A Ética no Paraíso de “The Good Place”

Isabella Veiga
Semiosis
Published in
12 min readMay 21, 2024

Descubra os dilemas éticos e morais nesta análise filosófica que explora o pós vida, virtude, livre arbítrio e significado da vida em ‘The Good Place’.

“The Good Place” (NBC, 2016) é uma série de televisão criada por Michael Schur, conhecido por seu trabalho em séries como “Parks and Recreation” (Prime Video, 2009) e “The Office” (NBC, 2005). A série foi ao ar entre 2016 e 2020 e consiste em quatro temporadas. Ela mistura elementos de comédia, drama, fantasia e filosofia para explorar questões profundas sobre moralidade, ética e o significado da vida.

A premissa básica da série é que Eleanor Shellstrop, interpretada por Kristen Bell, morre e vai para “The Good Place” (O Bom Lugar), uma versão celestial do pós vida onde as pessoas que levaram vidas moralmente exemplares são enviadas como recompensa. No entanto, logo fica claro que houve um erro, e Eleanor não pertence ao Bom Lugar, mas sim ao “Bad Place” (O Lugar Ruim), onde os que levaram vidas más são punidos.

Ao longo da série, acompanhamos Eleanor e um grupo eclético de personagens — Chidi, Tahani, e Jason, junto com o arquiteto do bairro do Bom Lugar, Michael e a Inteligência Artificial Janet — enquanto eles exploram questões éticas e morais, enfrentam desafios pessoais e tentam se tornar pessoas melhores. Dessa forma, nota-se que o elenco é multiétnico, contendo a figura de um senegalês, de uma menina loira americana, de uma figura indiana e de um asiático como seus personagens principais, além de fazer uma divisão entre homens e mulheres igualitária.

Figura 1. Os personagens principais da trama.

Uma das características mais marcantes de “The Good Place” é a maneira como integra conceitos filosóficos e éticos em sua narrativa de forma acessível e divertida, abordando assuntos como a relação entre a vida e a morte. A série faz referências a uma ampla gama de filósofos e teorias éticas, desde Aristóteles e Kant até Jeremy Bentham e John Stuart Mill. Ela explora ideias como o utilitarismo, o dever moral, a ética das consequências e a importância das relações humanas na formação do caráter.

Logo, nota-se que a personagem principal não foi a pessoa mais legal do mundo quando estava viva, sendo um pouco egoísta, egocêntrica e imoral. Contudo, ela é recepcionada no The Good Place e fica um pouco assustada, pensando que aquele não é o lugar certo para ela. Logo, Eleanor conhece um homem que seria sua alma gêmea no “The Good Place”, um professor de ética e filosofia, que tenta a ensinar como ser uma pessoa boa e é neste momento que começam a surgir as questões filosóficas da série. Ademais, as discussões sobre os pressupostos éticos mostram-se ao longo do tempo, como por exemplo, o que seria uma pessoa boa e o que é certo e errado.

Figura 2. Chidi ensinando ética Eleonor; Temp 1, Ep 3.

Além disso, “The Good Place” oferece uma visão única sobre o conceito de redenção e a possibilidade de mudança pessoal. Através dos arcos dos personagens principais, a série examina a natureza da moralidade, o perdão, o autoaperfeiçoamento e a busca pela verdadeira felicidade. No geral, “The Good Place” é muito mais do que uma simples comédia; é uma jornada filosófica que desafia os espectadores a refletir sobre suas próprias vidas e escolhas, ao mesmo tempo em que os diverte com personagens cativantes e uma história envolvente.

Dessa forma, para uma análise filosófica mais completa deste trabalho, foram escolhidos alguns autores execpcionais do tema, sendo o principal deles, Aristóteles, um filósofo grego antigo. Ele acreditava na busca do “bem supremo” através da virtude e da razão e escreveu o livro “Ética a Nicômaco”, influenciando profundamente o pensamento ocidental.

A ética é um pressuposto natural ao homem segundo o filósofo, que levaria o homem a felicidade, que só seria alcançada com o tempo. Visto isso, Eleonor diz uma frase impactante nas aulas com Chidi: “Quem foi que disse que Aristóteles é o dono da ética?”, deixando a entender que atualmente trabalhamos com um pressuposto ético da antiguidade — o que é verdade, a teoria influencia o que se entende por ético e moral até os dias atuais.

Aristóteles argumenta que o objetivo fundamental da vida humana é alcançar a felicidade (eudaimonia). Ele define a felicidade como a realização completa e plena de todas as capacidades e potencialidades humanas. O filósofo sugere que a felicidade é alcançada através da prática da virtude, e identifica duas principais categorias: virtudes morais e virtudes intelectuais. As virtudes morais envolvem hábitos adquiridos através da prática, como coragem, temperança e justiça, enquanto as virtudes intelectuais envolvem a excelência do raciocínio, como sabedoria e prudência.

Assim, Aristóteles enfatiza que a virtude é desenvolvida através da prática constante e do hábito. Ele argumenta que, assim como alguém se torna um bom atleta praticando esportes regularmente, alguém se torna virtuoso praticando ações virtuosas repetidamente. O caráter moral de uma pessoa é moldado pelos hábitos que ela desenvolve ao longo da vida. A prática de ações virtuosas, repetidas vezes, leva à formação de um caráter virtuoso. Por outro lado, a repetição de ações viciosas resulta na formação de um caráter vicioso.

Dessa forma, nota-se que o personagem Chidi acredita fielmente na questão do hábito e da prática para o desenvolvimento das virtudes, visto que ele tenta ensinar Eleonor a seguir seus ensinamentos e repetir boas ações. Chidi, ao longo da série, é retratado como alguém que busca constantemente a excelência moral através da prática e do hábito. Sua crença na importância desses elementos filosóficos é evidente em suas interações com os outros personagens, especialmente Eleonor. Ele se esforça para ensinar a ela não apenas os princípios éticos, mas também a importância de os incorporar em seu comportamento diário.

Figura 3. Chidi ensinando “The Trolley Problem”; Temp 2, Ep 5.
Figura 4. Michael colocando em prática “The Trolley Problem”; Temp 2, Ep 5.

Assim, nota-se que mesmo em situações onde Chidi se vê em conflito moral ou ético, ele recorre à reflexão e à análise racional como meio de tomar decisões. Esse processo de autoexame e busca pela melhor ação reflete a influência do pensamento aristotélico, que enfatiza não apenas a prática das virtudes, mas também a importância da razão no desenvolvimento moral.

Além disso, a jornada de Chidi ao longo da série também evidencia outra ideia aristotélica, a da amizade virtuosa. Aristóteles considerava a amizade como um dos pilares fundamentais para a vida ética, pois os amigos virtuosos ajudam uns aos outros a buscar a excelência moral. A relação entre Chidi e Eleonor, apesar de tumultuada em certos momentos, é construída sobre um desejo mútuo de crescimento e aprimoramento moral, o que se alinha com a concepção aristotélica de amizade.

Ao relacionar essa perspectiva aristotélica com a série, pode-se observar como os personagens são confrontados com a ideia de que a virtude deve ser buscada por si só, não apenas como um meio para alcançar uma recompensa futura.

Além disso, verifica-se o personagem Michael, que é um demônio e um arquiteto do inferno onde os outros personagens principais foram admitidos, o suposto paraíso. No decorrer das temporadas, os quatro personagens conseguem despertar uma empatia em um demônio, que estava lá para torturá-los pela eternidade, e conseguem o fazer repensar sobre todo o sistema do pós-vida, das pontuações das pessoas que funcionam como um algoritmo.

Figura 5. Michael mostrando empatia pela Eleonor; Temp 2, Ep 9.

Aristóteles argumentava que a virtude moral é o resultado do hábito e que a virtude é alcançada através da prática consciente e deliberada de ações virtuosas. Ele acreditava que a virtude é um meio termo entre dois extremos viciosos, um de excesso e outro de deficiência, mais conhecida como a “Doutrina do Meio Termo”. Esses conceitos se relacionam diretamente com a jornada de Michael, o arquiteto do suposto paraíso que se revela ser o inferno. Ao experimentar uma crise existencial ao descobrir o que é ser humano, Michael é confrontado com a responsabilidade de suas próprias escolhas. A ideia de que o sistema que ele ajudou a criar é injusto e falho, revela a noção aristotélica de que cada indivíduo é responsável por suas ações e deve buscar a virtude através da prática consciente e deliberada.

Além disso, a transformação de Michael e sua busca por redenção sugerem uma reflexão sobre o conceito de virtude em Aristóteles. A virtude ocorre quando as pessoas reconhecem sua própria responsabilidade e buscam a mudança através da prática consciente e deliberada de ações virtuosas. Ao reconhecer sua própria responsabilidade e buscar a mudança, Michael transcende a maldade e embarca em uma jornada de autodescoberta e crescimento moral. Ele busca o meio termo entre os extremos viciosos, o que é um reflexo direto da “Doutrina do Meio Termo” de Aristóteles.

A relação entre os personagens principais e o demônio que inicialmente estava responsabilizado de torturá-los também pode ser interpretada à luz da teoria do “bem supremo” de Aristóteles. O filósofo acreditava que todas as ações visam algum “bem”, e o “bem supremo” é aquele que é desejado por si mesmo e nunca por causa de algo mais. Ele identificou o “bem supremo” como a felicidade (eudaimonia), que é alcançada vivendo uma vida de virtude.

A empatia despertada nos personagens principais, levando-os a ajudar o demônio a repensar seu papel e questionar o sistema, ilustra a busca pelo “bem supremo”. Eles não estão apenas buscando sua própria felicidade, mas também a felicidade do demônio, que é um reflexo direto dessa teoria de Aristóteles.

Essa transformação do demônio, de um torturador para um ser empático, ilustra a ideia do filósofo de que a felicidade é alcançada através da virtude. Isso sugere que, mesmo em circunstâncias extremas, a busca pela felicidade e a prática da virtude podem levar à redenção e à transformação moral. A série apresenta uma visão interessante sobre como a busca pela virtude e a felicidade pode levar à transformação, mesmo nas circunstâncias mais improváveis.

Visto isso, Michael ajuda a questionar todo o sistema de vida e morte, convencendo a juíza eterna a dar mais uma chance para os humanos, que provaram que o sistema era corrupto e apenas uma pequena parcela de pessoas realmente chegava ao verdadeiro Lugar Bom. Depois de um tempo e vários acontecimentos, os quatro personagens conseguem chegar ao tal lugar esperado, e acabam descobrindo que as pessoas estão apáticas com a própria existência, cansadas de toda a abundância. Posto isso, observa-se uma reflexão sobre a própria dor humana e a mortalidade.

Figura 6. Personagens ultrapassando o portal para o desconhecido; Temp 4, Ep 13.

Depois de um tempo no bom lugar, eles acabam cansando desse luxo e eterna “felicidade”. Assim, existe uma porta desconhecida, a qual ninguém conhece e sabe o que acontece ao ultrapassá-la, mas quase todos do grupo resolvem cruzá-la. Com isso, o sentido da vida é posto pela própria morte, pela própria finitude da experiência humana, de que se é eterno e não tem sacrifício, luta e dificuldade, não tem “graça”. Desse modo, a série traz esse sentido para a dor humana e a necessidade de atravessar uma experiência temporal, finita e limita, no qual as coisas que os humanos querem, não vem fácil e o que não querem, aparecem frequentemente.

Outra ideia que está presente em algumas partes da série, é o pós-humanismo. Este é um movimento intelectual que questiona as concepções tradicionais sobre o que significa ser humano e propõe novas formas de entender a relação entre humanos, tecnologia e natureza. Ele sugere que estamos nos movendo para além da ideia de humanidade como uma categoria estática e definida, e em direção a uma compreensão mais fluida e dinâmica das identidades humanas.

Uma das figuras proeminentes no campo do pós-humanismo é a filósofa brasileira Lúcia Santaella. Ela argumenta que estamos vivendo em uma era marcada pela convergência tecnológica, onde as fronteiras entre o humano e o tecnológico estão se tornando cada vez mais tênues. Explora também como as novas tecnologias, como a inteligência artificial, a biotecnologia e a realidade virtual, estão transformando nossa compreensão de identidade, corpo, cognição e consciência.

Além disso, Santaella (2004) também discute as implicações éticas e políticas dessas transformações tecnológicas. Ela levanta questões sobre autonomia, privacidade, justiça social e poder, destacando a necessidade de uma reflexão crítica e uma abordagem ética para lidar com os desafios do pós-humanismo.

Dessa forma, o seriado desafia as noções convencionais de natureza humana ao explorar a possibilidade de melhorar como pessoa mesmo após a morte. Isso sugere uma concepção fluida da identidade humana, que se alinha com as ideias do pós-humanismo sobre a mutabilidade e a expansão das fronteiras da humanidade.

Embora não seja central, a série faz algumas incursões na tecnologia, como a Janet, um ser artificial que fornece assistência aos habitantes do “The Good Place”. Essa relação entre humanos e tecnologia levanta questões sobre como a tecnologia pode afetar a busca pela “boa vida” e o que significa ser humano em um mundo onde a tecnologia desempenha um papel tão significativo.

Figura 7. Janet usando seus “poderes”; Temp 2, Ep 7.

O tema principal de “The Good Place” é uma exploração das ideias éticas e da responsabilidade moral, especialmente em relação às ações dos personagens principais. Essa reflexão ética pode ser vista como uma resposta ao desafio ético levantado pelo pós-humanismo, que pede uma reflexão crítica sobre como a tecnologia está transformando não apenas nossa compreensão da identidade, mas também nossas responsabilidades morais em relação aos outros e ao mundo ao nosso redor.

Além disso, as cores desempenham um papel significativo na representação dos diferentes locais na série. Por exemplo, o “Lugar Bom” pode ser caracterizado por cores vibrantes, como tons de azul, verde e amarelo, que transmitem uma sensação de paz, tranquilidade e felicidade. Essas cores simbolizam a ideia de uma existência idealizada, onde tudo é perfeito e harmonioso.

Figura 8. Michael revelando o “The Good Place” para Eleonor; Temp 1, Ep 1.

Entretanto, o “plot-twist” da série é justamente esse, visto que o arquiteto Michael constrói esse suposto Lugar Bom e como as pessoas o imaginam. Contudo, esse lugar é na verdade o “inferno”, que está disfarçado de coisas boas. Assim, pode-se perceber a lição que o seriado oferece em relação à morte, que é a maior dúvida entre os humanos, e na série podemos ver as diversas maneiras de Lugar Ruim que se pode existir, que pode se camuflar no estereótipo que os indivíduos fazem sobre esse ambiente.

Uma técnica muito utilizada em “The Good Place”, são os “flashbacks”. Eles servem para fornecer informações sobre o passado dos personagens, revelando melhor sobre quando eles estavam vivos, e assim desenvolvem a narrativa de forma mais completa.

Essa técnica é usada para explorar a formação do caráter dos personagens, mostrando eventos de suas vidas passadas que moldaram suas personalidades e influenciaram suas escolhas no presente. Isso permite uma análise mais profunda das motivações e dilemas éticos enfrentados pelos personagens, destacando a complexidade da natureza humana e a interação entre o passado e o presente na construção da identidade.

É possível notar essa confusão mental entre passado e presente e essa evolução ética principalmente da protagonista Eleonor, nos primeiros episódios. No 2º episódio da primeira temporada, acontecem vários flashbacks de sua vida, e em um deles revela uma saída com amigos do trabalho, que sempre alternam os motoristas, para uma pessoa só não poder beber bebidas alcoólicas. Assim, toda vez a personagem prorroga a posição de motorista e até mesmo engana os amigos para conseguir beber, além de arranjar empecilhos para não “poder” dirigir. Visto isso, é revelado essa pessoa extremamente egoísta na Terra, mas que parece já se arrepender de suas atitudes passadas, expondo o início de sua evolução moral.

Figura 9. Flashback da Eleonor com os amigos; Temp 1, Ep 2.

Além disso, esses flashbacks podem ser usados para fornecer momentos de reflexão sobre o significado da vida e a natureza da existência humana. Ao revisitar eventos importantes do passado dos personagens, essa técnica pode evocar memórias e emoções profundas, incentivando uma análise sobre temas como mortalidade, amor, amizade e propósito. Isso convida os espectadores a considerar questões existenciais mais amplas e a examinar suas próprias vidas à luz das experiências dos personagens, que fazem o mesmo.

Referências Bibliográficas

Aristóteles. (2009). Ética a Nicómaco. (Quetzal Editores.)

Santaella, Lucia. (2004). Cultura das Mídias. São Paulo: Experimento, 4ª Ed.

TecMundo. (2019). The Good Place: conheça os conceitos filosóficos da série. https://www.tecmundo.com.br/cultura-geek/146511-the-good-place-conheca-conceitos-filosoficos-serie.htm

Rossini, Maria. (2019). A filosofia de The Good Place: os conceitos de moral abordados na série. SuperInteressante. https://super.abril.com.br/cultura/a-filosofia-de-the-good-place-os-conceitos-de-moral-abordados-na-serie

Gadelha, Mylena. (2020). Como ‘The Good Place’ nos tornou mais tranquilos sobre o pós-vida?. Diário do Nordeste. https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/opiniao/colunistas/2.277/como-the-good-place-nos-tornou-mais-tranquilos-sobre-o-pos-vida-1.2206424

--

--