Desvendando a Caixa Preta: Tecnologia, Cultura e a Filosofia de Vilém Flusser

Jéssica Guerreiro
Semiosis
Published in
11 min readMay 16, 2024

A essência da fotografia e o seu impacto na perceção humana e na cultura leva-nos a um estudo interessante a ser analisado, a partir das ideias do filósofo, a relação entre a tecnologia e a cultura, especialmente no contexto da sociedade contemporânea.

Flusser, filósofo checo-brasileiro, conhecido pelas suas contribuições para a filosofia da comunicação e dos media, escreveu o livro “ A Filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma Futura Filosofia da Fotografia”.

Vilém Flusser, filósofo
Filósofo Vilém Flusser

Que efeito terá a tecnologia na forma como percebemos o mundo e nos relacionamos com ele?

Ao analisar os avanços tecnológicos, como a internet, as redes sociais e a inteligência artificial, podemos verificar que estes têm vindo a moldar a nossa experiência humana, as nossas interações sociais e, até mesmo, a nossa compreensão da realidade. Vilém Flusser abordou, de certa forma, estes temas relacionados com a linguagem das imagens através da fotografia, a comunicação mediada por dispositivos eletrônicos e a natureza da sociedade pós-industrial.

Debruçando-nos um pouco mais sobre o seu livro, o filósofo aborda questões que vão desde a técnica fotográfica até às implicações existenciais e epistemológicas da imagem fotográfica. Flusser argumenta que a fotografia representa um novo tipo de linguagem, diferente da escrita tradicional e da fala. A ideia era que o mundo se codificasse em imagens, criando um novo significado de comunicação, a proposta de uma nova “gramática visual”, deixando de lado as formas tradicionais, que influenciariam a nossa perceção da realidade.

Flusser examina a transformação da comunicação na era digital, particularmente a passagem do texto para a imagem. Ele argumenta que essa mudança altera radicalmente a forma como o ser humano pensa. A leitura de textos exige uma sequência linear e uma estrutura lógica, enquanto que a interpretação de imagens é muito mais imediata e emocional. Ao analisar as implicações dessa transição podemos entender que os modos de pensamento e comunicação estão a evoluir, cada vez mais, através da era digital.

Livro “Filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma futura filosofia da fotografia”

Ao se entender as regras impostas na utilização da “caixa preta”, ou para melhor entendimento, da câmara fotográfica, os fotógrafos começam a ter novas formas de expressão e significado. Isto leva a que a sua compreensão comece a ser mais crítica, na direção fotográfica, e comecem a explorar as suas potencialidades expressivas.

Com a fotografia acabamos por discutir, assim como Flusser, a importância de se ter uma consciência crítica no que toca a relação entre a tecnologia e a necessidade de uma abordagem reflexiva do seu uso e impacto, na vida da sociedade. Isto porque, a fotografia tanto tem o poder de transformar a realidade, ao criar imagens que podem ser manipuladas, e interpretadas de maneiras infinitas, como em capturar momentos únicos de recordação pessoal, que são, muitas das vezes, guardados eternamente. A realidade é que a nossa interpretação/compreensão sobre o que no mundo é cada vez mais mediado por essas representações tecnológicas acabam por nos fazer questionar noções de verdade e objetividade.

A “Caixa Preta”, no sentido literal, a forma como eram as câmaras fotográficas

A metáfora “caixa preta” para descrever a câmara fotográfica, enfatiza os processos técnicos, muitas vezes desconhecidos para quem utiliza, que moldam a criação da imagem. A ideia que se quer ressaltar é que a relação que o fotógrafo tem com o processo fotográfico é, cada vez mais, determinada pelas capacidades e limitações que o mesmo tem com a tecnologia, e não pela sua visão/intenção no que quer transmitir através da sua obra. O filósofo encontra na fotografia, não só um meio com muita potencialidade, mas também a possibilidade de liberdade criativa.

A maioria das pessoas utiliza, hoje em dia, os smartphones, os computadores e outros dispositivos eletrônicos sem compreender completamente o seu funcionamento interno. Com a fotografia, temos a capacidade de explorar como a escuridão tecnológica afeta a autonomia e a capacidade crítica dos indivíduos na era digital.

Para Flusser, as imagens produzidas, pelos diferentes tipos de aparelhos, não apenas representam a realidade, como a reconfiguram, o que acaba por influenciar a nossa compreensão e interação. Ao estudar fotografia, podemos explorar como os diferentes tipos de imagem: fotografia, vídeo, cinema; reconfiguram a nossa perceção do tempo e do espaço, e como estas se diferenciam das imagens tradicionais: pintura e escultura.

Finalmente, Flusser surgiu com um novo conceito de humanidade, este emerge da relação, cada vez mais íntima, entre os seres humanos e a tecnologia. Ele propõe que a integração da tecnologia na vida humana poderia levar a uma nova forma de existência, onde as distinções entre o natural e o artificial se tornam equiparáveis. Este tema pode ser explorado através da lente da bioética, da cibernética e do transumanismo, que refletem sobre como as tecnologias emergentes estão a redefinir o que significa ser um humano.

Para melhor enquadrar este tema, nada melhor do que fotografias que relatam esse pensamento de Flusser, mediante a humanidade.

Fotografia de Paisagem

Foto de uma geleira, da série Gênesis, de Sebastião Salgado

Nesta imagem conseguimos retratar a natureza, ou uma paisagem, que através da ideologia de Flusser, relatado anteriormente, consegue-se analisar que esta imagem consegue transformar o conceito de natureza na cultura. A imagem fotográfica, ao capturar paisagens, muitas vezes codifica a visão do fotógrafo, que acaba por transformar a natureza num objeto cultural. Sebastião Salgado capturou esta bela fotografia, num recanto longínquo do planeta, com a ideia de realizar uma grande homenagem à natureza e, também, de forma a alertar e chamar a atenção do Homem, para as as contínuas agressões ao ambiente.

“Gênesis é sobre os primórdios, sobre um planeta intocado, suas partes mais puras, e um modo de vida tradicional que convive em harmonia com a natureza. Quero que as pessoas enxerguem o nosso planeta de outra forma, sintam-se comovidas e se aproximem mais dele”Sebastião Salgado

Fotografia Documental

Grávida a ser transportada, na Guerra entre Russia e Ucrânia, foto de Evgeniy Maloletka

Ao observar uma fotografia documental, esta pode ser vista tanto como uma ferramenta de registo histórico, como de manipulação da realidade. Esta imagem retrata Iryba Kalinima, uma grávida ferida, que estava a ser transportada para uma maternidade que tinha sido danificada, durante um ataque aéreo russo, em Mariupol na Ucrânia.

A verdade é que ao longo dos anos, a fotografia documental tem vindo a sofrer alterações consideráveis, porque onde antes a fotografia retirada a um monumento histórico era considerada uma fotografia documental, hoje em dia tem se vindo a ilustrar, cada vez mais, em cenários de Guerra, pois, é uma forma importante de arte e comunicação visual. Também tem sido muito utilizada como forma de conscientização social e política, onde acabam por levantar questões sobre problemas sociais e ambientais que muitas vezes são ignorados. Seguindo o pensamento do filósofo a intenção do fotógrafo e o enquadramento escolhido são cruciais, para determinar a narrativa a que a imagem está ligada.

Fotografia Publicitária

Pessoas, Poder: Documentando protestos desde 1957, foto de World Press Photo

Podemos analisar as fotografias como sendo criadas com o propósito explícito de influenciar o comportamento e as emoções do público, pensamento inerente de Flusser. Como é o caso das imagens publicitárias, que são projetadas para seduzir e manipular, utilizando técnicas visuais que transmitem mensagens específicas.

Esta é uma delas, que visa conectar o mundo a histórias que importam. Cada vez mais, é necessário apoiar as condições de liberdade de expressão, a liberdade de investigação e a liberdade de imprensa. Apresentar imagens de protestos e poder popular, consegue incentivar, a quem as vê, a lutar por um direito, muitas vezes comum. As transformações tecnológicas acabam por dar ênfase a recursos visuais, que os torna mais importantes nas comunicações atuais.

Fotografia de Retrato

Foto de duas mulheres imigrantes, Êxodos, foto de Sebastião Salgado

Duas mulheres abatidas pelo tempo frio, que seca a pele, e pelo cansaço, transmitido através do seu olhar pesado e das olheiras profundas. Pouco se sabe sobre elas, apenas que são trabalhadoras migrantes de gerações distintas e que carregam na fisionomia um ar de exaustão. O facto do fotógrafo, Sebastião Salgado, também ser um imigrante fez com que se tivesse estabelecido uma certa cumplicidade com estas senhoras, fotografadas para o projeto Êxodos.

Em retratos, Flusser investiga essa relação que se obtêm entre ambas as partes, assim como a representação da identidade. Ao fazer uma análise, podemos entender que a fotografia de retrato pode ser vista como uma tentativa de capturar a essência de uma pessoa, mas também pode ser uma forma de objetivação.

Fotografia Artística

Pan-African Photojournalism and Its Positions, foto de World Press Photo

A fotografia artística desafia os limites entre arte e técnica. Os fotógrafos artísticos exploram a estética e a composição para criar imagens que provocam uma reflexão e, também, levantam questões do porquê que estas ultrapassam a reprodução da realidade.

A imagem fala por si, não existem limites, não ganha mérito quem desiste à primeira, mas sim quem persiste e corre atrás dos seus sonhos, mesmo que por vezes, a vida nos pregue partidas. A partir do pensamento de Flusser, relativamente à estética das fotografias, é fácil concluir que esta captura está muito bem conseguida.

Fotografia de Jornalismo

Confrontos em Londonderry, Irlanda do Norte, foto de Hanns-Jörg Anders

Foto retirada em 1969, quando Londonderry foi confronta pelas tropas britânicas com gás lacrimogêneo. Esta jovem utilizava essa máscara a fim se se proteger dos conflitos causados. O facto do fotógrafo ter capturado esta fotografia com a frase “queremos paz”, escrita na parede, faz com que a imagem tenha mais sentido ao que se quer transmitir, chama mais à atenção, complementa informativamente, ancoram significados e ajudam a direcionar a interpretação de quem a vê, a analisar melhor e até a comentar.

A fotografia de jornalismo como uma prática que deve equilibrar a objetividade e a narrativa, que segue o pensamento do filósofo, pelo facto das fotografias falarem por si. Contudo, apesar da aparência e da neutralidade, as fotos jornalísticas são mediadas por escolhas editoriais e intencionais.

Fotografia de Moda

Exemplo de fotografia de moda de beleza, foto retirada de Insta Arts

A abordagem destas fotos é completamente diferente, pois é centrada na beleza da modelo, onde o fotógrafo se concentra no rosto, pele e na maquilhagem, tendo que trabalhar em colaboração com os maquilhadores para destacar a beleza da modelo. É necessário trabalhar os pontos de luz e a sombra, sem exagerar na maquilhagem, porque o que importa é mesmo preservar a bela natural da modelo. Este gênero de fotografias é muito utilizado em anúncios de produtos de beleza e editoriais de moda.

Este tipo de fotografia é explorado como um campo onde a imagem é manipulada para criar ideais de beleza e estilo. Se formos seguir as ideologias do filósofo, a fotografia de moda pode ser vista como uma construção cultural que reflete e molda os padrões sociais.

Fotografia Amadora

Exemplo de uma fotografia amadora, foto de Lucio Maeda

Normalmente tirada por qualquer tipo de câmera, mas por pessoas que não têm como atividade ou trabalho principal a fotografia. Um fotógrafo amador realiza essa atividade por divertimento e muitas vezes apresenta fotografias com menos qualidade do que a de um profissional. De certa forma, as pessoas acabam por capturar estas fotos para que determinados momentos não caiam em esquecimento e fiquem guardados em algum lado.

Também se pode debater, consoante os princípios de Flusser, sobre a fotografia amadora, no sentido em que a democratização das câmeras fotográficas e a facilidade de uso têm a capacidade de transformar a produção de imagens numa atividade quotidiana e acessível a todos. Isso altera a relação das pessoas com a imagem e a memória.

Fotografia Científica

Descarga atmosférica (Relâmpago) em área urbana, foto de Artur Moes

As fotografias científicas, ou de contexto ambiental retratam registos de temas raros, rápidos ou muito difíceis de serem observados a olho nu, como é o caso do exemplo da fotografia anterior. Além disso, registram aspectos físicos e ecológicos de ambientes naturais e, também, aspetos culturais e antropológicos.

No contexto da fotografia científica, examinamos como estas imagens são utilizadas para documentar e interpretar fenômenos naturais. Em análise, essas fotografias são ferramentas para a construção do conhecimento, mas também estão sujeitas à interpretação humana, seguindo os conceitos do filósofo.

Selfies e Fotografias de Redes Sociais

Passagem de ano em Paris, 2024, foto retirada das redes sociais

Esta fotografia tornou-se viral, pela captação, de certa forma assustadora, deste momento de contagem decrescente para a entrada no ano de 2024, na Avenida Champs Elysée, em Paris. Infelizmente isto é cada vez mais comum nos dias hoje, este, como tantos outros momentos que poderíamos abordar, é um dos momentos mais emotivos do ano, em que muita gente aproveita para abraçar e celebrar, perto dos seus amigos ou familiares, a entrada de mais um ano. Contudo, não foi bem o que aconteceu na Champs Elysée. Muitos, ou melhor dizendo, a maior parte dos presentes preferiu filmar ou fotografar o momento através das câmeras dos seus smarthphones. Isto demonstra a influência da internet, da tecnologia e das redes sociais na forma como vivemos, em momentos importantes.

Embora Fulsser não tenha abordado diretamente as selfies, as suas ideias podem ser aplicadas para entender como a proliferação das câmeras nos smarthphones e as redes sociais alteraram a produção e o consumo de imagens. Hoje em dia, a prática de tirar selfies pode ser vista como uma forma de autorrepresentação ou de narcisismo tecnológico.

Conclusão

Flusser acaba por discutir a forma como a fotografia influencia a cultura e a sociedade, argumentando que esta desempenha um papel central na construção da memória, da história e da identidade humana. A fotografia, portanto, não é apenas uma questão técnica ou estética, mas uma força cultural que molda a maneira como nos entendemos e como entendemos o mundo ao nosso redor.

Ao considerar todas as fotografias apresentadas, através das diversas categorias, podemos compreender melhor as ideologias de Vilém Flusser e as suas interações complexas entre tecnologia, cultura e a produção e consumo de imagens na sociedade contemporânea.

Esta análise abre caminho para um futuro estudo mais amplo sobre a natureza da cultura contemporânea, os desafios técnicos e existenciais que enfrentamos no mundo digital, assim como, as suas possibilidades de uma nova forma de consciência emergente em resposta às transformações tecnológicas.

Webgrafia

Arts, I. “Fotografia Documental e o registro da realidade”. [ Insta Arts] https://instaarts.com/fotografia/fotografia-documental/

Flusser, V. (1985). “A Filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma Futura Filosofia da Fotografia”. [Cidade Futura] Filosofia da Caixa Preta (cidadefutura.com.br)

Fuks, R. “Sebastião Salgado: 13 fotos impactantes que resumem a obra do fotógrafo”. [Cultura Genial] https://www.culturagenial.com/fotos-sebastiao-salgado/

Photo, W.P. [World Press Photo] https://www.worldpressphoto.org/

--

--