Espetáculo Cabaré Chinelo estimula a arte de retomada histórica na agenda cultural de 2023
(Alerta pra possíveis gatilhos, sugiro ler ao som de Fênix, de Karen Francis e Rafa Militão, ou Hiato, na versão de Gramophone)
Algumas coisas são fortes demais para serem ditas. Ou pensadas, escutadas, musicadas, ensaiadas. E ainda assim elas existem, pra que a gente possa ser afetado por elas e poder dizer o quanto elas são inesperadamente fortes. Vi uma amiga sair da peça Cabaré Chinelo, da cia. Ateliê 23, sentindo a força desse espetáculo nas palavras e na presença dela. Por algum motivo eu sempre acho que as experiências impactantes e emocionantes que perpassam por nós de forma coletiva vão levar ao choro, seja série, filme, peça de teatro. A verdade é que a gente tem esse grito misturado com choro entalado que não sabe bem se tem um fim, sabe que tem um começo e é sobre isso o espetáculo.
É disponibilizado para o público um material digital te dando a posse de várias informações sobre o período em que se passa a peça, durante o ciclo da borracha — na segunda metade do século XIX, são expostas notícias antigas de jornais amazonenses, a letra das músicas, além de sinopse da obra, resumo profissional do elenco e a história de cada uma de suas personagens, há detalhes científicos nisso, como laudos médicos da época. Neste momento, o teatro se coloca como uma nova realidade que vai te acompanhar nas próximas uma hora e meia levando até o Cabaré Cassina, ali na Zona Portuária de Manaus, região que poucos anos atrás era amplamente conhecida como “Praça das Putas”.
Há algo de libertador em chamar alguém de filho da puta, é possível encher os pulmões e gritar essas palavras quase que num efeito terapêutico. Assistir ao Cabaré Chinelo é sair de casa pra descobrir que tu és filho da puta, e eu juro que digo isso num tom convidativo. A jornada em que atrizes e atores amazonenses te levam é embalada com um jazz que pulsa na dança. Em alguns momentos, dá pra achar que ele dança com a luz e a fumaça, se mistura com os enormes adornos de cabelo e roupa de um figurino de protagonistas que já viveram nesses mesmos lugares onde a gente anda, come, corre e cria nossas histórias.
Ver rostos conhecidos como o da Vivian Oliveira, Ana Oliveira e Allícia Castro no elenco ilustrou que seria uma experiência de identificação, uma espécie de reencontro. Todos sentam e uma voz sem rosto anuncia que o espetáculo vai começar e dá instruções sobre os registros, que são importantes de serem reforçadas aqui, já que há nudez no espetáculo e há amparo jurídico pra que a segurança dos profissionais seja assegurada e punida, caso alguém saia do espetáculo sem entender o primordial sobre a história.
Nunca tinha me perguntado como é a maternidade pra uma prostituta, por sorte, ao lado meu lado tinha uma amiga que é mãe não só de uma, mas de duas garotinhas. Parecia que a gente tinha colocado um cinto de segurança e viajaria pra algum planeta onde iriam abrir um baú cheio de coisas muito fortes e que respingam pra todos os lados, igual àquela força que eu falei no início do texto.
A maternidade e a morte, assim, nessa dualidade, também entram em questão no enredo da peça, onde cada personagem é construída em sua singularidade e diversidade. Tem prostituta da América Latina, do interior do Amazonas, da Europa, todas tinham algo em comum: o produto final de seu trabalho era satisfazer os figurões que tinham grana e poder em Manaus.
É inevitável recordar de algumas unidades de vezes em que sua humanidade, intelecto e sua capacidade de se sentir um ser humano digno foi colocada à prova pra satisfazer quem tem grana e poder. Eu achei que ia chorar, tive raiva.
Se todas nós conhecemos história de alguma matriarca que foi “pega no laço” e isso causa desconforto, conhecer de perto — musicado, encenado e coreografado — os efeitos da virilidade que caracterizou a violência colonial por aqui foi, de fato, um impacto que me fez encarar com a lente da arte essa hierarquia de opressão.
“A puta mais diva que essa cidade já conheceu… É uma pena que o prazer seja todo seu”, desenvolve em cena a personagem Balbina, acompanhada de Maria Não Vou Nisso, Mulata, Laura Barata Branca, Joanna Mata Homem, entre outras integrantes do Cabaré que pertence à Zona Estragada de Manaus, termo que é frequentemente utilizado ao longo da peça.
As interações das atrizes com o público, a maestria de um corpo musical imerso na obra, a profundidade da pesquisa histórica e a urgência da mensagem transmitida pelo elenco fazem do Cabaré Chinelo um dos acontecimentos mais ousados da arte amazonense em 2022.
Quis sair da sessão e apresentar o Cabaré Chinelo pra todo mundo com quem eu me importo, mas também dizer que lá dentro se ria, havia sonhos, belezas pra além das maquiagens e delícias possíveis de sentir sem usar as mãos ou a boca. Inspira a imaginar quantas realidades são possíveis pra mulheres e meninas amazônidas que são historicamente estupradas, traficadas e violentadas nesse território.
A linguagem utilizada pelo jornalismo da época em Manaus e a relevância dele nas relações do Cabaré também chamam atenção. A liberdade feminina como afronta à ordem faz pensar muito sobre a conversa de “ah, antigamente que era bom, podia se falar de tudo…”, se retroceder um pouco mais que aquilo é possível chegar na Idade Média, um período que parece até familiar, quando se enumeram as violações às quais essas mulheres foram submetidas.
Finalizo com um questionamento de uma conta que nunca fecha: “toda mulher que eu conheço já teve a buceta rasgada. E você, homem, já rasgou uma buceta?”. Dia 13 de janeiro de 2023 a peça retorna para novas sessões, na véspera de Manaus completar 2 anos do dia em que parte da população asfixiou, por falta de oxigênio e presença governamental. O espetáculo é realizado sem nenhum incentivo de edital público e, assim, o teatro amazonense respira, mas nessa cena ele também se levanta e aplaude.