A contracultura foi parar nas capas de disco… e Óscar Ramos ajudou

Artista amazonense participou da transformação das embalagens dos LPs em objetos expressivos; com Luciano Figueiredo, ele assinou capas para Caetano Veloso, Gal Costa e Jards Macalé

Rosiel Mendonça
culturalab
13 min readJan 29, 2020

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Reencontro: Óscar (à direita), Luciano Figueiredo e Caetano Veloso em foto de 2014

Na manhã do dia 13 de junho de 2019, ainda indeciso quanto a dormir mais um minuto ou dois, saquei o celular e me deparei com a notícia: morre o artista visual Óscar Ramos, nascido em Itacoatiara, interior do Amazonas, 80 anos antes. O sono deu lugar ao choque, e foi impossível não lembrar da última vez em que estive com ele, num aconchegante apartamento da zona centro-oeste de Manaus, para entrevistar um dos “designers da contracultura” sobre os 50 anos da Tropicália. Devia ser março ou abril de 2017.

Naquele encontro fiquei sabendo que, mesmo tendo colaborado com alguns dos principais nomes ligados ao tropicalismo, como Torquato Neto e Waly Salomão, Óscar preferia manter um distanciamento sincero do movimento, negando inclusive a influência daquela estética sobre o seu trabalho. “Acho que a Tropicália foi uma tradução do inglês falado pelo pop art americano para o português”, ele me disse. A verdade é que, enquanto Caetano Veloso e Gilberto Gil moviam as estruturas da música popular brasileira, Óscar estava mais ligado nos acordes da Bossa Nova.

Mas os laços com a turma que caminhava contra o vento atravessaram as décadas. Num post feito no Instagram no dia seguinte ao farewell de Óscar, Caetano resumiu assim a sua reverência pelo amigo que acabara de partir:

“Seu nome e sua história merecem grandes homenagens e ele nos deixa muita saudade. Uma joia do Amazonas, do Brasil e do mundo que interessa”.

A produção de Óscar, considerada num sentido amplo, não se resumiu à pintura e ao desenho. Talento múltiplo, ele também foi curador, cenógrafo, diretor de arte premiado nos festivais de cinema de Gramado e Brasília pelos filmes “As sete vampiras” e “O escorpião escarlate”, além de designer gráfico exímio e requisitado.

Quem conviveu com o artista conta que ele era exigente com o próprio trabalho, que executava com precisão e perfeccionismo, uma herança das aulas de desenho técnico da época em que serviu o Exército. Por causa disso, podia passar meses debruçado sobre uma obra nova, inclusive correndo o risco de passar a odiá-la.

Fotografado pelo pai, em 1951, aos 13 anos de idade

Foi ainda na infância que ele tomou consciência das suas habilidades manuais — só não as considerava tão excepcionais quanto os outros costumavam comentar. “Desenhar para mim sempre foi um exercício diário com horas e horas de duração”, registrou no livro de memórias “Maya”, lançado em 2013.

O quintal da casa de Itacoatiara era, naqueles seus primeiros anos, um paraíso na terra para o pequeno Óscar. Abrigado pela sombra de uma palmeira, ele experimentou os primeiros traços. “Essa palmeira originava uma sombra deliciosa depois do almoço, hora da sesta para todos, e eu ficava sob essa sombra totalmente tomado pelo prazer de desenhar na terra com um graveto à guisa de lápis”, recordou.

Óscar no início dos anos 70, em foto de Ivan Cardoso

Da infância à maturidade, Óscar morou em Manaus, São Paulo, Rio de Janeiro, Londres, Madri e de novo em Manaus, participando de exposições, estudando, ganhando prêmios e pavimentando uma carreira nas artes. Em 1971, conheceu o também artista Luciano Figueiredo, que se tornaria companheiro de vida e trabalho, tendo sido ele o responsável por apresentar o amazonense ao grupo da contracultura e do underground carioca.

“De repente me vi diante de pessoas que eu não tinha ideia de que pudessem existir, um linguajar completamente diferente do meu e uma energia fortíssima em cada expressão, em cada afirmativa”, escreveu Óscar, resgatando na memória a noite em que conheceu Waly Salomão.

Numa casa no Cosme Velho, bairro tradicional do Rio, Óscar e Luciano criaram, nesse mesmo ano, o ousado projeto gráfico da revista experimental “Navilouca”, hoje uma raridade. Publicada apenas três anos depois, a edição única foi idealizada por Waly e Torquato e reunia os maiores representantes da poesia e da arte de vanguarda de então, como Augusto de Campos, Rogério Duarte, Chacal, Lygia Clark e Décio Pignatari.

À direita, de braços cruzados: Óscar e Luciano na capa da “Navilouca”

Como designer gráfico, Óscar também criou capas de disco icônicas para artistas como Maria Bethânia, Gal Costa, Gilberto Gil, Jorge Mautner, Jards Macalé e outros mais. Esses continuam sendo alguns dos seus trabalhos mais populares, e vários deles foram produzidos em parceria com Luciano.

A tipografia criada por Óscar para o disco “Uns” (1983) de Caetano Veloso, por exemplo, é usada até hoje como marca da empresa do cantor e compositor, a Uns Produções e Filmes. “É uma obra prima de design-invenção”, afirmou Figueiredo, em entrevista ao #culturalab.

O conhecimento que Óscar tinha da retícula — técnica de decomposição da imagem em pontos minúsculos, usada nos quadrinhos e na pop art — sempre foi muito útil nesses processos criativos. “Meus layouts eram perfeitos… Antigamente não tinha computador, eu fazia tudo à mão, eu levava 15 dias para fazer um layout trabalhando de manhã, de tarde e de noite. Eu fazia aquarelas, eu reproduzia cada fotografia colorida, aquarelada e no tamanho certo. Quando eu entregava o protótipo da capa era como se fosse a capa de disco feita à mão”, contava.

Em 2017, saí daquela conversa com Óscar com a promessa de um novo encontro para falarmos só dessa produção destinada à indústria fonográfica. Entre idas e vindas, o encontro acabou não acontecendo, mas fica aqui o registro de uma história que inspira curiosidade e admiração. É uma espécie de homenagem.

Em julho de 1969, depois de serem “convidados” pela ditadura a se retirar do Brasil e partir para o exílio em Londres, Caetano Veloso e Gilberto Gil realizaram seus derradeiros shows em Salvador, no Teatro Castro Alves, sob clima de tensão e melancolia.

As apresentações, que tinham no repertório músicas como “Alegria, Alegria” e “Aquele abraço”, foram captadas precariamente em um gravador de quatro canais por um membro da equipe. O registro, porém, só seria lançado em fevereiro de 1972, quando o jornalista Nelson Motta convenceu a gravadora Polygram/Philips a apostar no material, de inegável valor histórico e cultural.

Caetano e Gil momentos antes de embarcar para o exílio, em foto de Artur Ikissima

Assim nasceu o LP “Barra 69”, que amargou um fracasso nas vendas. Assistente de produção do projeto, Paulinho Lima comentou que os músicos, incluindo Caetano, detestaram o resultado que chegou às lojas — uma gravação de qualidade inferior, cheia de ruídos. “[Ele] estava certo. Esse LP só serve como documento. A melhor coisa é a parte gráfica”, admitiu o produtor.

A tarefa de criar o projeto gráfico que “salvou” o disco coube à dupla Óscar Ramos e Luciano Figueiredo, ainda em 1971. “Foi uma oportunidade e tanto para nós, que tivemos plena liberdade para criar por parte da gravadora. Acredito que tanto naquela época e mesmo agora foi um projeto graficamente inovador”, lembra Luciano.

A capa traz o título “Barra 69” em verde sobre um fundo vermelho vivo, mas é no encarte que se encontra a maior inventividade da proposta dos artistas: um jogo visual entre as fotos de Artur Ikissima e tiras móveis de papel com frases retiradas de músicas e de um texto assinados por Caetano — “Viva a rapaziada”, “Tanto faz no Sul como no Norte” e “Tela e palco”. Transformada em objeto de interesse artístico, a capa funciona ao mesmo tempo como obra autônoma e aberta à ação de quem a manipula, além de ser extensão poética do próprio conteúdo do disco. Uma solução gráfica e tanto.

Segundo Luciano, o trabalho dos dois à época não se alinhava a uma corrente artística específica, embora a capa de “Barra 69” possa remeter à poesia concreta, que também trata a palavra em sua plasticidade. “Estávamos atentos a tudo, porém, é certo que as vanguardas brasileiras nos influenciavam fortemente. Queríamos com nosso trabalho participar das mudanças artísticas da época”, explica Figueiredo.

A colaboração entre Óscar e ele voltaria a se repetir pouco tempo depois, durante a criação do projeto gráfico para o LP duplo “Fa-Tal: Gal a todo vapor” (1971), registro ao vivo do emblemático show de Gal Costa. Durante os anos 60 e 70, as capas dos discos da cantora, alçada a musa do pós-tropicalismo e da geração do desbunde, foram espaço privilegiado para o experimentalismo, a exemplo de “Gal” (1969), com arte psicodélica do baiano Dicinho, e “Legal” (1970), que teve concepção de Hélio Oiticica. Mas foi “Fa-Tal” e sua estética provocadora que acabaram se tornando referência cult.

Antes de a gravadora decidir lançar o LP, Óscar e Luciano já haviam trabalhado juntos na ambientação do show “Gal a todo vapor”, que estreara em outubro de 1971, no Teatro Tereza Rachel, em Copacabana, sob direção artística de Waly. A historiadora da arte Aïcha Barat, que em sua tese de doutorado estudou a relação entre música e cultura visual a partir das capas de disco, resgatou detalhes da cenografia do espetáculo, que incluía músicas como “Sua estupidez”, “Vapor barato”, “Dê um rolê” e “Como 2 e 2”:

“No palco, viam-se duas grandes faixas-poemas de Waly com as palavras-objeto — Violeto e Fa-Tal –, que mostravam a palavra escrita em toda sua potência e força. Violeto remetia ao roxo, às suas conotações de morte e à palavra violento. Fa-tal, quando fragmentada, cria um paralelismo e rima de Gal com Tal. Ambas foram retomadas na capa do disco e apareceram com outros dizeres escolhidos pelo próprio Waly. Eles compunham uma espécie de foto-poemanovela criada por Waly, por Ramos e por Figueiredo.”

Luciano conta que a intenção deles era fazer da capa do LP uma extensão do espírito do show, que arrastou multidões ao Tereza Rachel em suas duas temporadas. “Valorizamos a presença da palavra o mais que possível. Waly contribuiu enormemente criando novas palavras, de forma que toda a capa era uma mistura de imagens e palavras. Foi um projeto radicalmente experimental”, lembra Luciano.

Quase 50 anos depois, “Fa-Tal” segue como um dos discos mais importantes da música brasileira segundo a crítica. Não à toa, a edição dupla em vinil é objeto de desejo entre os colecionadores e chega a valer R$ 400 na internet.

O argumento central da tese de Aïcha Barat é que as capas de disco contribuem para a construção de um sentido musical, ampliando a experiência sensorial do ouvinte. Ou seja, em algum momento o disco deixou de ser um produto destinado apenas à audição, podendo também, por meio da sua capa ou encarte, ser apreciado como criação visual ou até mesmo ser… manipulado. É o caso do famoso discobjeto “Transa” (1972), de Caetano Veloso, que se desdobra num poliedro triangular.

“Os anos 1950 foram essenciais para firmar a capa como elemento primordial para o disco. Foi também a partir dos anos 1950 que artistas plásticos e fotógrafos penetraram no mercado das gravadoras, vendendo seus talentos e experimentando concepções visuais inovadoras em capas. Ou seja: a criatividade de alguns capistas abriu novos caminhos e permitiu explorar novas concepções para as artes de LP”, aponta a pesquisadora.

Para Jorge Caê Rodrigues, autor do livro “Anos fatais: design, música e tropicalismo”, foi em meados da década de 1960 que as capas assumiram seu papel de objeto expressivo, abandonando o status de meros envelopes ou embalagens. Uma vez aberto o caminho para a sua reinvenção, esses trabalhos também passaram a registrar graficamente as questões comportamentais e estéticas do momento.

“Além de divulgar artistas e proteger o vinil, [as capas] vão servir de suporte para experiências artísticas, projetos audaciosos do design e, através destes, apontar, espelhar, retratar todo o imaginário de uma época que marcou a sociedade”, destacou Caê Rodrigues.

Na avaliação dele, artistas como Adriana Calcanhotto, Arnaldo Antunes, Marisa Monte e alguns nomes do rock dos anos 80 herdaram, de certa forma, o interesse pelas inovações gráficas das décadas anteriores. “Atualmente, eu acho que o grupo de artistas que tem em comum a transgeneridade e/ou diversidade sexual (Linn da Quebrada, As Bahias e a Cozinha Mineira, Jaloo, Liniker e outros) é o que tem também ousado nos trabalhos gráficos”.

Capa do álbum “#1”, do cantor paraense Jaloo

Para Luciano Figueiredo, os artistas gráficos da sua época procuraram transpor para as capas dos discos, sobretudo, a busca por um novo tipo de informação visual que também fizesse jus às evoluções pelas quais a música brasileira passava. “Havia sim a necessidade de uma visualidade que acompanhasse o espírito da época, das tantas mudanças necessárias à cultura do Brasil e do mundo”, disse.

“Para nós, artistas gráficos e artistas plásticos, a capa de disco, os cartazes e capas de livros eram um campo novo de expressão, e o Óscar e eu soubemos bem aproveitar para realizar tantos projetos. Éramos muito bem recebidos pelas gravadoras, que aceitavam propostas muitas vezes caras e ousadas para o mercado daquela época”.

O alcance extraordinário dos LPs, produzidos e vendidos em escala industrial, era outro fator a atrair o interesse de artistas como Óscar Ramos nesse segmento. “O fundamental na capa de disco era a gente conseguir colocar a nossa criatividade na coisa mais popular, mais manuseada, mais vista nas lojas, nas vitrines”, afirmou o amazonense. “Todo mundo comprava disco. Era a expansão do nosso próprio talento, ou seja, era procurar de que maneira colocar o nosso talento no meio daqueles anos horrorosos”.

Mas, de acordo com ele, também havia quem não valorizasse esse tipo de trabalho:

“As pessoas recusavam o establishment que a ditadura militar impôs, mas não se recusavam a trabalhar, não abriam mão da necessidade de produzir. Então o que aconteceu é que nós passamos a buscar áreas de atuação. Era uma coisa que naquela época era muito difícil de explicar pras pessoas, por exemplo, amigos meus que eram alienados ou que eram até de direita e dizendo ‘você agora fazendo capa de disco’, era como se fosse uma coisa menor, que um pintor estivesse de repente fazendo capa de disco. E era difícil de explicar [que] ‘não tô fazendo capa de disco, eu faço a capa de disco procurando um campo de ação no qual eu possa exercer meu talento, os meus pontos de vista até políticos, através desse meio’”.

A parceria entre Óscar e Luciano Figueiredo perdurou ao longo dos anos 70 e 80, quando eles produziram capas para Jards Macalé (“Jards Macalé”), Fafá de Belém (“Banho de cheiro”) e Gilberto Gil (“Luar”), além de terem assinado alguns layouts individualmente. Também é de autoria da dupla a capa do “Álibi” (1978) de Maria Bethânia, que fez história ao se tornar o primeiro disco de uma cantora brasileira com mais de 1 milhão de cópias vendidas.

Os dois voltaram a inovar no LP “Respire fundo” (1978), de Walter Franco, compositor com trânsito entre a música e a poesia de vanguarda. Na contracapa, o título do disco foi impresso com letras esticadas, criando uma ilusão de ótica que só fica legível quando vista em posição inclinada.

Outro projeto significativo desse período foi a capa do disco “Cores, nomes” (1982), em que Caetano Veloso gravou “Queixa”, “Trem das cores”, “Cavaleiro de Jorge”, entre outras faixas. Nesse projeto, Óscar e Luciano tiraram o máximo proveito dos recursos gráficos que podiam propor à gravadora.

Retomando mais uma vez a ideia do poema visual e da interação com o objeto, essa capa traz uma combinação de encaixes e sobreposições entre cores, palavras e tipografias. O efeito mais poético foi reservado à contracapa, que serve de moldura a uma foto de Caetano e seu pai, José Teles Velloso: ao manipular o encarte, as duas figuras se aproximam num beijo/abraço, uma referência tanto à faixa “Ele me deu um beijo na boca” quanto ao sentimento que ligava pai e filho.

Linha do tempo — Óscar Ramos e as capas de disco

1971

“Fa-Tal: Gal a todo vapor” — Gal Costa

1972

“Para iluminar a cidade” — Jorge Mautner

“Jards Macalé” — Jards Macalé

“Barra 69” — Caetano Veloso e Gilberto Gil

1973

“Araçá azul” — Caetano Veloso

1978

“A peleja do diabo com o dono do céu” — Zé Ramalho

“Álibi” — Maria Bethânia

“Banho de cheiro” — Fafá de Belém

“Respire fundo” — Walter Franco

1980

“Talismã” — Maria Bethânia

1981

“Alteza” — Maria Bethânia

“Luar” — Gilberto Gil

1982

“Cores, nomes” — Caetano Veloso

“Desta vida, desta arte” — Marina Lima*

1983

“Baby Gal” — Gal Costa*

“Uns” — Caetano Veloso*

1984

“Egungun” — trilha sonora do filme homônimo

1990

“Gal Plural” — Gal Costa*

1991

“Zona de fronteira” — João Bosco

* Autoria apenas de Óscar Ramos; as demais são em coautoria com Luciano Figueiredo

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Rosiel Mendonça
culturalab

Jornalista, pesquisador e produtor cultural | Manaus’AM