Feito à mão

O resgate do trabalho manual na era da tecnologia

Beatriz Bulhões
#culturalcast
10 min readMar 27, 2019

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Photo by Annie Spratt on Unsplash

Este artigo é uma adaptação da transcrição do quarto episódio do podcast InovAgora, criado, produzido e editado por mim, Beatriz Bulhões.

Em um final de semana qualquer, está chovendo lá fora, tem café sendo passado na cozinha, alguém dorme tranquilo no quarto e, num canto da sala, você se encontra sentada há pelo menos duas ou três horas, concentrada numa atividade que requer foco, paciência e carinho: bordar.

O exercício de passar a linha e a agulha pelo tecido, num vai e vem quase interminável, faz você silenciar e desconectar.

Essa é uma cena que poderia facilmente ter acontecido mil vezes há algumas décadas, mas acontece na minha casa pelo menos uma vez por semana. Isso mesmo: eu, Beatriz, 25 anos de idade, passo várias tardes de fins de semana fazendo algo que muita gente associa com vovós. E eu não aprendi a bordar com as minhas, ou na escola quando criança, mas sim com um workshop que aconteceu no ano passado aqui em São Paulo. Eu, que já fui descrita um milhão de vezes como “ligada no 220”, que sempre tive dificuldade de me concentrar em atividades manuais, mal sei cortar uma folha direito e sou um zero à esquerda em desenho, me vi num momento da vida em que precisava desacelerar.

Claro que estou longe de ser a única jovem que troca sair de casa, ver Netflix ou ficar de bobeira na internet por fazer algo com as mãos. Mas o meu comportamento — e o de várias pessoas ao meu redor — foi sim o pontapé inicial para o tema desse artigo: a busca por atividades feitas à mão como uma resposta à aceleração frenética da vida digital.

No artigo anterior, conversamos sobre o fator instagramável, e como aos poucos o Instagram se tornou uma lente através da qual a gente interage com o mundo. Sejamos pessoas físicas ou marcas, o ato de pegar o celular, tirar uma foto e compartilhar um momento hoje é mais natural do que atender uma ligação, por exemplo. Afinal, cada vez mais pessoas consideram telefonemas algo incômodo, a não ser em questões de emergências, mas as 500 milhões de pessoas que usam o Stories diariamente não parecem ver nenhum problema em interagir #semfiltro na plataforma.

É fato que os nossos smartphones viraram extensões nossos corpos.

Photo by Priscilla Du Preez on Unsplash

Dependemos deles para descobrir novidades ou só pra saber como é mesmo que chega na casa daquele parente que mora em outra cidade, guardamos partes preciosas de nossas vidas nas notas e álbuns, contamos com eles para nos lembrar dos compromissos… Acho que não é exagerado dizer que, em alguns casos, tem gente que desenvolve um vínculo afetivo com o celular. Eu mesma só durmo tranquila há anos graças aos vídeos relaxantes que assisto no celular antes de dormir. É gratidão que chama, como diriam os jovens.

Mas uma coisa que aprendemos com a reflexão do último post foi que essa é uma via de mão dupla — enquanto a tecnologia e, especialmente as redes sociais, podem nos ajudar muito, é inegável que ela também pode ser prejudicial à saúde mental em diversos momentos.

Um exemplo?

Em 2015, antes da Apple introduzir o controle de medição do tempo que ficamos no celular, ou dos aplicativos disponíveis para Android que fazem o mesmo, uma equipe de pesquisadores da Universidade de Lancaster, no Reino Unido, publicou um estudo indicando que as pessoas — especificamente jovens, de 18 a 33 anos — usam seus smartphones duas vezes mais do que imaginam. Isso mesmo: eles pediram para que as pessoas estimassem quanto tempo por dia ficavam grudados na tela, e a ilusão coletiva de “ah, umas 2h no máximo” foi por água abaixo quando saíram os resultados: uma média de cinco horas por dia, mais ou menos um terço do tempo em que estamos acordados, checando os aparelhos por volta de 85 vezes durante o dia.

Para não dizer que esse comportamento é exclusivo dos ingleses, na edição de 2018 do estudo “A mobilidade no dia a dia do brasileiro”, da Deloitte, 50% dos respondentes admitem utilizar o smartphone em excesso, número que aumenta se falarmos dos jovens — 60% no caso de quem tem entre 18 e 24 anos e 57% para os de 25 a 34. Além disso, mais de um terço dos entrevistados sente a necessidade de conferir constantemente o telefone, enquanto 30% responderam que não conseguem dormir no horário pretendido ou se distraem com o smartphone ao concluir uma tarefa.

Fonte: Deloitte

Esses números podem ser um choque de realidade para muita gente. Para mim, foi também, só que nem tanto — eu meio que já tinha me dado conta disso várias vezes ao longo do ano passado. Passei pela síndrome da vibração fantasma, que é quando o nosso cérebro fica tão condicionado com os movimentos do celular que a gente sente ele vibrando no bolso quando na verdade não tá acontecendo nada, pelo tique nervoso de olhar as notificações a cada cinco minutos, pela fase de chegar em casa e ficar com cara grudada na tela até a hora de ir dormir e, claro, pelas discussões com amigos e com meu marido porque eu simplesmente não largava o celular.

Quando apontavam pra mim esse comportamento nada saudável, minha primeira reação era sempre de defesa — não é tanto tempo assim, você está exagerando, essas coisas. Só que no fundo eu sabia que estava muito dependente do meu celular. Ou de ficar deitada vendo Netflix e fazendo nada quase todo fim de semana. E aí, chegou uma hora que eu resolvi dizer chega e admitir que eu precisava fazer algo manual, aprender alguma atividade que me permitisse preencher minhas horas com algo que fosse além da rolagem infinita do feed e, por que não, me proporcionasse alegria ou a felicidade de alguém que eu gosto muito, e foi assim que eu descobri o bordado.

Em outubro de 2018, fiz um curso com as meninas do Clube do Bordado em e, desde então, tenho tentado tirar algumas horas por semana pra fazer um blackout digital e me concentrar somente na atividade manual da vez.

Para a minha surpresa, funcionou muito melhor do que eu esperava.

Teve uma vez que eu fiquei sete horas sentada no sofá bordando um quadrinho para o meu sobrinho. Minhas costas reclamaram depois, mas eu me lembro de ficar meio chocada quando olhei no relógio e percebi a hora, e mais ainda quando me dei conta que era a primeira vez em não sei quanto tempo que eu não senti a necessidade de ficar na internet.

Uma matéria da Revista Casa e Jardim sobre o crescimento da paixão pelo bordado, publicada em 2016, apontava que a idade dos bordadeiros contemporâneos ficava entre entre 25 e 37 anos, e que um fator importante para a conexão com a atividade era justamente a lentidão do processo artesanal. Na matéria tem um quote bem legal do artista Felipe Morozini, que é autor de uma série de quadros bordados chamada Pequeno Pensamento Burguês:

“Bordar exige que você se posicione em relação ao tempo e à vida digital”.

Esse estalo do desplugar me deixou com uma pulga atrás da orelha — seria esse um dos motivos que a gente viu crescer nos últimos anos o número de feiras e negócios criativos, feitos à mão e valorizando a produção local? Será que os jovens estavam, mesmo que sem perceber, retomando valores e práticas de tempos mais simples, em busca de um detox digital e da criação de algo com propósito?

Como boa curiosa que sou, fui pesquisar.
E agora vim aqui pra contar pra vocês o que eu descobri.

Pra testar a minha hipótese, fiz um teste simples em um ambiente controlado: meu Instagram.

Sim, eu sei, a ironia da coisa toda é hilária. Mas enfim, certo dia eu postei uma enquete no meu Stories, pedindo para as pessoas responderem se faziam algum tipo de atividade manual e, em caso afirmativo, o por quê.

Essa pesquisa informal teve 33 respondentes, com 53% de respostas positivas. Das 17 pessoas que responderam sim, 11 me escreveram pra detalhar suas respostas e algumas me chamaram a atenção:

Respostas coletadas na pesquisa informal

Dá pra sentir algumas coisas em comum nessas respostas né?

1. A vontade de sair do digital e se conectar com um processo manual;

2. Tangibilizar emoções de uma maneira criativa;

3. Presentear, ou comercializar, algo feito com afeto, algo que transcende as telas.

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Pra mim, o principal ponto que esses depoimentos têm em comum é o propósito. O ato de criar uma coisa com significado, que reflete seus valores pessoais e que não parece “só mais um” no meio de um feed infinito. Se desconectar para criar é, em si, um ato de carinho consigo mesmo, uma forma de self-care que acaba sendo amplificada quando a gente usa esse produto final para presentear uma pessoa ou, por que não, criar um negócio.

Após o meu experimento informal no Instagram, fui me aprofundar um pouco mais na pesquisa para esse episódio e acabei encontrando uma matéria excelente do Estadão de São Paulo sobre pessoas que estavam buscando refúgio da loucura do dia a dia na cerâmica.

Nesse ponto, comecei a entender que essa geração tem buscado sim se desconectar do online para se conectar com o real, mas não só isso: é como o processo de se desligar do celular, das redes sociais e fazer algo com as mãos se tornasse um fio condutor para uma relação mais saudável com a tecnologia.

A matéria do Estadão entrevista diversas mulheres para falar sobre se desconectar e trocar a tensão cotidiana pela cerâmica. Meus trechos favoritos incluem o depoimento da artetarepeuta Regina Chiesa, que comentou o quanto chama a sua atenção o fato do pessoal mais jovem ser quem mais está procurando workshops na área, nessa necessidade interna da busca de si. Ela ressalta que na época em que começou na cerâmica, tinha uma questão da estética, da perfeição, era muito rigoroso. Hoje, tem uma abertura para as pessoas criarem mais, se expressarem mais.

Outro quote legal é da Fernanda Giaccio, do ateliê Noni SP. Só um parênteses aqui pra dizer que eu conheci a Fernanda numa edição da Feira Jardim Secreto aqui em São Paulo ano passado, muito antes de começar a bordar e refletir sobre esse assunto todo. Comprei uma caneca de cerâmica linda demais, e ela é muito gentil, explica todo o processo pra gente no meio da feira mesmo. E foi basicamente isso que ela falou pra Folha sobre seus workshops: segundo ela, criou-se uma referência de que o handmade é legal.

A maioria das alunas do curso são mulheres entre 22 e 35 anos, com formação em Humanas ou Artes, designers, arquitetos, publicitários, muita gente que trabalha em agência e que chega até a empresa dela pelas redes sociais, primariamente o Instagram:

É um pessoal que quer aprender com quem faz, que segue a marca. É como se eles quisessem um pouco da identidade de quem faz também.

Essa mudança no comportamento de quem produz e de quem consome não vem somente do desejo de uma vida mais desacelerada. Vem também da vontade de comprar algo exclusivo e de privilegiar produtos feitos de forma mais orgânica e sustentável. O professor de Sociologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie Rogério Baptistini aponta que essa é uma tendência global para jovens com e amplo acesso à informação. Para ele, estamos vivendo, de fato, uma verdadeira revolução de comportamento, com as pessoas buscando uma vida mais orgânica e mais plena de sentido, que não seja apenas baseada na instantaneidade do momento.

Só para tangibilizar isso: uma busca rápida no Instagram me mostrou que a hashtag #compredequemfaz está presente em mais de 1 milhão de fotos hoje. Em novembro de 2016, esse número era 91 mil. Já a hashtag #comprodequemfaz pulou de 66 mil ocorrências para 176 mil.

Não há dúvidas que a comunidade handmade encontrou seu nicho aqui no Brasil, né?

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Se tem uma coisa que ficou clara pra mim foi que essa tendência de comportamento, atrelada ao resgate das artes manuais, ocorre graças às inovações tecnológicas e às redes sociais, que permitem que a gente aprenda, compartilhe e consuma com propósito. Seja com bordado, cerâmica, cozinha ou costura, a relação com a tecnologia é fundamental para essas atividades.

O detox digital é importante para criar e entrar em contato consigo mesmo, mas esses jovens artesãos utilizam a internet como um grande eixo de desenvolvimento de trabalho: o interesse pode começar no Instagram, por exemplo, e partir para assistir tutoriais no YouTube ou fazer um workshop com marcas artesanais já estabelecidas.

Daí, começa uma troca e compartilhamento de conhecimentos, referências e experiências nas redes sociais, que acabam sendo utilizadas como meio de exposição e/ou comercialização de produtos. É como diz a Samantha Shaw, fundadora da associação canadense Maker’s Movement:

“A tecnologia abastece o movimento do feito à mão.”

Um tema que é recorrente aqui no InovAgora é o equilíbrio entre o online e o offline quando as linhas entre eles estão cada vez mais tênues. No artigo de hoje, não é diferente: o aumento do interesse nas artes manuais não significa, necessariamente, um declínio do interesse na tecnologia — pelo contrário, as redes sociais muitas vezes são aliadas no processo de aprendizado e monetização desses negócios.

A questão é saber desacelerar para absorver o melhor que as redes sociais têm a oferecer e unir esse momento com a criação de algo significativo, que depois vai encontrar seu lar em uma comunidade digital de pessoas que compartilham do mesmo pensamento.

Fazer algo à mão e depois divulgar através dela é a prova de que desconectar para conectar é um caminho saudável que nos permite encontrar maneiras de equilibrar a nossa necessidade de ir mais devagar com uma vida digital (quase) sempre frenética. :)

Se você se interessou pelo conteúdo, não deixe de ouvir o podcast na sua plataforma de streaming favorita: anchor.fm/inovagora

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Beatriz Bulhões
#culturalcast

Curiosa. Estrategista. Podcaster. Escute meu podcast sobre comportamento, cultura digital e marcas aqui: https://anchor.fm/culturalcast