O adeus ao Arqueólogo

Até vereador lamentou o fechamento do maior sebo de Manaus

culturalab
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6 min readApr 9, 2017

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Nascido e criado no bairro da Marambaia, em Belém do Pará, Marcelo Araújo chegou a Manaus em 2002 para ajudar o irmão Marcos a administrar o novo negócio da família: a livraria Arqueólogo, que durante 15 anos forneceu à sociedade manauara livros, CDs, revistas, dentre outras raridades de “segunda mão”.

No dia 21 de agosto de 2011, Marcelo criou um evento no Facebook que pegou de surpresa o povo da Barelândia: a livraria-sebo encerraria suas atividades ainda no fim daquele mês. Em contrapartida, os donos fariam uma grande liquidação: tudo da loja com 50% de desconto. 117 pessoas confirmaram presença.

Os fiéis clientes não deixaram de se manifestar na rede social, como bons cidadãos virtuais. Em meio a mensagens lamentando o fim do lugar e histórias pessoais de gente que passou tardes a fio caçando tesouros no Arqueólogo, surgiu uma poesia:

Ao Arqueólogo
por Jorge Bandeira

Sentimento de perda, de algo perdido no achado, de um vestígio encadernado, feito de letras do passado, de algo que se acha repentinamente, uma ausência para a mente, coisas do passado que me completam no presente. Disso tudo uma certeza, escavei minha vida por treze anos, e não foi este fato, de forma alguma, que me fossilizou na mesmice tão banal que vivemos… Continuo escavando e subindo os degraus do Arqueólogo, a cada passo, sinto que meu trajeto fica inconcluso… Mas a vida não aceita esta parada, a vida é este sítio arqueológico que avança sobre nossas almas…

Localizada na avenida Getúlio Vargas, uma das principais e mais movimentadas de Manaus, a livraria Arqueólogo sempre funcionou no prédio de número 766, ao lado do que hoje é o Candida’s Lanches, quase esquina com a Ramos Ferreira. Do outro lado da rua, estão o boêmio Bar 5 Estrelas e a academia Sheik Club. Um ponto bom e de fácil acesso, com ônibus indo e vindo de praticamente todas as partes da cidade.

Giovanna Consentini/Caçadores de Bibliotecas

O que muita gente não sabe é que, antes de surgir em Manaus, o Arqueólogo já era um sebo famosíssimo em Belém. Em 1996, os seus proprietários decidiram montar uma loja em Manaus, e Marcos, o irmão de Marcelo, que já era funcionário da loja de Belém, veio para cá em 97 para ajudar na filial. Tudo funcionou assim até 2002, quando os sócios resolveram dividir o negócio: um ficou com a loja de lá e o outro, com a de cá.

Declarada a independência do Arqueólogo de Manaus, Marcos se tornou sócio do empreendimento junto com Luiz Fernando, um dos que fundaram o sebo ainda em Belém. No mesmo ano, Marcelo desembarcou no Porto de Lenha. “Vim diretamente pra ajudar aqui na loja de Manaus. É onde estava até hoje junto com o Marcos e nossa irmã”.

A livraria só passou a ser efetivamente da família Araújo em 2003, com o falecimento do sócio Luiz Fernando. “Todos os antigos clientes lembram dele, o cara que começou tudo. Ser humano dotado de muita inteligência… Todos tínhamos um respeito absurdo por ele”, afirmou Marcelo.

Antes da liquidação de agosto de 2011, o Arqueólogo contava com um acervo de 16 mil livros, 800 CDs, 400 DVDs e cerca de 1.500 revistas em quadrinho. “Acredite, já tivemos muito mais”, garantia o dono. Segundo ele, o acervo foi se formando à base de compras diretas e trocas.

Em muitos casos, comprávamos vários exemplares de uma mesma pessoa, bibliotecas inteiras, acervos de colecionadores, aí por diante”.

Dentre as raridades que passaram por lá estão as primeiras edições em português das HQs do Super-Homem, Batman e Tex, além de obras do século 19 editadas em Portugal e raridades de autores como Samuel Benchimol e Machado de Assis. “Algumas coisas bem raras sempre acabavam na mão de colecionadores que frequentavam a loja”, lembra Marcelo.

Apostando na oferta de serviços diferenciados no mercado de Manaus, que chegou a ter outros três sebos funcionando simultaneamente na região do Centro, o Arqueólogo vendeu durante um longo tempo cartas de RPG, produtos que já eram comercializados na loja de Belém.

Os proprietários também realizavam aos sábados torneios de Magic, famoso card game, o que ajudava a atrair e diversificar a clientela. “O Luiz e o Marcos é que eram os juízes dos torneios. O Luiz jogava RPG e Magic. Eu e o Marcos jogávamos Magic somente, ma no final eu também acabei dando uma de juiz”.

Os torneios eram realizados inicialmente na Bob’s do Centro, depois foram para o Amazonas Shopping, e de 2003 a 2007 foram todos realizados na loja da Getúlio Vargas. Por volta de 2007, o Arqueólogo deixou de comercializar as cartas e, consequentemente, a temporada dos torneios foi encerrada.

Segundo Marcelo, uma das causas foi a alta do dólar na época, uma vez que os produtos eram importados. “Começamos a acumular dívidas e chegou uma hora que não deu mais para continuar. Além disso, estávamos muito cansados. Trabalhar a semana toda e ainda ficar na loja no sábado até as 22h era demais. Mas foram tempos extremamente prazerosos, afinal éramos jogadores também”.

Manaus é uma cidade extremamente industrial e as pessoas aqui ainda não têm o costume de visitar espaços culturais ou algo que alimente a alma. Participo de outras atividades relacionadas à cultura e sei que antes era bem pior, mas temos muito que evoluir ainda”. Nesses termos é que Marcelo começou a contar o porquê do fechamento do Arqueólogo. Dívidas acumuladas ao longo dos últimos anos e queda no fluxo de vendas, sem contar o fato de o prédio da loja ser alugado, contribuíram para que o sebo fechasse as portas.

Giovanna Consentini/Caçadores de Bibliotecas

Marcelo também temia a possibilidade de que uma loja como o Arqueólogo não voltasse a aparecer na cidade: “Um sebo arrumado e com climatização não é pra qualquer estado não. Todos que vinham de outras regiões elogiavam a gente”.

Mas o antigo proprietário dizia encerrar as atividades com a felicidade do dever cumprido. “Ajudamos as pessoas a conseguirem um material que gostam por preços totalmente acessíveis. Contribuímos também para a formação de várias pessoas, mas tudo na vida tem começo, meio e fim”.

Do tempo em que ficou atrás do balcão do Arqueólogo, ele levava um punhado de boas lembranças e experiências.

Muitos clientes se tornaram nossos amigos durante os anos. Tive conversas memoráveis e apreciei discussões dos mais diversos níveis e assuntos. Tudo isso me ajudou a tornar-me o que sou hoje, não tenho a reclamar de nada”.

Sobre os comentários tristonhos dos clientes no Facebook, Marcelo admitiu ter se surpreendido. “O engraçado de tudo isso é que nós trabalhamos durante todo esse tempo com o dia a dia nos cegando pelos problemas e pela rotina maluca, e quando a gente vê toda essa comoção, não só na internet, mas ao vivo, todos indo lá nos cumprimentar e lamentar o fechamento, isso no final é que torna tudo que fizemos extremamente gratificante”.

Nesse meio tempo, um vereador ainda achou por bem manifestar seu pesar: os donos receberam uma carta de um membro da Câmara Municipal parabenizando o Arqueólogo pelo trabalho feito e dizendo que o cantinho da livraria na Getúlio Vargas ficaria pra sempre na memória dos manauaras.

Que assim seja.

Publicado no ZineOriente #1, em setembro de 2011

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Jornalista, pesquisador e produtor cultural | Manaus’AM