Isto é a América, mas só para alguns.

Teresa Alexandre
Semiosis
Published in
10 min readMay 13, 2023

No dia 5 de maio de 2018, Childish Gambino lançou a sua música This is America, acompanhada pelo seu videoclipe que gerou bastante discussão assim como polémica pela sua abordagem em relação à segregação racial, às leis de controlo (ou falta dele) de armas e sobre o preconceito vivido na comunidade negra.

A marginalização da comunidade afro-americana na América faz parte de uma longa batalha que dura décadas. Figuras e ativistas negros proeminentes em todo o país têm tentado consciencializar as pessoas sobre o esforço atual da comunidade negra, que se reflete principalmente por meio da fala, da conversa e da arte. Em relação a este último, a música é um meio popular para transmitir essa mensagem à sociedade. Muitos músicos negros modernos demonstraram publicamente o seu apoio a movimentos contra a discriminação por meio das suas obras artísticas.

Donald Glover, também conhecido como Childish Gambino, é um músico negro que usa a sua música como ferramenta política. A persona Childish Gambino é um herói romântico e marxista decorrente da experiência de Glover como um afro-americano dentro dos limites culturais, socioeconómicos e artísticos dos Estados Unidos contemporâneos. À semelhança de outros rappers, a criação de Childish Gambino, uma figura tão complexa, está enraizada principalmente na turbulência histórica entre os africanos escravizados e o estado racista e hegemónico que os mercantilizou. Entendendo “raça” como uma construção social que está diretamente associada ao processo histórico-social, é possível afirmar que todas as pessoas são racializadas, mas que existem esferas distintas de “racialização”. Por um lado, há uma esfera que explicitamente aponta pessoas racializadas (por exemplo, pessoas negras e indígenas) e outra esfera que não é marcada quotidianamente por processos que visibilizam a sua raça de forma discriminatória, pois a sua “raça” é vista como universal e dominante. Na sua arte, Glover fala para ambos os grupos tendo pessoas a identificar-se com a sua música pois passam pelas mesmas dificuldades ou consciencializando os restantes para que estes ajudem a fechar o espaço que os divide.

Imagem 1 — Frame do videoclipe com texto.

O tema “This is America” e o seu videoclipe tornaram-se num fenómeno da noite para o dia. No vídeo, Childish Gambino personifica os Estados Unidos da América, num papel complexo ele pratica desde a violência ao uso de entretenimento como uma ferramenta de distração, interpretando-o caricatamente mas também de forma real. Na primeira cena do vídeo mostra-nos um homem negro a caminhar até uma guitarra que está pousada em cima de uma cadeira num armazém vazio; quando Gambino entra em cena, ele está de costas e veste apenas umas calças cinzentas e sapatos bege, comummente utilizadas como uniforme da Confederação, Gambino traz também duas correntes de ouro ao pescoço apresentando um duplo significado: as correntes que os escravos eram forçados a usar e também como símbolo do consumismo americano (porquê ter apenas uma quando posso ter duas?). Ele dança com movimentos corporais e faciais exagerados enquanto se aproxima do homem que vimos inicialmente, que já não tem a guitarra mas sim um saco em torno da sua cabeça e que segundos depois Gambino revela uma arma e dispara, dando um tiro na cabeça do homem. Na primeira ponte da música o artista fala sobre como os mídia de entretenimento servem como uma distração para os problemas reais do país.

“We just want the money (nós so queremos o dinheiro)

Money just for you (..) (dinheiro só pra ti)

(..) Girl, you got me dancin’ (Miúda, fazes-me dançar)

Dance and shake the frame” (Dançar e abanar a imagem)

A rapariga (girl) neste verso representa a América e a imagem (frame) representa injustiças da vida real que estão a acontecer. Abanar a imagem faz com que tudo pareça distorcido e mascare o que realmente se está a passar. O criador da série “Dear White People” Justin Simien reparou e associou os movimentos e expressões faciais de Gambino parecem ser baseadas em Jim Crow, uma caricatura criada por Thomas Darthmouth Rice, o ator que popularizou a prática de blackface, onde um ator branco se pinta de preto para parecer afro-americano com o objetivo de alastrar o preconceito e o racismo vivido na época (entre os anos 1850 e 1950).

Imagem 2 — A comparação entre Gambino e Jim Crow.

Muitos repararam que, para além de danças virais da internet, uma dança especifica retratada no vídeo é o Gwara Gwara, uma dança com origem na África do Sul. Isto pode ser uma referência às semelhanças do racismo americano e do apartheid sul-africano. No entanto, outros interpretam a dança como uma forma de sobreviver: os bailarinos dançam com Gambino, que está a personificar a América, e estes nunca sofrem nenhum ferimento, o que é uma referência à maneira como os Estados Unidos da América tem a tendência de aplaudir a cultura negra, muitas vezes apropriando-a, enquanto viram as costas aos problemas que estes enfrentam.

No entanto, quer a dança seja uma distração, utilizada como mecanismo de defesa ou para viralizar na internet, os movimentos do artista são uma literal e figurativa distração para o que se está a passar no resto do videoclipe.

Os únicos momentos em que conseguimos afastar a nossa atenção dos movimentos hipnóticos de Childish Gambino é quando os tiroteios acontecem. Estes tiroteios reconhecem os problemas que são enfrentados atualmente na América em relação à violência com armas e estes surgem, estrategicamente, quando estamos a começar a entrar novamente na música e o som do tiro serve para nos manter alerta: cuidado, pois podes ser o próximo. O segundo verso da música começa com um coro de igreja que harmoniza num tom feliz até serem alvos de Gambino que, muito importante a não esquecer, representa a América, e torna-se impossível não comparar esta cena em específico ao massacre realizado numa igreja em Charleston na Carolina do Sul, que, após o julgamento do atirador, foi confirmado que o crime foi racialmente motivado. No entanto, um momento de simbologia que pode ser mais dificilmente notado está no cuidado em que as armas são tratadas após serem utilizadas para cometer um dos piores crimes possíveis. No vídeo é possível ver as armas a serem cuidadosamente envolvidas num pano vermelho, o que é um simbolismo para o quanto a América republicana valoriza mais as suas leis de armas do que as vidas que estas tiram.

Imagem 3 — Exemplo de uma das expressões exageradas por Gambino.

Enquanto toda esta violência está a decorrer no armazém, que se parece estranhamente com uma prisão, em que se situa o videoclipe, a letra cantada por Gambino é a seguinte:

“This a celly, (Isto é uma cela)

Thats a tool.” (Isso é uma ferramenta)

Esta letra tem um duplo significado: primeiro como os telemóveis (com o uso da palavra celly, o artista utiliza a polissemia entre jail cell (cela de prisão) e cell phone (telemóvel), podem ser utilizados para documentar toda esta brutalidade ou como cela de prisão, uma ferramenta para manter afro-americanos num ciclo de encarceramento.

Nas últimas cenas do vídeo é possível ver Childish Gambino e a artista SZA, sozinhos, sentados em cima de carros antigos que estão parados, o que nos dá a entender que a falta de progresso levou ao ponto em que ainda estamos: estagnados. O vídeo termina com Gambino a correr como se a sua vida dependesse disso, quase como se este tivesse escapado do “feitiço” em que estava sob pela América e está a tentar fugir.

“A ideia de um progresso da humanidade na história é inseparável da ideia da sua marcha no interior de um tempo vazio e homogéneo. A crítica da ideia de progresso tem como pressuposto a crítica da ideia dessa marcha” (Walter Benjamin, 1994).

A partir desta obra musical de Donald Glover é possível criar certos paralelismos com a obra filosófica de Achilles Mbembe “Crítica da Razão Negra”. Achilles Mbembe é um filósofo, teórico-político, historiador, intelectual e professor universitário de Camarões nascido no ano de 1957 e uma das suas obras mais influentes é, como referido acima, a “Crítica da Razão Negra”. É um livro que discute a questão do racismo e da negritude a partir de uma perspetiva filosófica e histórica, abordando temas como a escravidão, a colonização e as formas contemporâneas de opressão racial.

Imagem 4 — Achilles Mbembe.

A obra é considerada uma importante contribuição para os estudos sobre a questão racial e as suas implicações políticas, sociais e culturais. Imediatamente, ao ler o título da obra não há como não reparar na semelhança à obra do filósofo alemão Immanuel Kant “Crítica da Razão Pura”, que foi uma das obras centrais do Iluminismo, lançada no ano de 1781. Ao escolher este título, Mbembe tem como objetivo inverter a narrativa da obra de Kant na medida em que desenvolve o que seria o “dever negro do mundo”, ou seja, a ideia de que O Negro já não se relaciona apenas às pessoas de origem africana do primeiro capitalismo. Para Mbembe, no contexto de avanço do neoliberalismo atual (que considera como uma “religião animista”), O Negro designa toda uma parcela da humanidade explorada pelo capital, ou seja, há uma universalização da condição negra, onde os riscos sistémicos aos quais somente os escravos negros foram expostos passam a tornar-se quando não a norma, ao menos a situação de grande parte dos grupos subalternos. Que o termo Negro seja destacado, na grande maioria do texto, em itálico e maiúsculo, só ressalta a amplitude do projeto teórico de Mbembe. Importa aqui uma escrita que reflita o caráter emergente do tempo de agora, com os seus riscos e potenciais que abrem possibilidades únicas ao pensamento crítico ou seja, quando Mbembe utiliza o termo O Negro, que pertence à fase do primeiro capitalismo, não é apenas para questionar o caráter “inventado” do mesmo. Mas é uma forma de intervir ético e politicamente no tempo histórico, de modo a captar uma força “capaz de transformar e assimilar o passado, de curar as mais terríveis feridas, de reparar as perdas, de fazer uma história nova com acontecimentos antigos” (MBEMBE, 2014)

A escrita do autor faz com que pensemos no outro lado, no que significa ser O Negro: “o negro é uma categoria social que se confunde com conceitos de escravo e de raça (…) é um conceito que designa a imagem de uma existência subalterna e de uma humanidade castrada. Essa perceção econômica da questão racial tem início na fase mercantilista do capitalismo (quando o negro é transformado em mercadoria) e perdura no neoliberalismo. O termo “negro” foi inventado para significar exclusão e em momento algum esteve dissociado da categoria de escravo (…) “Negro” é aquele que vemos quando nada se vê, quando nada compreendemos e, sobretudo, quando nada queremos compreender. Essa invisibilidade está no cerne do racismo, que, além de negar a humanidade do outro, se desenvolve como modelo legitimador da opressão e da exploração. Mais do que isso, exercício máximo do biopoder, o racismo representa a escolha de quem deve ser eliminado, numa morte que pode ser tanto física quanto política ou simbólica”

Imagem 5 — Frame do videoclipe da música “This is America” de Childish Gambino.

Embora a música “This is America” e o livro “Crítica da Razão Negra” abordem a questão racial a partir de perspetivas distintas, ambos compartilham o objetivo de criticar as formas de opressão e exclusão que se perpetuam na sociedade atual. Enquanto a música de Childish Gambino aborda a violência policial e o racismo nos Estados Unidos da América a partir de uma abordagem mais visceral e estética, Mbembe propõe uma reflexão filosófica e histórica sobre as origens e as consequências do racismo no mundo contemporâneo.

Além disso, ambos também propõem uma reflexão sobre as possibilidades de resistência e transformação face às estruturas de opressão racial. Tanto a música quanto o livro destacam a importância de se criar narrativas e formas de ação que possam desafiar a lógica do racismo e da dominação. Outra comparação possível entre a música “This is America” e o livro “Crítica da Razão Negra” é que ambos destacam a importância da cultura na construção de identidades e na luta contra o racismo. Na música, Childish Gambino faz referências a diversos elementos culturais afro-americanos, como o trap e o gospel, para mostrar como essas expressões culturais são ao mesmo tempo uma forma de resistência e de sobrevivência face à opressão racial. Já Mbembe, na sua obra, propõe uma crítica à conceção eurocêntrica da razão e da cultura, argumentando que é preciso reconhecer a contribuição das culturas negras e não-ocidentais para a construção da humanidade e para a criação de alternativas à lógica racista e colonial.

Assim, tanto “This is America” quanto “Crítica da Razão Negra” evidenciam a importância de se valorizar e respeitar as diferentes culturas e identidades que compõem a nossa sociedade, e de se criar espaços de diálogo e de troca que possam contribuir para a construção de uma sociedade mais plural e igualitária.

Em suma, tanto “This is America” quanto “Crítica da Razão Negra” são obras importantes e necessárias para se compreender e enfrentar o problema do racismo na nossa sociedade.

Referências:

Gambino, Childish. “Childish Gambino — This Is America (Official Video).” YouTube, por Donald Glover, 5 de maio 2018, https://www.youtube.com/watch?v=VYOjWnS4cMY.

Leight, Elias. “How Donald Glover Charted His Own Path to Hip-Hop Stardom.” RollingStone, 25 de junho 2018, https://www.rollingstone.com/music/musicnews/how-donald-glover-charted-his-own-path-to-hip-hop-stardom-628594/.

“This Is America” Is Deeper Than You Think: Music Videos Explained.” YouTube, publicado pelo canal The Pop Song Professor, 8 de maio 2018, https://www.youtube.com/watch?v=v9KyZdZQg-0.

Mbembe, A. Crítica da Razão Negra, 2014

Teresa Alexandre, 67368.

Filosofia da Comunicação, Ciências da Comunicação.

--

--