A Casa dos Espelhos: Reflexões Filosóficas sobre o Big Brother

Isadora Pressoto
Semiosis
Published in
11 min readMay 29, 2024

O Reality Show Big Brother, muito popular no Brasil como BBB, é um programa de franquia internacional. Atualmente, existem 23 versões espalhadas ao redor do mundo. O primeiro “Big Brother” surgiu na Holanda no fim de 1999, mas rapidamente se espalhou para outros países devido as constantes polêmicas e grandes audiências. Nesta análise filosófica, baseadas nas teorias de Michel Foucault, Djamila Ribeiro e Sigmund Freud, será explorado, em específico, a edição brasileira de 2021.

Figura 1. Elenco BBB21

O objetivo do reality é entreter o público através da observação constante de um grupo de participantes confinados em uma casa, sem contato com o mundo exterior. Esses participantes competem por prêmios em dinheiro, enfrentando uma série de desafios e votações semanais onde um deles é eliminado.

O programa explora a dinâmica social, os conflitos, que evolvem muitas vezes em transtornos psicológicos, e as alianças formadas entre os participantes, enquanto o público acompanha e influência o desenrolar do jogo votando para eliminar ou salvar competidores.

Origem do programa

Apesar da sua fama mundial, o verdadeiro Big Brother tem sua origem na literatura. O programa é uma premissa do livro 1984, do autor britânico George Orwell. Na obra, o Grande Irmão é a figura autoritária que domina o cenário fictício da Oceania, mantendo o controle absoluto sobre a população. No enredo, todos os espaços públicos e privados são monitorados pelas “teletelas”, dispositivos que funcionam como câmeras, capazes de vigiar, registrar e espiar a vida íntima das pessoas, de maneira similar ao que ocorre na casa do Projac, onde os participantes são filmados e acompanhados 24 horas.

Em outras palavras, o Big Brother é considerado um laboratório de experimentação social: coloque indivíduos com personalidades diversas em um ambiente controlado, sob vigilância constante de 24 horas por dia, e observe como essa microssociedade se comportará. Desde o começo da pandemia, o programa ganhou enorme destaque entre a população quarentenada, a edição de 2021 foi escolhida por, além de ter batido record de audiência e ser um dos mais assistidos, marcou a sua estreia com mais de 44 milhões de telespectadores.

Análise BBB21

O conceito de panóptico de Michel Foucault, descrito em sua obra “Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão”, descreve um modelo arquitetônico de vigilância no qual os indivíduos são constantemente observados, sem saber quando estão sendo vigiados. Essa ideia se relaciona diretamente com a dinâmica do Big Brother, onde os participantes estão sob vigilância constante das câmeras, sem privacidade, e são observados por milhares de espectadores.

O panóptico de Foucault é uma metáfora para a sociedade disciplinar, na qual a vigilância e o controle são exercidos de forma difusa e onipresente. No contexto do BBB, a presença das câmeras e a exposição constante dos participantes refletem essa dinâmica de vigilância e controle. Os participantes estão cientes de que estão sendo observados, mas não sabem exatamente quando, criando um ambiente de constante vigilância e exposição.

Além disso, o panóptico também ressalta a questão da privacidade, ou da falta dela, no ambiente do programa. Os participantes estão sujeitos a uma exposição pública constante, sem a possibilidade de se retirarem para um espaço privado. Isso gera reflexões sobre a influência da vigilância constante na dinâmica social, nos comportamentos dos participantes e nas interações entre eles.

O elenco ganhou destaque por gerar maior identificação e representatividade. Dos 20 participantes, 9 se autodeclaram negros e 6 são membros da Comunidade LGBTQIA+. Entretanto, antes de analisar os competidores, em um programa de audiência, é importante estudar o público que o assiste. Como já mencionado, a edição de 2021 foi lançada em um momento de crise sanitária mundial, marcando mais de 1 ano de isolamento social devido à Covid-19. Ou seja, nessa condição, o programa trouxe consigo tanto uma microssociedade que já estava, antes de entrar na casa, psicologicamente vulnerável quanto um público mais sensível e reativo às pautas repercutidas ao decorrer do programa.

Isso foi notável logo no início do programa, que com poucos dias, já existia intrigas e conflitos entre os participantes, que rapidamente repercutiram nas redes sociais, e de certo modo, ativaram o espírito de solidariedade dos expectadores. Tanto que, grande parte da fama dessa edição, surgiu devido à divisão dos jogadores entre os “heróis” como Juliette, Camilla de Lucas e Gil do Vigor, as “plantas”, participantes que não tinha muito destaque ou que estavam fora de conflitos, e os “vilões” como Karol Conká, Lumena, Projota e Nego Di, que devido ao bullying e a humilhação por Karol, resultou na desistência de um dos jogadores, Lucas Penteado.

Figura 2. Lucas Penteado antes da desistência.

Em uma discussão na festa do dia 1 de fevereiro de 2021, Karol pediu que Lucas saísse da mesa de refeições até que ela terminasse de comer, xingou-o e ameaçou jogar água em sua cara. À noite, durante a dinâmica do jogo da discórdia, ambos se acusaram de serem “canceladores”. No intervalo do programa, Karol acusou Lucas de abuso, o que gerou críticas nas redes sociais. Os sentimentos predominantes do público no Twitter durante esse período foram revolta, nojo, raiva e ansiedade, e entre 1 e 5 de fevereiro de 2021, as principais hashtags foram “#KarolConkaExpulsa” e “#ForaKarolConka”.

Figura 3. Lucas Penteado e Karol Conká após briga.

O cancelamento de Karol Conká foi muito além do término do programa, Karol participou de uma série documental “A vida depois do Tombo”, que retratava a retomada da carreira após a saída com a maior rejeição da história do BBB em todo o mundo. Esse caso permite uma análise da cultura do cancelamento sob diferentes perspectivas, considerando questões éticas, liberdade de expressão, justiça social e poder.

Enquanto podemos argumentar que responsabilizar indivíduos por condutas imorais é uma obrigação moral, também devemos considerar se o cancelamento realmente beneficia a sociedade, levantando preocupações sobre a liberdade de expressão e a troca de ideias, que são essenciais para o progresso social e a busca da verdade. Nesse sentido, a prática do cancelamento pode ser interpretada como uma ameaça à liberdade de expressão, criando um ambiente no qual as pessoas evitam expressar opiniões divergentes por medo de possíveis consequências negativas.

Já a participação de Lumena Aleluia no programa, inicialmente, suas atitudes comedidas foram bem recebidas pelo público, a psicóloga trazia temáticas importantes, como o racismo, empoderamento feminino e sexualidade. No entanto, à medida que suas acusações e comportamentos se tornaram mais intensos, começaram as acusações de que a participante usava dessas pautas em benefício próprio, além de usar um vocabulário academicista, que ainda tornou inacessíveis ao entendimento de boa parte da audiência do BBB temáticas levantadas pela própria. Logo a percepção do público mudou negativamente, também resultando em seu cancelamento.

Uma das primeiras brigas do BBB21 ocorreu entre Juliette e Lumena. A advogada e a psicóloga se desentenderam por causa do Raio-X. Juliette demorou no Confessionário, fazendo com que os outros participantes tivessem que correr para não perder a hora e as estalecas. Lumena ficou incomodada e confrontou Juliette “Você me tirou o direito de expressar meus verdadeiros sentimentos para as pessoas. Eu queria dar coração, mas pensei que ainda tinha alguém lá fora. Todo mundo tem emoção aqui, mas segure a onda um pouquinho”.

Figura 4. Juliette e Lumena após discussão.

Juliette Freire, advogada e maquiadora paraibana, enfrentou um caminho difícil para vencer o Big Brother Brasil 21. Ela ganhou 90,15% dos votos na final contra Fiuk e Camilla, após uma trajetória marcada por conflitos e mudanças de estratégias. Juliette venceu apenas uma prova do líder, mas conquistou o público com sua sinceridade e bondade. Seu número de seguidores no Instagram disparou de 150 mil para mais de 23 milhões em cem dias.

A sua trajetória no programa foi marcada por inúmeras humilhações, exclusão e xenofobia. Ela foi excluída pelos colegas e sofreu comentários preconceituosos sobre seu sotaque nordestino, além de ser chamada de “fingida”, “caça like”, “louca”, entre outros xingamentos. Campanhas online foram levantadas em sua defesa, afirmando que “tortura psicológica não é entretenimento”.

A forma como os participantes tratavam Juliette estava relacionada à “consciência crítica” ou “superego”, conceito desenvolvido por Sigmund Freud. O superego é implacável e se expressa através da culpa inconsciente, levando os outros participantes a projetarem suas próprias inseguranças e maldades em Juliette. Eles esperavam que ela reagisse de forma negativa para justificar suas atitudes hostis.

Já no meio para fim do reality, no dia 4 de abril de 2021, a frase “Respeita nosso cabelo” viralizou no Twitter após uma cena onde o participante João Luiz teve seu cabelo Black Power comparado a uma peruca de “homem das cavernas”, mostrando o impacto das expressões racistas na sociedade. A disseminação de atitudes racistas através de programas de grande audiência como o Big Brother Brasil evidencia como os meios de comunicação podem tanto refletir quanto reforçar desigualdades sociais, que talvez passaria despercebida em situações do dia a dia fora das câmeras. Portanto, nesse contexto, a vigilância constante das câmeras no programa pode ter sido um aspecto positivo, pois proporcionou uma oportunidade de reflexão e redenção para o participante que cometeu o ato racista.

Figura 5. Participanetes Rodolffo e João Luiz.

Analisando esse episódio sob a ótica de Djamila Ribeiro, podemos aprofundar a discussão sobre racismo estrutural e a importância da representatividade e da visibilidade nas mídias. Djamila Ribeiro, em suas obras, enfatiza a necessidade de reconhecer e combater o racismo estrutural, que se manifesta em diversas esferas da sociedade, incluindo os meios de comunicação. A comparação do cabelo de João Luiz a uma peruca de “homem das cavernas” não é apenas uma ofensa individual, mas um reflexo de um problema maior enraizado nas estruturas sociais.

Ribeiro argumenta que a representatividade é crucial para desafiar e desconstruir essas estruturas racistas. A visibilidade de participantes pretos em um programa de grande audiência como o Big Brother Brasil permite trazer à tona questões de racismo que muitas vezes são ignoradas ou minimizadas.

Após o incidente ser amplamente divulgado e repercutido nas redes sociais, o responsável pela comparação depreciativa, Rodolffo, teve a chance de reconhecer seu erro e pedir desculpas a João Luiz. Essa exposição, possibilitada pelas câmeras, talvez tenha sido crucial para que o participante confrontasse seu comportamento e suas atitudes, algo que poderia não ter ocorrido sem a visibilidade proporcionada pelo programa.

Efeito Ralph Form

Dentre todas as intrigas, um conceito relevante para analisar o comportamento dos participantes do BBB é o efeito Ralph Form. Basicamente, é a tendência de as pessoas agirem de maneira diferente quando sabem que estão sendo observadas. No contexto do programa, onde os participantes estão cientes de que estão sendo filmados 24 horas por dia e são observados por milhares de espectadores, o efeito Ralph Form atinge um nível extremo.

A pressão da exposição constante e a consciência da audiência podem levar os participantes adotarem comportamentos que podem não ser totalmente representativos de sua personalidade fora do programa. A busca por benefícios financeiros e profissionais, juntamente com a competição e a dinâmica do jogo, podem influenciar as ações dos participantes, levando a uma performance exagerada ou a atitudes extremas.

Ou seja, esse efeito destaca como a presença das câmeras e a consciência da observação pública podem moldar o comportamento dos participantes, levando a uma representação muitas vezes distorcida de si mesmos. A pressão da visibilidade e a busca por destaque no programa podem levar os participantes a agirem de forma mais dramática, competitiva ou polêmica do que agiriam em situações do cotidiano.

Considerações Finais

Através da escolha de analisar BBB 21 sob uma perspectiva filosófica, foi possível entender e aprofundar como um programa de entretenimento massivo pode servir de microcosmo para uma série de questões sociais, psicológicas e éticas, refletindo e amplificando dinâmicas presentes na sociedade contemporânea.

Os pontos altos dessa abordagem incluem a análise das interações humanas sob vigilância constante, remetendo ao conceito orwelliano de “Big Brother”, e como essas interações são influenciadas pela presença onipresente das câmeras, algo que exploramos através do efeito Ralph Form. A edição de 2021 do BBB, em particular, proporcionou um cenário fértil para essas reflexões devido ao contexto pandêmico, ao elenco diversificado e aos altos índices de audiência.

A representatividade no elenco e a identificação do público com os participantes permitiram uma discussão aprofundada sobre temas como racismo, empoderamento feminino e a cultura do cancelamento. A trajetória de Juliette Freire e a polarização entre “heróis” e “vilões” no programa evidenciam como o público reage às dinâmicas de poder e justiça, analisadas pelas ideias de Michel Foucault e Djamila Ribeiro.

Foucault destacaria como o programa usa a vigilância constante para moldar o comportamento dos participantes e influenciar o público, refletindo dinâmicas de poder na sociedade. Já Djamila Ribeiro enfatiza a importância da representatividade para desafiar o racismo estrutural e promover discussões sobre empoderamento feminino.

Em conclusão, vimos que as interações humanas, quando observadas em um ambiente controlado e sob constante vigilância, refletem principalmente na maneira como reagimos a situações de conflito e pressão. Por fim, a análise desses aspectos nos leva a refletir sobre a natureza humana, a influência do ambiente na formação dos comportamentos e as complexidades das relações sociais em um cenário de competição e exposição pública.

Referências

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Gshow. (2021). Reta final BBB21: Fogo no parquinho! Relembre as tretas que agitaram a casa mais vigiada do Brasil. Gshow. https://gshow.globo.com/realities/bbb/bbb21/casa-bbb/noticia/reta-final-bbb21-fogo-no-parquinho-relembre-as-tretas-que-agitaram-a-casa-mais-vigiada-do-brasil.ghtml

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