“Tropicália” na mostra retrospectiva de Hélio Oiticica no Whitney Museum of American Art (NY), em 2017

Os ‘poemobjetos’ da Tropicália de Hélio Oiticica

Rosiel Mendonça
culturalab
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4 min readDec 8, 2023

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Em abril de 1967, o Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro era ocupado pela exposição “Nova Objetividade Brasileira”, com trabalhos de expoentes da vanguarda artística nacional, como Lygia Clark, Ivan Serpa, Rubens Gerchman e Ferreira Gullar. Mas foi Hélio Oiticica quem apresentou a obra mais emblemática daquela mostra: a instalação “Tropicália”, que pouco depois batizaria o movimento contracultural liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil.

“O ambiente criado era obviamente tropical, como num fundo de chácara e, o mais importante, havia a sensação de que se estaria de novo pisando na terra. Esta sensação sentira eu anteriormente ao caminhar pelos morros, pela favela, e mesmo o percurso de entrar, sair, dobrar pelas ‘quebradas’ de tropicália, lembra muito as caminhadas pelo morro”, definiu o artista.

Em meio às plantas nativas que faziam parte da ambientação de “Tropicália”, repousavam alguns poemas curtos, escritos à mão, em suportes como madeira, cerâmica, tijolos e telhas. Quem visse, poderia até supor que também se tratava de criação de Oiticica, mas a autora dos “poemobjetos” era a paraense Roberta Camila Salgado, cunhada do artista à época.

foto: Reprodução

Cinquenta anos depois, a escritora lança em Manaus um livro com a reunião desses e de outros poemas produzidos entre 1965 e 2015. A publicação é dividida em duas partes: uma é dedicada aos nove poemas incorporados à “Tropicália”, com suas respectivas traduções para o inglês; a outra se chama “Verdes correntes”, uma coletânea de poemas refletindo a vivência amazônica da autora, que nasceu em Belém e morou em Manaus.

“Eu me criei no meio da natureza. Meu avô era médico e o hobby dele era plantar. Tínhamos um sítio à beira do rio Guamá, onde eu aprendi a nadar. Então toda essa influência da Amazônia aparece na minha poesia”, conta Roberta.

Acervo pessoal (fonte: O Globo)

Sobre a participação em “Tropicália”, a escritora diz que Hélio Oiticica sempre admirou a forma como ela apresentava seus poemas. “Poemobjeto nada mais é que o poema em cima do objeto, que pode ser qualquer coisa. Era um projeto que eu pretendia desenvolver nas paradas de ônibus, restaurantes, aeroportos, mas que acabou não dando certo. O Hélio viu aquilo e disse que fazia questão de ter meus poemas numa obra que ele estava desenvolvendo”, lembra.

“O poemobjeto, que é diferente do poema-objeto neoconcretista, é a tentativa de uma poesia sintética, que chegue ao âmago da ideia sem ser supérfluo. Chamo de ‘haicais caboclos’. O que sugiro é que a poesia se faça presente no dia a dia das pessoas, das cidades, em qualquer lugar dentro ou fora de casa, como acontece quando é musicada”.

“Tropicália” é composta pelos penetráveis “PN 2 — A pureza é um mito” e “PN 3 — Imagético”; ao centro, um poemobjeto de Roberta Camila Salgado (foto: MAM/RJ)

Ambiente sensorial

O próprio Oiticica se encarregou de selecionar quais poemobjetos iria usar no futuro trabalho. Alguns versavam sobre a natureza e outros sobre a situação do Brasil pós-golpe de 64, com referências cifradas ao verde-oliva e ao preto do uniforme dos militares. De certa maneira, a ideia de poemas escritos em suportes encontrados no dia a dia dialogava com a proposta de “instalação ambiental” do artista, que naquele momento se interessava por experiências artísticas mais sensoriais.

“Desde o início sabíamos que ‘Tropicália’ seria importante, e ela acabou se tornando mesmo um marco da brasilidade. A obra tem plantas, aves, cheiro de patichouli, priprioca, chitão… O colorido da ‘Tropicália’ é puro Brasil. Era o que a gente tinha que fazer, porque estávamos sendo invadidos pelos EUA, culturalmente e politicamente, como viemos a descobrir depois”, afirma Roberta.

Desse mesmo período, ela ainda guarda poemas que permanecem inéditos. “Tenho poemobjetos para o Che Guevara, Marighella, Zuzu Angel e o filho Stuart. Esses eu nunca publiquei nem lancei, porque sabia que se fizesse isso naquela época a guerra comigo ia aumentar. Mas pretendo lançá-los no Rio de Janeiro no ano que vem. Agora não sei como vai ser a reação, mas vou tentar”.

Publicado originalmente no Jornal A Crítica, em novembro de 2017, quando a autora lançou o livro em Manaus, no Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA)

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Rosiel Mendonça
culturalab

Jornalista, pesquisador e produtor cultural | Manaus’AM