reflexões sobre a cultura do cancelamento

Beatriz Bulhões
#culturalcast
Published in
21 min readJul 31, 2020

Quem cancela os canceladores?

Photo by Markus Winkler on Unsplash

Esse artigo é baseado no episódio dez do podcast CulturalCast.

Se todos somos passíveis de erros, todos podemos ser cancelados.

Mas quem decide, de fato, como e por quê cancelar alguém? A cultura do cancelamento é eficaz? É apenas linchamento virtual ou é uma maneira das pessoas se sentirem no controle de quem assistem, leem ou escutam?

Como sempre, não sei se tenho essas respostas. Mas no episódio dez do #culturalcast, a proposta é explorarmos esse assunto com um aprofundamento em identidade digital e o mercado de influência, olhando para a origem e a popularização do termo na internet, o que está acontecendo hoje e as possíveis implicações desse comportamento para o futuro — tanto para quem influencia, quanto para quem é influenciado.

Dê o play e escute o episódio completo

Na primeira parte do episódio, buscamos entender a origem e ascensão do termo:

  • A expressão começou a se popularizar no Black Twitter gringo entre 2014 e 2015, e aqui e ali em artigos relacionados ao movimento #MeToo, quando começou a se tornar mais mainstream. O #MeToo, aliás, além de expor o abuso recorrente em Hollywood, trazia consigo também uma promessa: devolver o poder às pessoas que não o tinham e levar à justiça os abusadores que estavam há tanto tempo cometendo essas transgressões. Ao fazer isso através do ato de expor e cancelar pessoas como Harvey Weinstein e Kevin Spacey, vimos nascer uma ferramenta virtual que dava ao povo não só voz, mas a oportunidade de trazer justiça para as vítimas.
  • Em 2019, a coisa tomou novas proporções: “cultura do cancelamento” foi eleito o termo do ano pelo Dicionário Macquarie, uma das publicações responsáveis por selecionar palavras e expressões que mais moldaram o comportamento humano durante um ano:

Uma atitude tão persuasiva que ganhou seu próprio nome e se tornou, para o bem ou para o mal, uma força poderosa.

Mas o que, na prática, isso quer dizer?

Cancelar significa boicotar empresas ou pessoas — famosas ou não — por comportamentos que o público geral considere como errado ou inadequado. Caso uma pessoa fale ou se comporte de maneira controversa ou preconceituosa, o exército da internet imediatamente começa a marchar, expondo a conduta errônea e clamando pelo cancelamento do indivíduo ou empresa, jurando deixar de seguir, consumir conteúdo ou produtos associados com o cancelado.

Eu sei que essa conversa está em alta há um certo tempo, e noto que existem sempre dois argumentos:

  • De um lado, nós temos um grupo de pessoas privilegiadas que, pela primeira vez na vida estão sendo confrontadas com suas atitudes que na melhor das hipóteses são problemáticas e na pior das hipóteses são moralmente inconcebíveis e criminosas. Essas pessoas tendem a reclamar constantemente sobre como a cultura do cancelamento está fora de controle e que não se pode mais brincar com nada nos dias de hoje. Um exemplo recente é o caso do cantor Gusttavo Lima que, em uma Live de Quarentena no YouTube, passou dos limites com o álcool e foi duramente criticado (com razão, ao meu ver). Na época, o cantor cancelou futuras lives (mas depois voltou com todas) e falou no Twitter que “uma Live engessada e politicamente correta não tem graça”. Mas o problema é que ele fez uma live patrocinada por uma marca de bebidas alcoólicas, e a legislação publicitária atual no Brasil proíbe o consumo de bebidas em propagandas, além de ter uma obrigação ética de não incentivar o consumo desenfreado de álcool, coisa que o cantor certamente não levou em consideração. Se você não viu, vou deixar prints e trechos do vídeo lá no nosso Medium.

Gusttavo Lima dizer que agora o cancelamento foi longe demais porque as pessoas começaram a demandar consequências pelos seus atos irresponsáveis é, no mínimo, bizarro.

  • O outro lado dessa conversa é o que eu mais vejo na minha própria bolha, pra ser sincera — é a ideia de que “cultura do cancelamento” não existe de verdade, o que está acontecendo é que pessoas famosas e/ou poderosas estão finalmente sendo responsabilizadas por suas atitudes e elas não conseguem lidar com isso, então fazem discursos inflamados para falar sobre como a cultura do cancelamento é o motivo de que tudo está dando errado no mundo hoje.

O problema que eu vejo, olhando pra esses dois lados da conversa, é que a cultura do cancelamento parece sofrer do mesmo mal que tantas coisas outras na internet — a existência da mentalidade de “ou é isso ou é aquilo”.

E eu não acho que as relações humanas deveriam ser categorizadas assim, de forma tão dualista, porque sempre existe um contexto complexo por trás de cada interação. É muito fácil pegar a ideia de questionar e pedir responsabilidade das pessoas por seus atos e transformar isso em um espetáculo bizarro de entretenimento. Um jeito de distorcer fatos e situações e pessoas para abraçar narrativas de ódio, destruindo o propósito original de trazer visibilidade a situações problemáticas ou criminosas, substituindo isso por um desejo de satisfazer a nossa própria versão da verdade e da realidade.

Existe uma frase famosa que diz que sempre existem três lados para uma história — o seu lado, o lado da outra pessoa, e o que, de fato, é real. Depois de várias semanas pesquisando para escrever esse episódio, posso afirmar que, na minha opinião, nenhum desses lados está, assim, 100% correto. E eu digo isso com a maior tranquilidade de quem não vem aqui hoje pra afirmar o que de fato é real ou é verdade, mas sim para explorar uma outra visão — a de que a cultura do cancelamento existe, ela é usada sim para dar voz a minorias e vítimas, mas também é muito capaz de ser utilizada como uma arma contra essas mesmas pessoas.

E o pior: é bem complicado de provar que ela é uma ferramenta eficaz de mudança.

Explico: apesar de eu ter falado que o gatilho para esse episódio ter sido o caso da Gabriela Pugliesi, o caso mais icônico que permeia a minha memória, no entanto, é a Rede Globo. Sim, meus amigos, neste exato momento o jingle “O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo” está tocando na minha cabeça. Ao longo do meu quarto de século de vida neste país Brasil, eu vi a Rede Globo ser cancelada por artistas, partidos políticos, minha tia-avó e mais uma infinidade de anônimos. E ainda assim, isso não parece ter afetado o negócio da Rede Globo. A emissora continua sendo a mais popular do país, figura na lista das maiores do mundo, as pessoas continuam assistindo Jornal Nacional e novelas e muitos de nós alimentam o sonho de, secretamente, ser a mais nova estrela global.

Então, apesar do povo não ser bobo, parece que o cancelamento não funcionou com a Rede Globo. E com as pessoas, será que ele funciona?

Vamos analisar:

  1. Primeiro, precisamos entender como *exatamente* funciona um cancelamento. Vou usar aqui um exemplo que vi esses dias — quando pessoas de uma geração mais velha — oi, boomers — cancelaram a Maísa. Sim, a Maísa. O que aconteceu foi o seguinte:

No dia 26 de maio de 2020, a Maísa postou o seguinte tuíte:

Em seguida, diversos sites de revistas e jornais transformaram esse tuíte em matérias bem clickbait, como nesse exemplo da CARAS:

E aí, na seção de comentários, a Maísa, que só queria maratonar os filmes do Harry Potter com a sua família, começou a ser cancelada:

Bizarro, né?

Mas o mais assustador é o quão fácil é pegar uma história e transformá-la em outra, inflamando pessoas que imediatamente criticam e cancelam a outra sem, nesse caso, buscar entender o contexto. Lendo o tuíte original da Maísa, fica claro que ela estava brincando com a frustração de não conseguir maratonar uma das melhores sagas de todos os tempos. Tanto é que, dias depois, ela falou que finalmente a família conseguiu assistir todos os filmes.Repetindo: a Maísa fez um tuíte falando que não tinha voz em casa porque queria ver Harry Potter ao invés de Todo Mundo Odeia o Chris. A internet, ao ver isso, decidiu a Maísa era uma pirralha mal-educada que nunca passou por dificuldades e que não respeitava os pais. Vocês percebem o salto que é essa constatação em comparação com o tuíte original dela?

Isso tem a ver com um conceito que aprendi pesquisando pra fazer esse episódio: essencialismo. A Natalie Wynn, do canal Contrapoints, pontua que o essencialismo é quando passamos de criticar as ações de uma pessoa para criticar a própria pessoa. Não estamos apenas dizendo que eles fizeram coisas ruins. Estamos dizendo que eles são pessoas ruins. Esse exemplo da Maísa, por mais que possa parecer bobo, é útil para mostrar que toda e qualquer ação pode ser sim julgada pela lente do outro como digna de cancelamento. Isso não quer dizer que atitudes problemáticas devem ser toleradas, ou que devamos parar de questionar injustiças. Pra mim, significa que antes de julgar o que a gente precisa fazer é analisar, isso sim.

Voltando pro caso da Pugliesi, queria falar sobre um estudo recente da Mutato, que traçou um passo a passo de como um cancelamento geralmente acontece. Vou utilizar a construção deles para exemplificar como esse processo toma forma na internet.

PASSO 1 — Pessoa se torna uma influenciadora
PASSO 2 — Expectativas são criadas
PASSO 3 — Pessoa vacila
PASSO 4 — Rola um exposed
PASSO 5 — O exposed viraliza
PASSO 6 — Rola o cancelamento

Depois desse último passo, o estudo mapeia quatro potenciais consequências do cancelamento:

1 — A pessoa se desculpa, mas segue cancelada

2 — Os fãs defendem a pessoa, e ela fica parcialmente cancelada

3 — A pessoa reflete, mostra mudança e é descancelada

4 — A pessoa sempre erra, mas nunca é efetivamente cancelada.

O mais curioso, no caso da Pugliesi, é que essa não foi a primeira, a segunda ou nem a terceira vez que ela havia sido cancelada devido a alguma polêmica. De fato, uma busca rápida no Google me levou a uma matéria que descrevia cinco outras situações em que a moça havia se envolvido em polêmicas sérias nos últimos anos.

Mas olhem só: antes da “gota d’água” agora em 2020, ela tinha uma audiência cativa de 4.5 milhões de seguidores no Instagram. Claramente os cancelamentos anteriores tinham tido pouco, se é que algum, efeito na vida e na marca que é a Gabriela Pugliesi. O boicote verdadeiro só veio, de fato, quando a influencer se mostrou tão desconectada da realidade que o mundo está vivendo, que colocou em risco não só a sua vida, como a de outras pessoas que estavam na festa ou que viriam a ter contato com todo mundo que participou do evento. Fora que, na pandemia, passamos a ter menos paciência pra esse tipo de atitude vinda de criadores de conteúdo. O modo como interagimos com essas pessoas definitivamente mudou. Mas eu já chego nesse ponto.

Em todo caso, é importante notar que quem foi criticada e cancelada de verdade foi a Gabriela. O marido dela, que mora na mesma casa, participou da mesma festa e fez Stories mostrando o momento igualzinho ela fez, continua com o Instagram aberto, com seu 1.4m de seguidores, seus patrocinadores e seus comentários de apoio. Tudo bem, ele demorou 16 dias pra postar de novo após a situação, mas ainda assim, postou. Continua postando. Esse é um outro reflexo de como somos na sociedade aplicado na cultura do cancelamento: machismo. A Gabriela foi muito mais criticada que o Erasmo por uma situação que ambos criaram juntos. Por que vimos centenas de milhares de pessoas que nem sabiam quem era a moça correrem para o seu perfil para criticá-la, apenas ela? Por que as manchetes todas focavam apenas na Pugliesi? Claro, ela tem mais seguidores, é mais famosa, dá mais cliques. Mas acho ingenuidade dizer que é só isso. A mulher sempre é mais culpada, mesmo quando o erro é conjunto.

A Pugliesi agiu de uma maneira completamente privilegiada e irresponsável? Com certeza.
O marido da Pugliesi estava nesse mesmo bolo? Sem dúvidas.

Isso significa que Pugliesi e seu marido são pessoas horríveis que nunca vão aprender e mudar e vão continuar perpetuando esse tipo de comportamento pra sempre e por isso merecem ser excluídos do Instagram — e da nossa vida — pra sempre? Aí eu já acho mais complicado. Não sei dizer se eles são pessoas horríveis, pois não os conheço. Acho que são descuidados, alienados, privilegiados até dizer chega, sim. Acho importante serem responsabilizados com a perda de contratos e seguidores pra entenderem que toda ação tem consequência. Mas isso quer dizer que, se um dia a Pugliesi voltar pro Instagram e trabalhar ativamente pra ser uma pessoa melhor e crescer em cima dos seus erros eu vou continuar dizendo que é melhor ela continuar calada e cancelada? Jamais. O cancelamento deveria ser uma maneira da gente analisar a situação, apontar erros e esperar uma mudança.

Se for pra ficar num ciclo eterno de raiva, vira só mais um linchamento. Perde força e legitimidade, ao meu ver, porque parece que na verdade não estamos mais criticando aquela ação, estamos afirmando que aquela pessoa é terrível e pronto. Não tem redenção. Não tem crescimento. Não tem possibilidade de melhora. E isso não é triste demais? Dizer que perdemos a fé numa pessoa ao ponto de que ela merece ser cancelada e excluída pra sempre?

Eu não seguia a Pugliesi antes desse fato porque nunca me identifiquei com o conteúdo dela. Se qualquer dia ela voltar se mostrando realmente arrependida e disposta a mudar, talvez eu dê a ela o benefício da dúvida. Porque o que eu percebi com o cancelamento dessa moça em plena pandemia é que o modo como nós entendemos e consumimos conteúdos de influenciadores está realmente mudando pra sempre.

O segundo bloco do episódio foi dedicado a trazer um panorama sobre cancelamento e influência em tempos de pandemia:

Em entrevista para a VOX, Anne Charity Hudley, diretora de linguística afro-americana da Universidade da Califórnia, disse

“Cancelar é uma maneira de reconhecer que você não precisa ter o poder de mudar a desigualdade estrutural. Você nem precisa ter o poder de mudar todos os sentimentos do público. Mas, como indivíduo, você ainda pode ter poder o suficiente para se fazer ser ouvido. Quando você vê pessoas cancelando Kanye, cancelando outras pessoas, é uma maneira coletiva de dizer: ‘Elevamos seu status social, suas proezas econômicas, e agora não prestaremos atenção a você da mesma maneira que antes. “Talvez eu não tenha poder, mas o poder que tenho é ignorar você.”

Pela primeira vez em muito tempo nós estamos nos dando conta do poder que existe no ato de escolher dar follow ou unfollow em alguém. Quando o mundo está de cabeça pra baixo por causa de um vírus, quando nossa saúde mental se deteriora por passar meses em isolamento assistindo a uma progressão de notícias cada vez mais deprimentes, a gente começa a perder a paciência com quem não está levando a situação a sério — ou pior, com quem nem ao menos se importa em produzir conteúdo que acrescente valor nos nossos feeds em um momento crítico como esse.

Enquanto que antes a gente buscava conteúdos inspiradores, agora a gente busca conteúdo de verdade. Estamos cobrando dessas pessoas que vivem nas nossas telas transparência, influência real e positiva ao invés de uma vida perfeitamente desenhada para nos fazer desejar um produto ou uma viagem ou uma pessoa.

Mas precisamos lembrar que essa luta toda tem origem no fato que nós mesmos ajudamos a perpetuar esse sistema. Os influenciadores criam o conteúdo e crescem suas plataformas porque nós demos abertura e audiência para a construção de uma vida perfeitamente curada. Essa é uma “culpa” que nós, como seguidores, também carregamos. Não dá pra colocar toda a responsabilidade em quem construiu uma carreira que só existe porque há uma audiência disposta a alimentá-la. A verdade é que aos poucos, dolorosamente, devagar e sempre, nós estamos conseguindo desconstruir muita coisa na internet, e isso merece ser celebrado. Porém, o mundo, principalmente nas comunidades online, parece que agora está em busca da perfeição — de opiniões sensatas, de vidas reais, de pessoas que não cometem erros. E depois a gente vai e reclama que as redes sociais nos causam angústia por apresentarem, justamente, um recorte da vida que é perfeito demais. Percebem como é um processo que vai e volta? A gente tem é que quebrar a roda, como dizia a Daenerys.

Eu sou 100% a favor de ressignificar influência e propósito nesse momento, passando a seguir e admirar pessoas que contribuem de forma positiva ao invés de vazia para que o meu feed e a minha vida sejam mais ricos. Como bem disse o pessoal do YouPix, é menos sobre aspiração e mais sobre identidade. Influenciadores e celebridades têm, sim, um papel social importante a ser cumprido. Mas é importante que a gente, enquanto consumidores e “influenciados”, lembremos de uma verdade que pode parecer óbvia: perfeição não existe.

Se nós estamos descobrindo o poder do nosso like, nossa própria voz em forma de dois cliques na tela, que usemos ela pra entender essa questão complexa do cancelamento — usar esse termo pra toda e qualquer situação, da Maísa tuitando sobre Harry Potter à Rede Globo que parece sofrer um cancelamento inefetivo por dia, a jornalistas racistas que são demitidos e recontratados em pouco tempo, é realmente o melhor jeito de lutar por uma internet e uma vida mais justa?

Se estamos redescobrindo a ideia de seguir pessoas que acrescentam valor às nossas vidas ao invés de só vender aspirações vazias, não podemos também tentar usar esse momento pra redescobrir a ideia de que analisar criticamente situações e decidir onde vamos atuar e a quem vamos entregar influência é mais significativo do que simplesmente compartilhar matérias clickbait sem ler ou participar de uma hashtag de cancelamento que vai ser esquecida em menos de uma semana?

Eu acredito sim que vai nascer uma nova era da influência depois que a pandemia passar. Aliás, acho que já está nascendo. Estamos questionando o significado do like, o poder do nosso follow, a diferença do nosso endosso como seguidores. Mas eu gostaria muito que essa nova era viesse acompanhada da noção de que cancelar alguém significa expor atitudes erradas e dar a chance delas aprenderem com seus erros ao invés de me recusar a aceitar que as pessoas podem mudar.

Porque se não for sobre isso, eu volto pro ponto lá do começo do episódio sobre essencialismo — não estamos julgando as atitudes de uma pessoa, mas a pessoa em si, decidindo que ela é um ser humano terrível e que não é passível de redenção. A diferença é que quando criticamos as atitudes de alguém, por estarmos decepcionados ou só por acharmos fundamentalmente errada essa ou aquela posição, existe espaço para expressar a esperança de melhoria, de mudança, de que a pessoa absorva a crítica e aprenda com seus erros. Mas quando atacamos a pessoa em si ao invés das suas ações, é uma declaração de que nós coletamos as evidências e decidimos julgá-la péssima ou burra ou qualquer outra coisa, e não estamos abertos à esperança da mudança, portanto essa pessoa deve ser excluída desse diálogo.

Olhando pra Gabriela Pugliesi e seu blackout no Instagram, eu me pego pensando que o cancelamento não deveria representar exclusão eterna do ecossistema digital ou social. Se a gente cancela alguém e nunca mais pensa nessa pessoa, nunca mais dá chance para que haja um diálogo que possibilite reabilitação, não estamos apenas reforçando o nosso próprio viés? Nesse formato, o cancelamento se torna uma maneira de encontrar satisfação e prazer na certeza de que nós é que estamos do lado certo da narrativa. Mas de que adianta estar certo na nossa bolha enquanto o resto da internet pega fogo e se engaja numa guerra de ódio? Se nos decepcionamos com alguém ou com uma empresa ao ponto de querermos vê-los cancelados, é porque a gente esperava que essa pessoa ou empresa fosse mais alinhada com nossos próprios ideais, certo? O isolamento que essa vertente do cancelamento proporciona só distancia quem a gente na verdade queria aproximar.

Eu não vejo isso como uma medida efetiva para implementar mudanças na internet ou na vida. Se queremos construir ambientes mais saudáveis, precisamos entender que o crescimento vem sim com o erro. Cancelar, descancelar e recancelar pessoas e empresas arbitrariamente vai fazendo com que o movimento perca força. Uma das coisas mais legais que a internet proporcionou aos seres humanos foi a habilidade de se fazer ser visto e ouvido para além das suas próprias fronteiras. Quando a gente se engaja em discurso de ódio em cima de cancelamento, estamos sim silenciando as vozes de quem está encontrando um espaço seguro para opinar e denunciar. Porque quem deveria ouvir, aprender e crescer com essas experiências começa a se sentir justificado em dizer que não passa de linchamento virtual, que essas opiniões não possuem valor.

O Spartakus fez um vídeo esses dias analisando a trajetória de cancelamentos e descancelamentos da Anitta e ele levantou um ponto que eu considero crucial pra toda essa discussão: em todas as relações humanas, o que gera raiva é a quebra de expectativas. E quando a gente coloca influenciadores, artistas, empresas e pessoas do nosso círculo social em posições de destaque na nossa vida, projetando nossas próprias percepções e expectativas sobre elas, é inevitável que a decepção não venha em algum momento. As pessoas não são perfeitas. Já falei e digo de novo — todos somos passíveis de erros. Só que a gente vive de um jeito em que é esperado que projetemos apenas as coisas boas das nossas vidas, o que só alimenta essas expectativas de que todo mundo, menos eu, tem a vida perfeita, ou fulana de tal não erra, ou cicrana é uma fada sensata que não tem de feitos. O que começa como um meme começa a ser entendido como verdade e aí, quando alguém comete um deslize, naturalmente a nossa primeira reação hoje em dia tende a ser julgar. Cancelar. Excluir. Apagar.

Mas gente, depois desse episódio inteiro de análises, vocês concordam comigo que isso não resolve? Nas palavras sábias de Musa do Calypso — mas eu não sou nenhum celular pra te excluir só basta apertar. Brincadeiras à parte, não dá pra simplesmente deletar as pessoas. E isso fica provado quando vemos o quão raros são os casos de cancelamentos bem sucedidos, porque essa cultura virou sinônimo de julgamento eterno ao invés de diálogo para melhora.

É através do erro que crescemos. Se fazemos parte e fomentamos uma cultura que não tolera o erro — e notem que aqui, erro se difere de atitudes criminosas, por favor — como podemos esperar que as pessoas cresçam e amadureçam? Podemos ser mais gentis com o processo de erro e aprendizado do outro? Eu acredito que mudanças são possíveis, e é uma escolha individual se desassociar ou não de hábitos tóxicos.

Os dois lados do cancelamento — hoje versus ontem

Criticar atitudes problemáticas em tempos recentes, como no caso da Pugliesi, é válido e importante. Questionar a plataforma — e, principalmente, a audiência que assiste e é influenciada — dada a pessoas que por vezes disseminam desinformação de forma deliberada, cometem crimes etc é um coisa. Mas existe também outro lado do cancelamento, ao meu ver até mais problemático. Conforme a popularização do termo e da atividade em si foi crescendo, começamos a ver pessoas ativamente indo atrás de conteúdos antigos, tweets de mais de uma década atrás, likes em páginas no Facebook que representavam outras fases da vida. Existem grupos dedicados de pessoas que vão atrás de conteúdo com potencial de cancelamento para fazer “Over Parties”, tentando provar por A+B que Fulano de tal merece ser cancelado.

Quem já observou guerra de fandoms no twitter sabe muito bem do que eu estou falando aqui. E é mais do que aquela máxima do “quem procura, acha”, na minha opinião. Tudo que a gente achar nessas buscas vai ser analisado com a lente de quem está procurando algo no mínimo problemático pra discursar em cima. Tirado de contexto, quase tudo pode ser problematizado e virar um gatilho para cancelamentos. Mas no meio dessa caça às transgressões do passado de outros, existe espaço para uma autocrítica?

Quantos de nós paramos um dia e vamos vasculhar nossos posts de 8, 9 anos atrás no Facebook ou no Twitter? Eu cresci na internet e a internet é, além da minha ferramenta de trabalho e plataforma que dá voz às minhas ideias, um cemitério das minhas próprias palavras que podem ser utilizadas contra mim um dia. A não ser que você que está me ouvindo não possua nenhum perfil em redes sociais, ou faça uma faxina nos posts antigos de forma rotineira, isso é verdade pra você também. Eu mal consigo me lembrar o que eu tuitei ano passado, imagina coisas que meu eu impulsivo de 14/15 anos estava postando como se fosse verdade absoluta. Tenho certeza que se eu fosse procurar, acharia. Conteúdo que não condiz mais com meus valores hoje em dia, memes que eu compartilhei porque na época achei engraçados mas que hoje, provavelmente, não veria graça nenhuma. Na adolescência eu era uma Beatriz bem diferente da Beatriz que eu sou hoje. Ainda bem que tive a oportunidade de aprender e evoluir em muitos aspectos.

Temos que pesar contexto e interlocutor, sempre. Cancelamento se tornou uma expressão guarda-chuva para cobrar responsabilidade e consequências por ações passadas e presentes, mas quando começamos a cancelar pessoas a torto e a direito sem nos aprofundar no contexto, no interlocutor, o que a gente tem nas mãos é uma caça às bruxas, um silenciamento. A Anitta, que não é perfeita, vem a público nos Stories falar que estava com medo de expor uma pessoa que a chantageou porque tinha medo de ser, ela mesma, cancelada. Mas a Anitta já tinha sido cancelada várias vezes nos últimos anos, por motivos que iam desde uma demora no posicionamento de questões políticas à escolha de figurinos e locações para seus clipes. Apesar desse cenário, Anitta continuou construindo uma carreira de sucesso, com shows lotados, clipes com milhões de visualizações, parcerias internacionais… Ainda assim, reitero, ela precisou de muito tempo para se sentir pronta para lidar com possíveis novos cancelamentos devido à decisão de expor o Leo Dias. Vocês perceberam quantas vezes eu citei ali que ela foi cancelada, mas, falando de forma prática pra carreira dela isso não significou praticamente nada?

Quando passamos a achar normal todo dia ter um cancelamento diferente acontecendo nas redes sociais? Será que não estamos transformamos a cultura do cancelamento numa forma rasa de lidar com questões complexas?

Não estou dizendo que as pessoas canceladas nunca erraram. Nenhum de nós é perfeito ou sabe de tudo. Todos nós vivemos em pequenas bolhas. Meu argumento é que se não houver espaço para argumentar e dialogar com o outro, vamos nos enfiar cada vez mais nessas bolhas de expectativas irreais. Se a gente só se cerca de pensamentos como os nossos, começamos a achar que todo mundo que pensa diferente ou está errado, ou é uma pessoa ruim e pronto, sabe? Reclamamos que querem nos doutrinar e aí começamos a querer doutrinar os outros pra pensar do nosso modo, ao invés de confrontarmos a ideia de que existem sim uma infinidade de pensamentos que podem fazer sentido para outras pessoas, sem ferir princípios básicos de moralidade.

E eu falo isso muito como um mea culpa também, porque essa desconstrução eu estou começando a fazer agora! Já fui muito culpada de julgar o outro por pensar ou ter um gosto diferente do meu, sem parar para me questionar se isso era certo ou não, e sem abrir espaço para que a outra pessoa dialogasse o seu ponto de vista. Eu não quero ser a pessoa que cancela e descancela os outros a torto e a direito porque no fim do dia, quem sou eu pra apontar dedos pros outros sem nem olhar pra mim? Tirando coisas moralmente inaceitáveis, criminosas e afins, é mesmo o nosso papel julgar o passado dos outros fora de contexto? Ou então aplicar esse passado ao presente de alguém, desconsiderando todo o processo de crescimento que essa pessoa pode ter passado? Eu não sei. Mas a impressão que tenho é que essa luta toda é fruto da mentalidade nós versus eles que estamos vendo crescer a cada dia na internet, da polarização que os próprios algoritmos alimentam. Mas, como bem disse Sirius Black, “o mundo não se divide entre pessoas boas e Comensais da Morte. Todos temos luz e trevas dentro de nós. O que importa é o lado que decidimos agir.”

Isso significa que não existe a lógica de mocinhos de um lado e vilões do outro. Ser humano, afinal, significa ser complexo. E muita dessa complexidade está ligada à nossa adaptabilidade enquanto espécie.

É a nossa capacidade de mudar e nos adaptar que nos faz humanos. Quem quer ser a mesma pessoa que era com 13 anos aos 43? Tudo que fazemos tem influência em como nos apresentamos nessa vida. Logo, nem sempre as atitudes que a gente tem em um determinado momento, ancoradas em um determinado contexto, vão fazer sentido para a pessoa que iremos nos tornar daí pra frente. É essa habilidade de autoanálise que nos permite evoluir constantemente — há quem passe anos nesse processo sozinho, há quem chegue nessas perguntas e respostas sobre si mesmo através da terapia, e há quem fique preso num comportamento imutável por praticamente toda a vida. Se não formos capazes de permitir que diálogos mais saudáveis existam ao invés de simplesmente cancelar tudo e todos, como vamos ser capazes de sermos pessoas melhores, vivendo numa sociedade (e em uma internet) menos tóxica?

O efeito do cancelamento, como vimos, raramente é durável — principalmente quando falamos de grandes artistas, de influencers, de pessoas em posição de privilégio. E esse é o grande problema que eu vejo na cultura do cancelamento hoje. O que começou como um movimento para expor problemas, crimes e afins, se tornou uma busca desenfreada pelo próximo deslize, uma aposta entre quem será o próximo a ser cancelado. E descancelado. E cancelado de novo.

Conversamos mais cedo sobre o poder que nós, individualmente, temos na mão quando escolhemos dar um simples follow ou unfollow. Em tempos onde likes, follows e comentários são as moedas que constroem impérios para outros, nós seguidores temos voz. E temos direito sim, de cobrar posicionamento e responsabilidade das pessoas que escolhemos deixar no nosso feed, acrescentando valor para a nossa experiência digital e de vida. Meu ponto aqui não é que devemos nos calar diante de atitudes irresponsáveis, ofensivas ou criminosas. Pelo contrário. O problema de associar essas atitudes com a cultura do cancelamento, no entanto, é que o termo em si já está tão saturado em vista do seu uso de forma arbitrária que, muitas vezes, ele se torna vazio. E a luta por uma internet — e uma sociedade — mais justa não merece ser associada a isso. Talvez o necessário seja ressignificar esses cancelamentos, abandonando terminologias que terminam por virar memes ou ferramentas de bullying ao invés de ferramentas pra dar voz a quem jamais deveria ser silenciado.

Encerro o episódio de hoje com um pedido: que a gente se engaje na tarefa mais difícil de aprender com nossos erros e os erros dos outros, ao invés de cair na armadilha de encarar passivamente o “cancelamento do dia” sem aprender nada com a proposta de diálogo colocada à nossa frente.

Por menos cancelamentos vazios e mais consequências reais pelos nossos atos, por favor.

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Curiosa. Estrategista. Podcaster. Escute meu podcast sobre comportamento, cultura digital e marcas aqui: https://anchor.fm/culturalcast