Ativismo é verbo de ação: posicionamento e propósito além do oportunismo
É preciso ouvir, refletir e agir.
Esse artigo é baseado no episódio nove do podcast CulturalCast. Para receber a transcrição completa, com demais materiais informativos, clique aqui.
Existe uma tensão entre consumo, propósito e posicionamento nos tempos atuais. Em meio ao caos de uma pandemia, vimos as pessoas começarem a se manifestar, e as redes sociais foram tomadas por conteúdos declarando repúdio à violência e ao racismo e apoio à comunidade negra.
Os últimos meses - ou melhor, as últimas semanas - se tornaram palco para esse movimento, em que os consumidores estão usando suas vozes para cobrar mudanças reais por parte das marcas que consomem.
Afinal, consumir também é representativo de identidade.
Faz tempo que a relação de consumo não é mais simplesmente uma troca de dinheiro por produto ou serviço. É esperado que, pelo seu dinheiro e pela influência acordada às marcas que você consome, elas representem os seus interesses. As marcas que compramos e exibimos contam parte da história que projetamos para o mundo. Logo, é natural que cada vez mais a gente procure consumir de empresas que estejam alinhadas com quem somos ou quem gostaríamos de ser.
É por isso que vimos pipocar comentários cobrando das empresas atitudes concretas de combate ao racismo, ações que realmente beneficiem a comunidade ao invés de só coletar likes e comentários.
Quer você concorde que marcas tenham esse papel ou não, o fato é que isso já é a realidade.
Foi sobre isso que conversamos no episódio nove do CulturalCast:
Começamos voltando no tempo para 2017, mergulhando no Planner Summit que participei em maio daquele ano — meu primeiro evento da área depois que me mudei para São Paulo — e que me marcou por diversos motivos.
Exploramos a palestra “Novos consumidores, novos mercados” do Renato Meirelles do Instituto Locomotiva, que já chegou jogando uma verdade:
“Se o mercado só entende dados, provemos com dados a necessidade da diversidade na comunicação.”
Renato apresentou uma pesquisa que trazia dados muito pertinentes:
- 54% da população se declara como negra ou parda, mas a comunicação ainda trata esse público como um nicho. Em 2017, apenas 7% dos protagonistas de filmes publicitários na TV eram negros;
- 95% das pessoas não comprarão marcas ou produtos que, de alguma forma, não respeite a diversidade.
- 85% apoiariam iniciativas de empresas que promovessem igualdade de oportunidades.
- 65% das mulheres não se sentem representadas pela publicidade
- Só 26% das protagonistas são mulheres, sendo 84% brancas, 12% negras.
Para atualizar um pouco mais esses dados, no censo de 2019, 56,10% dos brasileiros se declararam negros ou pardos. E, em 2020, a representatividade negra na publicidade continua baixa.
O ponto crucial que guardei daquela palestra: preconceito não gera lucro. Então, na linguagem que faz sentido para o bolso das empresas, ele pontuou que se não for pensar em inclusão por justiça, que seja por inteligência.
Empresas que não se preocupam em contratar talentos diversos e em contar histórias diversas estão, literalmente, perdendo dinheiro. Além de errado, simplesmente não é inteligente ignorar a maior parte da população brasileira. E nós, profissionais de comunicação que estávamos naquele auditório na esperança de aprender algo valioso naquele dia, ficamos com uma lição martelando na cabeça: temos poder pra ajudar a mexer nesse ponteiro.
Sabe por que? Segundo o Instituto Ethos, se continuarmos no ritmo atual, levaremos cerca de 150 anos para atingir igualdade racial no mercado de trabalho. Mas a mudança para representação em comunicação pode ser feita de forma muito mais rápida. De novo — em um país com 56% da população declarada como negra ou parda, o público-alvo das nossas campanhas não é composto apenas de pessoas brancas. Nesse contexto, nós, comunicadores, temos poder de trazer essas histórias para as telas, fazendo propaganda para negros e com negros.
Toda mudança leva tempo, mas ela precisa começar. Me dei conta que alguém precisa dar o primeiro passo — porque, como bem disse o palestrante, o que é óbvio para você pode não ser óbvio para o outro.
Nesse episódio, também explorei o papel do planejador e a importância de um bom insight. eles importam, na minha visão, por um motivo singular — por causa das pessoas. Para ser um bom planejador, você precisa se importar com as pessoas e com a cultura em que elas estão inseridas, senão o resultado sempre vai ser um trabalho vazio. Trabalhos ricos são ricos porque prestamos atenção no que acontece ao nosso redor, inclusive fora da nossa própria bolha. Porque nos importamos. E a gente presta atenção ouvindo, pesquisando, aprendendo, ressignificando as coisas para causar um impacto positivo.
É aquela coisa: a publicidade é uma representação da cultura.
Mas ela também pode ajudar a formá-la.
Para ilustrar essa temática, trouxe o case da Barbie, sob a ótica de um paper publicado alguns anos atrás. Em 2005, as vendas as vendas da Barbie, que representavam cerca de 25% a 35% das vendas da Mattel, estavam caindo por sete trimestres consecutivos ano a ano. A situação ficou bem ruim até meados de 2016, quando a marca começou a investir de fato em diversidade para suas bonecas.
Toda essa mudança levou a Barbie a registrar sete trimestres consecutivos de crescimento. O volume de negócios aumentou 14% em 2018 e, ano passado, as vendas aumentaram cerca de 10%
Agora em 2020, eles se uniram à designer Shiona Turini, que já trabalhou com Beyoncé e Issa Rae, para criar uma linha de bonecas com diferentes tons de pele, cabelo e corpos.
Ouvir e agir de acordo com essas observações é bom para o negócio.
É melhor ainda para ajudar a criar um mundo mais diverso.
Diria que é essencial.
Essa é uma questão que não precisa demorar 150 anos pra ser resolvida. Enquanto marca ou enquanto consumidor, olhe para o contexto ao seu redor, ouça o que está acontecendo e aja de acordo com o que você acredita. Faz toda a diferença.
Por fim, chegamos ao ponto crucial do episódio —sinto que muita gente, diante da impotência gerada pela situação que vivemos, gostaria de poder fazer a mudança acontecer rapidamente. Como — infelizmente — não temos esse poder de mudança instantânea, nos voltamos para instituições que entendemos que podem contribuir de forma muito mais imediata.
Pedimos aos líderes dos governos que ouçam a população. Pedimos por políticas públicas mais inclusivas. Pedimos um sistema de justiça que seja transparente e justo. Para além do governo, hoje entendemos que marcas também têm um papel social. É por isso que pedimos delas ações concretas para ajudar a combater um mal tão enraizado em nossa sociedade.
- Falamos sobre essa pesquisa da Ipsos sobre “os brasileiros esperarem mais das marcas”
- O case da Nike + Colin Kaepernick, que teve uma repercussão imediata ruim, mas logo trouxe U$6 bilhões para a empresa
- E um outro ponto envolvendo a mesma Nike, só que agora com a marca acusada de políticas discriminatórias com atletas grávidas.
Escolhi esse exemplo para falar sobre a capacidade de discernir que uma marca pode estar certa sobre uma coisa e errada sobre outra.
Apenas apontar os erros em meio aos acertos é complicado. Apenas apontar
os acertos em meio aos erros é apagar um histórico relevante.
O que tiro de lição da história da Nike é que nós precisamos questionar, sempre, o contexto das ações. Entender o passado, navegar o presente e pensar sobre o futuro de uma empresa, nesse caso, nos permite ver com mais clareza se ela é aliada ou oportunista. Se queremos consumir ou não. O contexto importa para pautar as nossas escolhas, sejam elas de consumo ou de posicionamento.
No último bloco do podcast, teve o exemplo mais comentado que vi das marcas gringas (Ben & Jerry’s), teve o que observei de ação concreta de duas marcas brasileiras (Amaro e Zezeres) e a constatação de que mais do que apontar erros passados, aqui eu faço a escolha de entender o contexto e dar o benefício da dúvida para o futuro. É meu papel como planejadora ser a voz que decodifica a cultura dentro da relação cliente-agência. É meu papel como planejadora questionar as coisas. É meu papel como planejadora fazer perguntas. Mas também é meu papel como planejadora saber que eu nunca vou ter todas as respostas. Talvez, aqui, questionar a realidade ao meu redor seja o primeiro passo para começar a fazer a diferença.
E foi nessa veia de questionar comportamentos que convidei Gabriel Varela para fazer a leitura de seu texto “As vidas pretas importam para as marcas?” no episódio nove. Urgente. Importante. Imperdível.
Leia o texto aqui, ou escute durante o episódio.
Não podemos apagar o histórico de privilégios que permitiram — e continuam a permitir — que atitudes racistas existam e prejudiquem mais da metade da população do nosso país. Mas é possível utilizar esse mesmo privilégio para revisitar algumas posições. Como disse George Eliot, pseudônimo da novelista vitoriana Mary Ann Evans:
“Nunca é tarde demais para ser o que você poderia ter sido.”
Marcas, líderes, criadores de conteúdo, gente: esse é o meu apelo hoje.
Estamos em tempo de ouvir. De refletir, aprender e mudar. E de usar essa mudança como agente de transformação pra que a nossa realidade possa ser o que ela sempre deveria ter sido.
Siga o podcast para ficar por dentro de todas as novidades:
instagram | twitter
Leituras recomendadas para acompanhar o episódio de hoje:
- Livro “Publicidade Antirracista”, disponível aqui de forma gratuita
- Pequeno Manual Antirracista, de Djamila Ribeiro
- Olhares negros. Raça e Representação, de Bell Hooks
- Edição #89 da Bits to Brands da Beatriz Guarezi
- Vidas negras importam. Como a publicidade pode ser aliada?, da 65|10