termo “fã” frequentemente evoque imagens negativas, as comunidades de fãs são muito mais complexas do que os estereótipos aos quais são por vezes associadas. Através da análise de práticas como a escrita de fanfics e a legendagem informal, é possível perceber que a literacia midiática pode ser correlacionada a certas atividades de fãs, incluindo os otakus. Dessa forma, os estudos na área são importantes para desmistificar a cultura de fãs e mostrar caminhos relacionados ao aprendizado informal de competências ligadas à literacia midiática.

Referências

AZUMA, Hiroki. Otaku: Japan’s Database Animals. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2009. 144 p.

CARLOS, Giovana Santana. O(s) fã(s) da cultura pop japonesa e a prática de scanlation no Brasil. 2011. 198 f. Dissertação (Mestrado) — Curso de Mestrado em Comunicação e Linguagens, Universidade Tuiuti do Paraná, Curitiba, 2011.

JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2009.

LIVINGSTONE, Sonia. What is media literacy? Intermedia, n. 32, v.3. p.18–20, 2004.

URBANO, Krystal Cortez Luz. Legendar e Distribuir: o fandom de animes e as políticas de mediação fansubber nas redes digitais. 2013. 175 f. Dissertação (Mestrado) — Curso de Pós-Graduação em Comunicação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013.

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