Centro cultural preserva processo criativo de Óscar Ramos como designer de capas da MPB

Manuscritos deixados pelo artista visual amazonense revelam curiosidades da produção gráfica de discos de Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia

Rosiel Mendonça
culturalab
7 min readSep 24, 2021

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Centro Cultural Óscar Ramos ocupa casas mais antigas de Manaus, no Amazonas (Altemar Alcântara/Semcom)

Com seu bem conservado calçamento em pedra jacaré, a rua Bernardo Ramos, no Centro Histórico de Manaus, abriga as casas 69 e 77, consideradas as mais antigas da capital amazonense e originalmente construídas de pau a pique. Depois de um longo processo de recuperação e restauro, as duas residências foram reabertas em outubro de 2019 como Centro Cultural Óscar Ramos, para receber o acervo do artista visual, falecido naquele ano, além das obras que ele havia reunido para uma futura Pinacoteca Municipal. À frente dessa empreitada esteve José (Zezinho) Cardoso, amigo de longa data de Óscar e então vice-presidente da Fundação Municipal de Cultura, Turismo e Eventos (Manauscult), órgão responsável pelo espaço.

Na casa 69, hoje pintada em tom de argila, está a exposição permanente de quadros, livros, croquis, DVDs, mobílias, fotografias e outros objetos pessoais do artista. Fechado durante mais de um ano em decorrência da pandemia, o lugar voltou a receber o público no início de agosto deste ano, com agendamento prévio. Quem faz as honras como guia dos visitantes que chegam é a artista visual Monik Ventillari, atual gestora do centro cultural, além de ex-aluna e assistente de Óscar.

Resolvi voltar lá depois de todos esses meses para rever uma das peças que considero mais especiais do acervo: a mesa de trabalho do artista, nascido em Itacoatiara, em 1938. Por baixo do tampo de vidro, à vista de todos, estão manuscritos, anotações, rascunhos e projetos originais das famosas capas de LP que ele produziu, entre as décadas de 1970 e 1990, para artistas como Gal Costa, Maria Bethânia, Gilberto Gil e Caetano Veloso. Essa vertente do trabalho dele, em boa parte desenvolvido junto com o companheiro Luciano Figueiredo, é tema de outro texto aqui no Medium.

Na mesa de trabalho, nosso olhar é logo atraído para os ensaios tipográficos produzidos para a capa do disco “Uns” (1983), de Caetano, que deu origem à marca usada até hoje pela produtora do cantor, a Uns Produções e Filmes. Em texto escrito de próprio punho, exposto ao lado desses esboços, Óscar descreve a ideia inicial de espacializar a palavra UNS e, nessa forma de escrita, encontrar o “próprio plural” a partir dessas três letras.

“Comecei por trabalhar o U e o N apenas, pois a ideia do S (o plural) teria que APARECER por consequência. Este tipo de radicalidade sempre me tenta, e como eu sempre tenho fé na inteligência do público, nem passou por minha cabeça que pudesse ser considerado ilegível, como diriam os executivos. No entanto, eu buscava uma perfeita união entre o título e o nome de Caetano, o que me fazia partir para a busca de uma tipologia e desta maneira expandir para ‘normalizar’ o tipo de letra”.

Na capa do LP, a tipografia foi impressa em rosa choque por cima de uma foto em preto e branco de Caetano com os irmãos Roberto e Rodrigo, datada dos anos 1950. Mais à frente no manuscrito, Óscar surpreende com uma revelação: “Menescal, diretor presidente da Polygram, detestou o projeto, que Caetano declarou ser sua capa favorita”.

Foto de capa: Carlos Alexandre Salles Moreira; foto da contracapa: Arlete Kotchounian

Em outra anotação sobre a mesa, desta vez a respeito da arte de capa do disco “Talismã”, que Bethânia lançou em 1980, Óscar registrou: “[É] Como se a VOZ DELA fosse o próprio Talismã. Eu pensava em energia, em força, em poder. Que a palavra se formasse como na montagem de um CHIP. Que essa construção fosse a própria palavra. Esta conquista é uma das minhas favoritas. A foto da Maria Alvarez de Lima foi fundamental”. O esboço que vemos é exatamente isso, um labirinto de linhas retas e algumas poucas curvas, emulando um circuito eletrônico.

Entre ideias de chips e circuitos, Óscar também refletia sobre a relação das novas tecnologias com o fazer artístico, relembrando a sua própria formação em desenho técnico durante o período em que serviu ao Exército. Em outro texto, ele pontua:

“Minha geração é da prancheta, do technígrafo, da paralela, do compasso, jogo de esquadros e da escala. […] Hoje eu fico pasmo com as facilidades do computador. Está tudo lá, um menu que é mais um self-service: a fábrica do gueri-gueri, do ornamento de bom gosto, da bossa e tudo de graça e tudo vazio e bonitinho. […] O computador e suas facilidades não podem ser emasculadores do pensamento. Ao contrário, suas possibilidades deveriam estar sendo usadas para o enriquecimento dos processos de criação. Não é fonte de criatividade, e sim o veículo de materialização da criatividade. É o homem que o comanda e nenhum menu jamais substituirá ideias criativas”.

Produzido por Léo Gandelman, com concepção e repertório escolhido por Waly Salomão, “Plural” (1990) é o vigésimo segundo álbum de Gal Costa e trouxe, entre outras faixas, o sucesso “Cabelo”, parceria entre Jorge Ben Jor e Arnaldo Antunes. O disco ecoa bossa nova, mas também se rende à “música afro-baiana contemporânea”, representada por músicas dos blocos Muzenza e Olodum, como definiu o crítico Luis Antônio Giron, da Folha de S. Paulo, em resenha da época.

A capa e o encarte de “Plural” são mais uma obra legada por Óscar Ramos à história do design discográfico brasileiro. O artista, que já havia colaborado com a cantora no icônico “Fa-Tal” (1971), junto com Luciano Figueiredo, também assinou a capa de “Baby Gal”, em 1983.

O relato em detalhes sobre a concepção de “Plural” é mais uma das raridades expostas no Centro Cultural Óscar Ramos. “Foi possivelmente, até agora, o trabalho que mais exigiu de mim e me envolveu mais do que comumente. […] Recebi o recado de Gal por meio de Waly e fui encontrá-la no estúdio de gravação: longas conversas sobre o disco, sobre suas intenções, sobre aquele momento de sua vida. […] Ela estava linda, super sensual, super tranquila. Seu cabelo era tão perfumado e sedoso, eu ficava horas olhando para ela Heddy Lamar [Hedy Lamarr, atriz]-Dalila-bahiana-pensando no que fazer”, descreve o artista, no manuscrito.

Foto de divulgação do disco “Plural” (autoria desconhecida): Gal Costa como estrela de cinema

Óscar conta que foi buscar inspiração em obras do amigo Hélio Oiticica, falecido em 1980, mais especificamente na capa que ele criara para o disco “Legal” (1970), também de Gal Costa, e na série “Metaesquemas”, composta por mais de 400 obras abstratas a partir de formas geométricas e espaços.

“Havia algum tempo já, depois de tanto meditar sobre o metaesquema, que me familiarizara com a projeção ortogonal e espelhada do mesmo. E o que fiz foi exatamente isso: espelhar as palavras GAL e PLURAL até conseguir criar um ‘modo’ metaesquema”.

Dois exemplares da série Metaesquemas, de Hélio Oiticica: “Lá e cá 10” (1958) e “Metaesquema” (1957) | Fonte: mam.rio

Outra inspiração foi a estética cinematográfica do livro “The Image Makers”, pois Óscar queria que Gal posasse para o fotógrafo Milton Montenegro com a aura de uma estrela de cinema: “Desenhei para ele a foto como a queria, um plural de imagens da cantora e a geringonça de espelhos que triplicaria a imagem”.

Gal posou para Milton Montenegro apoiada na “geringonça de espelhos” idealizada por Óscar

Já o encarte do disco, que traz o texto “Rascunho de diva”, com escrita deliciosamente delirante de Waly Salomão, Óscar diagramou como se as frases fossem o cabelo de Gal. Tanto cuidado e dedicação, no entanto, tiveram um desfecho desastroso, nas palavras do artista.

O encarte: texto de Waly “Sailormoon Forever” e diagramação de Óscar Ramos

A foto de capa em preto e branco feita por Milton Montenegro, que deveria ser impressa com retícula de cor, tal como Óscar idealizara, ganhou um tom sépia nos discos distribuídos às lojas. No texto preservado no centro cultural de Manaus, ele sugere que a mudança acontecera nos bastidores da Warner, furtivamente e sem aviso prévio.

“Tarde demais para que algo pudesse ser feito, mesmo com a bahiana que a Gal rodou com os executivos. Minha revolta perdura até hoje!”, escreveu, contrariado.

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Rosiel Mendonça
culturalab

Jornalista, pesquisador e produtor cultural | Manaus’AM