Arte de Manauara Clandestina lança olhar sobre a vida travesti no Brasil

Rosiel Mendonça
culturalab

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Manauara Clandestina é uma jovem artista cujo trabalho dialoga com novas perspectivas da vida travesti e questiona as suas condições de existência, imprimindo laços de afetividade a partir de um olhar íntimo e sensível.

Em 2020, ela foi selecionada pelo Instituto Inclusartiz para uma residência artística em Londres, fruto de parceria com a Delfina Foundation, onde desenvolveu o projeto “Por enquanto 35”. Recentemente, esse trabalho pôde ser visto, junto com “Memórias de retorno”, na exposição “Composições para tempos insurgentes”, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

Na entrevista a seguir, ela conta como criação e experiência de vida se misturam em sua (ascendente) trajetória nas artes visuais, na performance e também na moda.

Quem é Manauara Clandestina?

A Manauara Clandestina é uma travesti preta que nasceu na Alvorada, mas que foi criada em Nhamundá e outros interiores, como Cutipanã, em Presidente Figueiredo também, por conta dos meus pais serem pastores evangélicos missionários. Eu fui ensinada a ser uma artista desde pequena, tanto cantando quanto atuando. Hoje eu desenvolvo um trabalho não só visual mas também de moda.

Como define a sua linguagem e pesquisa artística? Com que questões o seu trabalho dialoga?

Eu não consigo definir a linguagem que eu tenho. A linguagem que eu desenvolvo começou de uma maneira muito marginal e dentro de uma cidade onde eu precisava me alimentar, pagar meu aluguel, e em algum momento eu tive a oportunidade de começar a me apresentar em performances na noite, depois disso muitas coisas aconteceram, como eu começar a ser modelo, depois disso comecei a dirigir arte dos desfiles também. De uma maneira mais direta, trabalho com audiovisual, moda e faço performance.

O meu trabalho tem dialogado bastante com a questão da imigração, tanto que em Londres e em Barcelona eu iniciei pela primeira vez um upcycling sobre essa questão e criei minha coleção de moda em relação a isso. Meu trabalho também atravessa o lance do consumo, de um consumo mais consciente.

Conte mais sobre a sua residência em Londres em 2020 e o desenvolvimento do projeto “Por enquanto 35”. O que essa experiência representou para você?

Por enquanto 35 surgiu de uma maneira espontânea, não comecei os retratos pensando num resultado de um projeto. O trabalho é um questionamento do nosso tempo de existência aqui no Brasil, da nossa estimativa de vida, o que é muito triste e muito sério, que é o máximo de 35 anos para uma travesti. A residência foi muito importante pra mim, o edital era voltado pra artistas do Norte do Brasil, e me senti muito honrada porque entre tantos artistas incríveis que enviaram os seus projetos o meu selecionado pra representar o Norte, então isso acabou ajudando muito na minha autoestima também.

A verdade é que eu fui pra lá pra desenvolver o Por enquanto 35, mas além disso ir pra Londres me deu uma energia forte pra acabar fazendo uma outra pesquisa, que foi o que aconteceu em Barcelona, eu fiz o primeiro protótipo, a primeira roupa em Londres, que era uma pesquisa de algo que já vinha chamando minha atenção, que são as roupas de trabalhadores da construção civil, e pensar nessas roupas também como símbolo de imigração, porque a maioria dos que trabalham nessa área são imigrantes, assim como na construção de São Paulo, e através disso fui analisando e questionando as coisas nessa construção da estética da roupa, através do upcycling, e acabei indo pra Barcelona pra desenvolver esse projeto que se chama Migranta. Migranta é um projeto que nasce dentro do ateliê com artistas imigrantes que se juntaram a mim lá em Barcelona, inclusive está rolando um filme, a gente está na edição pra apresentar em algum momento.

Por enquanto 35 (2019–2021): série de 73 retratos em fotografia instantânea
Memória de retorno (2021): roupas costuradas e coladas

A exposição “Composições para tempos insurgentes”, no MAM do Rio, ficou em cartaz durante sete meses e trouxe duas obras suas. Foi significativa a presença de uma artista amazonense, negra e travesti nessa mostra?

Composição para tempos insurgentes foi muito precioso pra mim porque foi quando voltei da Europa e fiquei trabalhando no Rio de Janeiro por dois meses terminando a minha residência e Aldones Nino, que é um curador com quem trabalho diretamente, me apresentou à Beatriz Lemos, curadora [adjunta] do MAM, e quando a gente conversou ela falou que tinha plano de fazer uma exposição no MAM e que meu trabalho tinha a ver e que talvez nossa conversa não acabasse ali, e realmente não acabou, continuamos a comunicação e surgiu o convite. Eu fico feliz porque a arte e o artista amazonense passam por um processo de apagamento e regionalismo, então o artista nacional dentro dessa nomenclatura normalmente é um cara sudestino e o artista amazonense, do Norte, é um artista regional, então sempre tento romper com esses limites que nos impõem por conta do racismo, da transfobia e desse separatismo, porque eles lutam pra se manter entre eles, se beneficiando entre si.

Tem dialogado com outros/as artistas da cena manauara? Tem em vista algum projeto aqui?

Tenho contato com alguns artistas do Amazonas mas que são meus amigos na verdade, como a Keila Serruya, a Scarlett da cor do barro, a Uyra Sodoma, a Rafa Kennedy, Rosa Cascavel, Auá Mendes, são pessoas que são do meu reduto de afetividade, mas não sou uma grande conhecedora das pessoas em geral que estão fazendo arte em Manaus, não vou ser hipócrita de falar isso, porque já estou há muito tempo fora, já estou há quase uma década morando no Sudeste em meio a essas idas e vindas de outros territórios, então não estou tão ligada o quanto gostaria de estar, mas estou aberta a convites que me levem a desenvolver meu trabalho no Amazonas.

foto: fort magazine

Você também tem colaborado com a estilista Vicenta Perrotta, pode falar mais sobre essa parceria? Como tem sido sua vivência no segmento da moda? É algo que pretende continuar explorando?

Tenho uma relação de muitos anos com a Vicenta, eu comecei como modelo dela e depois comecei a desenvolver um trabalho muito precioso com ela, trabalhar com upcycling, com pessoas trans dentro da moda, repensar o consumo e essa moda, questionar a branquitude e a forma que a moda nos é colocada, e pra mim foi um terreno muito fértil pra trabalhar porque fui desenvolvendo trabalhos que, apesar de saber que eu tinha uma força pra estar fazendo, eu não tinha espaço, então descobri que sou uma boa diretora criativa através desse trabalho com a Vicenta. Pretendo continuar, acho que a moda é uma das plataformas que mais curto de trabalhar desde pequena e que tenho muita força por gostar de fazer isso.

Entrevista publicada no informativo NaRede, da Faculdade de Artes da Universidade Federal do Amazonas (Faartes/Ufam), em junho de 2022

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Rosiel Mendonça
culturalab

Jornalista, pesquisador e produtor cultural | Manaus’AM