“Por favor, minta menos”: uma reflexão sobre meias-verdades, disputas narrativas e paciência crítica

Outro dia, em um desses aplicativos de relacionamento, uma pessoa perguntou sobre minha pesquisa de mestrado. Respondi em três linhas, de forma clara — eu achei –, que estudava a relação da linguagem documentária com a literacia midiática, colocando entre parênteses a definição de “literacia midiática”. Ela não entendeu. Disse que “literácia” era uma palavra confusa. Parece que foi confusa também para o teclado do celular dela, que a corrigiu automaticamente e acrescentou um acento que não existe. Ela perguntou de novo. Voltei a explicar. Fiquei pensando no estranhamento que o termo costuma causar em quem não o conhece e também na sua própria definição, que pode soar como um ruído de obviedades para quem escuta.

Literacia midiática é a habilidade para acessar, analisar, avaliar e produzir mensagens de forma crítica nos mais variados contextos. Uma definição genérica se comparada às atividades que já fazemos todos os dias: acessamos livros, televisão, internet e jornal; a julgar pela subjetividade de cada um, todos analisamos e avaliamos as informações que vemos e ouvimos; e criamos conteúdos para redes sociais, publicando fotos, posts e vídeos, por exemplo. Logo, o ponto não é se realizamos ou não tais atividades contidas na definição do termo, mas como as realizamos. Então, o que fazer para alcançar um estágio realmente competente de comunicação através das mídias?

Estamos em 2022. Ano eleitoral. Período marcado por debates e embates ao vivo na televisão de figuras que contam suas versões de mundo, recortam dados e distorcem narrativas para conquistar o eleitor. No meio disso, instituições jornalísticas fragilizadas se manifestam quando convém; memes inundam as redes sociais; e uma paciência crítica é requisitada do cidadão espectador — por mais estranho que possa ser as palavras “paciência” e “crítica” estarem lado a lado, já que a primeira remete à espera e passividade e a segunda lembra ação e movimento.

Mas isso não é algo novo. Voltemos às eleições de 2018. Na sabatina presidencial do Jornal Nacional (JN), ocorrida em 28 de agosto daquele ano, o candidato Bolsonaro mostrou uma cartilha supostamente distribuída nas escolas como parte de um “kit gay” para ensinar sexo às crianças. Tratava-se do livro “Aparelho Sexual e Cia — Um Guia Inusitado Para Crianças Descoladas”, escrito em 2001 pelos franceses Philippe Chappuis e Hélène Bruller e lançado no Brasil em 2007 pela Companhia das Letras, que nunca foi adquirido pelo Ministério da Educação (MEC) e nem distribuído nas escolas.

Suposta cartilha seria parte de “kit gay” incentivado por governos anteriores. Fonte: G1

Na tentativa de defender o pai da acusação de disseminar fake news no Jornal Nacional, Eduardo Bolsonaro publicou em suas redes o suposto livro com o carimbo de uma escola pública de Maceió. “Ué, mas não era mentira do Bolsonaro?”, satiriza a publicação. O livro mostrado, entretanto, sequer era o mesmo que o candidato à presidência havia mostrado no JN. Uma mentira para provar a verdade inexistente de outra mentira. Como disse Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda de Hitler na Alemanha Nazista, “uma mentira repetida mil vezes, torna-se verdade“.

Nas redes, filho de Bolsonaro tenta provar com fake news mentira disseminada pelo pai. Fonte: G1

O suposto “kit gay” nas escolas começou a ser disseminado no final de 2010, sendo sistematicamente repetido no congresso, em programas de TV e redes sociais, tornando-se viral em 2018 e novamente voltando a circular este ano. Seguindo os conselhos do marqueteiro da campanha de Donald Trump nos Estados Unidos, família e aliados de Bolsonaro constroem política baseada na repetição de discursos falaciosos para seduzir o ouvinte. Quando não é mentira por completo, são meias-verdades que disputam a narrativa e tomam o debate público, dificultando a leitura ampla e profunda do cenário político. É o que aconteceu, por exemplo, na corrida presidencial deste ano.

Quinta-feira passada (29), a Globo transmitiu o último debate entre presidenciáveis antes do primeiro turno destas eleições. Na ocasião, Bolsonaro citou a queda da inflação como prova de uma boa gestão econômica em seu governo. No entanto, a informação representa apenas um recorte dos dados apurados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) é considerado a inflação oficial no país. Ele é coletado mensalmente pelo IBGE, mas consolidado de forma anual. Logo, quando os números são observados de forma isolada e fora de contexto, como fez Bolsonaro, podem levar à interpretação errada e a desinformação ao eleitor.

Desde que Bolsonaro assumiu a presidência, o IPCA só aumentou. Para se ter ideia, em 2017, o índice foi consolidado em 2,95%. Após o primeiro o ano de governo do presidente, em 2018, subiu para 3,75%. Em 2019, passou para 4,31%. Em 2020, fechou em 4,52%. E em 2021, sofreu uma disparada para 10,06%. De acordo com a avaliação do IBGE, a inflação tem sido pressionada, sobretudo, pelo encarecimento dos combustíveis, fator responsável por gerar uma espécie de “efeito cascata” na economia, que corresponde a uma alta de preços generalizada.

Imagem descontextualizada com dados sobre inflação em alguns países circulou nas redes sociais esta semana. Publicação já alcançou mais de 65 mil compartilhamentos. Fonte: reprodução Facebook.

Com relação a 2022, o IPCA só será consolidado em dezembro. Até o momento, o IBGE segue realizando coletas de dados mensais. Para uma avaliação mais fidedigna, não se deve observar o resultado de um mês isoladamente, como fez Bolsonaro no debate, mas o acumulado dos últimos 12 meses, o que corresponde ao período de um ano. Em agosto de 2022, o IPCA teve uma redução de 0,36%. De fato, a informação apresentada por Bolsonaro é verdadeira: houve queda da inflação. Entretanto, ela foi descontextualizada para levar o público a crer que a economia nacional vive um bom momento, quando, na verdade, a situação é bem crítica: no acumulado de 12 meses, o IPCA está em 8,73%.

Além disso, a principal estratégia para reduzir a inflação tem sido realizar consecutivos aumentos da taxa básica de juros Selic, que em agosto chegou a 13,75%. Com os juros altos e uma inflação que ainda não foi controlada, os brasileiros enfrentam a redução do poder de compra e o aumento da inadimplência. Os dados da Serasa Experian mostram que, em agosto, o Brasil bateu record de consumidores inadimplentes, um total de 67,9 milhões. A alta da inadimplência e a redução do poder de compra levam à estagnação econômica. Fora que o desemprego atinge mais de 10 milhões de pessoas, segundo o IBGE. Ou seja, o momento econômico vivido pelo Brasil é crítico e bem diferente do que o que o candidato quis mostrar.

A parte que te cabe deste latifúndio

Se, de um lado, temos mentiras e meias-verdades, de outro temos instituições jornalísticas que se manifestam quando convém e acirram as disputas narrativas em jogo. Na sabatina deste ano ao Jornal Nacional, ocorrida em 25 de agosto, o candidato Lula foi perguntado sobre o pouco apoio que tem dos eleitores ligados ao agronegócio. “O senhor atribui esse afastamento a desconfianças talvez geradas pelo relacionamento do seu partido com o MST?”, perguntou Renata Vasconcellos. Lula respondeu que não e atribuiu esse afastamento à luta que o Partido dos Trabalhadores tem contra o desmatamento: “A nossa luta contra o desmatamento faz com que eles sejam contra nós”, concluiu. Em seguida, a jornalista interveio para falar que, ao contrário do modo como o candidato havia colocado, o agronegócio caminhava junto com o meio ambiente sustentável.

Fragilizadas por discursos sociais polarizados, instituições jornalísticas são fortes agentes na disputa do campo narrativo. A fala de Renata reproduz o que há anos a rede Globo defende, em uma tentativa de manter organizado o pensamento popular para a defesa dessa pauta. O tom adotado pelo presidenciável não convinha permanecer, portanto, por ser contrário aos interesses econômicos da emissora e por possibilitar o enfraquecimento de parte da opinião pública, que há anos vem escutando que o agronegócio é a indústria-riqueza do Brasil. O debate foi levado para as redes sociais por figuras contrárias a esse mercado, que também entraram na disputa narrativa se pronunciando, resgatando informações, estudos e memes para explicar o porquê que o agronegócio não é tech, não é pop e nem é tudo.

Sociedade civil e instituições especializadas se empenharam para mostrar suas versões dos fatos. Fonte: Instagram O Joio e O Trigo.

Diferente do terreno das grandes monoculturas agrícolas sob o modo capitalista de produção, o terreno do debate público é diverso. Comporta distintas opiniões sobre um mesmo assunto e posturas nada homogêneas. Por isso mesmo, identificar fake news pode ser mais fácil que desconfiar de meias-verdades ou interesses empresariais.

“Por favor, minta menos”. O título deste texto se refere à fala de Lula para Bolsonaro no último debate presidencial da Globo, que antecedeu o primeiro turno das eleições de 2022. Ela nos lembra a normalização da mentira na política brasileira, que toma o lugar das ideias de um país melhor para dar lugar à checagem do que é ou não verdade nos discursos. Nesse processo, agências de fact-checking (verificação de fatos) como a Aos Fatos e a Agência Lupa podem ser grandes aliadas do cidadão. Pois enquanto houver mentiras e meias-verdades, muita paciência crítica para lidar com tudo que chega até nós será preciso. E talvez essa seja a parte que nos cabe deste latifúndio: paciência para pesquisar e postura crítica para analisar e avaliar tais pesquisas.

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