Uma metodologia possível para analisar a literacia digital em museus

“Technology is changing the way we think about museums”
(Levent, Pascual-Leone and Lacey)

O contínuo e rápido desenvolvimento da tecnologia permitiu a criação de experiências digitais (realidade virtual, aumentada ou imersiva, entre outras), com abordagens multissensoriais aplicáveis, também, ao design de exposições. Ao mesmo tempo, acarreta oportunidades para atrair visitantes, que ao utilizarem as ferramentas tecnológicas lhes permite enriquecer as suas visitas aos museus. O termo ‘média interativo’ tornou-se a palavra de ordem no mundo destas instituições, mas ‘hipermédia’ e ‘média interativo’ são outros que podem confundir, quando se pretende desenvolver exposições.

Por isso, os museus enfrentam desafios ao nível da literacia digital, que a pandemia veio deixar ainda mais à tona. Foram, nessa altura (a partir de 2020), ‘forçados’ a ser criativos sobre como chegar a mais pessoas e, consequentemente, a ter de entender melhor a tecnologia, essencial a qualquer organização. A literacia e o acesso digitais são dois elementos fundamentais dos museus atuais, sem os quais estes correm o risco de ficar para trás e não chegar ao público ou aos visitantes. (Devine, 2021)

A literacia é necessária em mais do que uma frente dos atores deste ecossistema: museu — visitante (público em geral e mais jovens/ estudantes) — escola. A literacia digital na área museológica começará pela formação superior ou técnica dos profissionais que neles irão exercer museologia ou outra atividade, e a inclusão deste tema nos programas é essencial. (Arias, 2021) O assunto tem sido estudado por alguns projetos, como o One by One, da Universidade de Leicester, que visa ajudar os museus do Reino Unido a

“better define, improve, measure and embed the digital literacy of their staff and volunteers in all roles and at all levels. By introducing a new approach to digital literacy understanding and development, the project’s objective is to create new organisational mindsets in museums to help support their digital transformation needs.” (Parry et al., 2018, p. 3)

Outro estudo, sobre o impacto e desafios colocados pela informação e as mudanças nos museus da América do Norte (Duff et al., 2009), também sugere profundas mudanças que estão a ocorrer, com dificuldades acrescidas para os profissionais mais velhos, uma mudança geracional que mostra que os profissionais de gerações mais jovens percebem melhor a tecnologia como uma parte integrante do seu ambiente. São principalmente três os desafios mais comuns: “the cost of designing, implementing, and maintaining technology; a lack of in-house expertise; and information management.” (p. 1)

Ferrés & Piscitelli (2015) apresentam uma proposta de seis dimensões para “nortear” a literacia dos média, rumo a uma nova competência mediática do cidadão “prossumidor” (consumidor + produtor)[1], independentemente da idade: “linguagem, tecnologia, processos de interação, processos de produção e difusão, ideologia e valores e dimensão estética.” (Ferrés & Piscitelli, 2015, p.1) Essa competência e essa educação deve ser constante, para acompanhar o contínuo desenvolvimento da tecnologia e dos média, ao mesmo tempo buscando uma “cultura participativa” com o desenvolvimento da capacidade crítica. (p. 5) Cada uma das seis dimensões de competência ou literacia dos média envolvem habilidades, domínio de competências, capacidades e atitudes em dois âmbitos: da análise e da expressão.

O modelo que apresentam tem uma abordagem participativa e lúdica (para a educação mediática), e pode ser utilizado pelos museus para a avaliação dessas dimensões.

“Nunca poderá ser eficaz uma educação mediática que não advirta que as tecnologias apenas promovem a cultura participativa e a autonomia pessoal se forem colocadas a serviço de uma gestão adequada do capital emocional dos indivíduos. «A razão sem emoção é impotente», nas palavras de Jonah Lehrer.” (citado por Ferrés & Piscitelli, 2015, p.6)

Já Mihailidis (2014) é pertinente ao apontar a inadequação da rapidez dos aumentos tecnológicos em contraponto com a resposta lenta da educação, causando um atraso na forma como as ferramentas da tecnologia são apropriadas nos espaços formais de educação. (p. 114) Daí a necessidade da literacia, para que se facilite a comunicação entre pares, a partilha e a interatividade:

“Learning how to effectively use digital media plays a significant role in the ways new technologies are utilized in society. The question, then, is not whether or not these technologies are enhancing or dumbing down our culture, but rather how we can learn to use them in smart and meaningful ways. (Mihailidis, 2014, p.113)

Assim, ele propõe uma série de quatro conectores que ajudam a reformular as plataformas sociais de média, como ferramentas mais “holísticas e inclusivas”, criando oportunidades colaborativas: “clarifying terminology, integration into formal spaces, mindfulness, multimodality”. (pp. 115-ss.) Ao mesmo tempo, ajudam a diminuir a separação entre a forma como os mais novos utilizam as ferramentas e tecnologias sociais, e a sua perceção sobre o seu lugar e função na vida diária. (p. 119)

Por outro lado, ele afirma “que na cultura da convergência a literacia mediática engloba cinco habilidades: a curadoria, a criação, a compreensão crítica, a participação e a colaboração. Entretanto, como o autor destaca, “as dimensões estão interrelacionadas e esta separação é feita para que possamos analisar didaticamente cada uma delas.” (Borges & Sigiliano, 2020, p. 88)

“A habilidade da curadoria envolve a capacidade de organizar, filtrar, selecionar e sistematizar conteúdos. O autor ressalta que a curadoria ganhou novas possibilidades no ambiente de convergência como, por exemplo, o compartilhamento de links, a criação de threads e a elaboração de tutoriais.” (p. 89) “A habilidade de criação envolve a capacidade de produzir, remixar, compartilhar e integrar conteúdos em plataformas online. (p. 89) “A habilidade da compreensão crítica se refere, segundo Mihailidis (2014), à capacidade de analisar e compreender criticamente os conteúdos como, por exemplo o entendimento de mensagens, formato e gêneros a partir de suas semelhanças e especificidades.” (pp. 91–92)

Mihailidis (2014) propõe, ainda, o modelo 5A’s — que se desenvolve em continuidade — para uma literacia mais inclusiva para as tecnologias de média, e para aquilo a que apelidou de “Emerging Citzen” (cidadão emergente):

“The «5 A’s» developed as a continuum — access to media, awareness of media’s power, assessment of how media cover international and supranational events and issues, appreciation for media’s role in creating civil societies, and action to encourage better communication across cultural, social, and political divides approaches critical media inquiry habits on local, national and global levels. (…) Without access to information, civic society would not exist in its current form.” (p. 120)

Cada um destes pontos envolve perguntas nucleares, que permitem uma avaliação sistemática, podendo o modelo ser utilizado nos museus, para ajudar a um melhor envolvimento dos seus visitantes com os seus espaços públicos. (p. 142) Ao mesmo tempo, permite fornecer aos mais jovens as ferramentas e competências que estes precisam (p. 146).

“A tecnologia digital tem sido um catalisador
de mudança social nas sociedades contemporâneas.” (Scolari, 2018a, p.2)

PERGUNTAS NUCLEARES[2] :

Core Awareness Questions: What is the meaning of the information provided in larger social & civic contexts? What are the larger value systems in which media messages are constructed? How can we be aware of the representations media cultivate? How do media messages affect values? What cultural, political, social, or economic representations are embedded in the information? What are the underlying assertions associated with the information? What larger ideological positions are presented in this information? What are the limitations to understanding culture through media? (p. 133)

Core Assessment Questions: What is the purpose of the message? Who is the intended audience? Who is the author of the message? What sources are used to advance points in the messages? What techniques are used to grab attention? What symbols are used to create meaning in the message? What is the emotional appeal of the message and how is it triggered? How is authority built into the message? What information is not included or left out of the message? (p. 135)

Core Appreciation Questions: In what ways are media beneficial avenues for civil society? How does freedom of expression help maintain diversity? How can multiple perspectives build a more vibrant media environment? How can understanding media lead to more participation? How can my voice contribute to more vibrant dialog about issues, events, or hobbies? What responsibilities do I have to my family, friends and acquaintances in social media spaces? What types of behaviors will help build a more tolerant, diverse, and inclusive media culture? (p. 137)

Core Action Questions: How can I use media to have a voice? How and where can I participate in the creation of meaningful dialog? Who are the communities that I connect with, and what role do I have in those communities? What new digital avenues can I use to be active and engaged? How can I contribute to tolerance, diversity, and discourse in digital media culture? Where are my actions beneficial, and detrimental, to my local communities? How can I act to help better issues I care about, inform others on my positions, and engage in more valuable dialog? (p. 140)

Scolari (2018a) define Literacia Transmedia “como um conjunto de capacidades, práticas, valores, sensibilidades e estratégias de aprendizagem e intercâmbio desenvolvidas e aplicadas no contexto das novas culturas colaborativas. Tem como foco principal o que os jovens fazem com os media, considerando-os prosumers (produtores + consumidores)[3], capazes de partilhar e gerar conteúdos mediáticos de diferentes tipos e níveis de complexidade.” (p. 6)

Borges & Sigiliano (2020) consideram que um dos pontos centrais da proposta teórica de Scolari é “a leitura polissêmica e informal dos meios, ou seja, além permear por distintas plataformas os sujeitos são dotados do que o autor cunha como estratégias de aprendizagem informal.” (Borges & Sigiliano, 2020, p. 81)

“No âmbito do projeto Literacia Transmedia, as ‘estratégias de aprendizagem informal’ são definidas como a sequência de ações individuais ou coletivas com vista a adquirir e acumular conhecimento, capacidades e atitudes das experiências e interações diárias em diferentes contextos.” (Scolari, 2018a, p.11)

O público em geral encontra num museu um espaço de aprendizagem informal, onde essa prática estava presente muito antes de surgirem os sistemas de educação formal. A informalidade é particularmente importante e interessante para os jovens e para o ensino formal das escolas, que podem (e devem) encontrar na tecnologia — incluindo a digital — uma ferramenta útil, já que “os avanços tecnológicos atuais expandiram as situações de aprendizagem tradicionais, ao criarem novos espaços como media sociais, sites, comunidades online, etc. YouTube, comunidades de fãs e redes sociais podem ser espaços de aprendizagem informal.” (Scolari, 2018a, p.11)

A equipa de investigação de Scolari (2018b) sistematizou seis modalidades de diferentes estratégias: aprender fazendo, resolução de problemas, imitação/ simulação, jogando, avaliando e ensinando. Observou que os adolescentes utilizam esta estratégia de aprendizagem a nível individual e colaborativo, sobretudo em ambiente digital onde predomina o entretenimento, acabando por ser um fator de motivação. (p. 85) Os resultados mostram que, nesta população, o YouTube tem um papel central na sua vida, como elemento de cultura mediática e em muitos casos a sua principal fonte de obtenção de informação (ainda mais do que o Google), tomando como seus ídolos e modelos outros youtubers: os vloggers. (idem)

Esta, como outras redes sociais (como o Instagram ou o Twitter) permitem uma interação — síncrona e assíncrona — com conversações que facilitam e propiciam a partilha instantânea de conteúdos em rede. As hashtags (#), por exemplo, são um exemplo que permite a indexação e a consequente mobilização à volta dos tópicos que mais lhes interessam. (Borges & Sigiliano, 2020, p. 83) “A habilidade da participação abrange a capacidade de comentar, editar e propagar publicações em diferentes plataformas colaborativas, tais como fóruns e redes sociais.” (p. 94) “As hashtags acabavam formando, mesmo que indiretamente, comunidades momentâneas, contribuindo para o aprofundamento do universo ficcional.” (p. 98) Estão, assim, criadas formas de engajamento (engajement) a partir de estratégias informais, que os utilizadores criam naturalmente, sem mesmo delas se aperceberem, formando também verdadeiras comunidades, onde podem trocar ideias, dar opiniões ou até mesmo protestar.

Embora Borges & Sigiliano, e outros autores e investigadores, se debrucem sobre este assunto aplicando-o à análise do universo ficcional (como as séries de televisão), cremos que esta estratégia e metodologia de investigação de literacia mediática digital pode ser adaptada aos museus, como o Museu Nacional do Desporto, que pretendemos utilizar, de futuro, como estudo de caso.

“À medida que o digital se institucionaliza, os museus restruturam-se e evoluem, explorando, aprendendo e exigindo novas competências digitais, à medida que se inovam e criam conteúdos e artefactos digitais.” (Parry et al., 2018, p. 3)

O mundo atual está sobrecarregado de conteúdos digitais. Por isso, outros autores centram-se na análise desta “superprodução de conteúdos digitais estetizados, testemunho de experiências sociais, culturais ou recreativas, paradoxalmente efémeras e esquecidas.” (Veiga, 2021, p. 142) Também acreditamos que essa análise pode ser feita do ponto de vista da literacia mediática, incluindo a digital, aplicada a museus de temática especializada, como o desporto, onde ainda não se encontra muita investigação sobre este tema.

“We need to rethink the image-based media, whatever its format, and evaluate how we design and produce these images for nonlinear, museum applications.” (Thomas, 1991)

Bibliografia

Arias. (2021, junho 1). Teaching Digital Literacy in UK Museum Studies Programmes. What’s Emerging in the Field? Essays from the MCN 2020 VIRTUAL Scholarship Program Recipients. https://publications.mcn.edu/digital-literacy/

Borges, G., & Sigiliano, D. (2020). Malhação — Viva a diferença: Ampliação e ressignificação do shipp Limantha no Twitter. RuMoRes, 14(28), Art. 28. https://doi.org/10.11606/issn.1982-677X.rum.2020.174323

Devine, C. (2021, novembro 1). Digital Literacy And Access Are Musts For Today’s Museums. Jing Culture & Crypto. https://jingculturecrypto.com/catherine-devine-digital-literacy-access/

Duff, W., Carter, J., Dallas, C., Howarth, L., Ross, S., & Tilson, C. (2009). The Changing Museum Environment in North America and the Impact of Technology on Museum Work. 9.

Ferrés, J., & Piscitelli, A. (2015). Competência midiática: Proposta articulada de dimensões e indicadores. Lumina, 9(1), Art. 1. https://periodicos.ufjf.br/index.php/lumina/article/view/21183

Mihailidis, P. (2014). Media Literacy and the Emerging Citizen. Peter Lang US. https://doi.org/10.3726/978-1-4539-1293-5

Parry, R., Eikhof, D. R., Barnes, S.-A., & Kispeter, E. (2018). Mapping the Museum Digital Skills Ecosystem — Phase One Report [Report]. University of Leicester. https://doi.org/10.29311/2018.01']

Scolari, C. (2018a). Livro Branco. Literacia mediática na nova ecologia mediática (p. 16).

Scolari, C. (2018b). Teens, media and collaborative cultures. Exploiting teens’ transmedia skills in the classroom (p. 188). Universitat Pompeu Fabra — Barcelona.

Thomas, S. (1991). Interactive Media & the Museum Experience. Interactive Media, 5.

Veiga, P. A. da. (2021). The Everywhere Museum of Everything: The Curatorship Challenge, from Digital Urban Art to NFTs. Em H. Barranha & J. S. Henriques, Art, Museums and Digital Cultures: Rethinking Change (pp. 142–156). Instituto de História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade NOVA de Lisboa. https://doi.org/10.34619/HWFG-S9YY

NOTAS:

[1] O cidadão que além de consumir (as mensagens dos outros) produz e dissemina as suas próprias mensagens. (Ferrés & Piscitelli, 2015, p.5)

[2] Equacionar a inclusão na revista.

[3] O mesmo que “prosumidor”, que referimos anteriormente.

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