“O Grande Ditador” — O Fascismo Pelos Olhos de Charlie Chaplin

Luana Piegas
Semiosis
Published in
9 min readMay 22, 2024
Fonte: AdoroCinema

“O Grande Ditador” é uma sátira aos regimes totalitários da época. Na perspetiva filosófica, oferece uma reflexão sobre o fascismo e o poder destruidor.

A 15 de outubro de 1940 era lançado nos Estados Unidos o filme “O Grande Ditador”, escrito, produzido, dirigido e protagonizado por Charlie Chaplin, um dos maiores nomes da história do cinema. A obra tornou-se um clássico, não apenas por ser o primeiro filme falado do comediante, mas também pela sua crítica ousada aos regimes totalitários da década de 1930, num momento em que os Estados Unidos ainda estavam neutros na Segunda Guerra Mundial.

A narrativa começa durante a Primeira Guerra Mundial, onde um soldado judeu do exército de Tomânia, outrora barbeiro, perde a memória após um acidente de avião e é internado num hospital por vários anos. Durante esse tempo Adenoid Hynkel ascende ao poder como ditador de Tomânia. Ao retornar à sua vida no gueto, o barbeiro não compreende a gravidade da situação política do seu país, sofrendo com a opressão do regime. Paralelamente, a trama segue Hynkel nos seus planos de conquistar Osterlich e na busca de aliança com Benzino Napaloni. No clímax do filme, a semelhança entre o judeu e Hynkel leva a uma troca de identidades, levando o barbeiro a discursar no lugar do ditador.

Fonte: UOL

Afinal, qual é a importância deste filme?

Há diversos aspetos que tornam “O Grande Ditador” uma obra extremamente interessante, conferindo-lhe a posição como um dos melhores filmes de todos os tempos. O primeiro e o mais óbvio é a utilização do humor e da sátira para ridicularizar o fascismo. Através das várias cenas humorísticas, o filme pinta Adenoid Hynkel (paródia de Adolf Hitler) e Benzino Napaloni (paródia de Benito Mussolini) como chefes de estados poderosos que, na realidade, são fracos e pouco inteligentes. Já a sátira está presente nos nomes dos personagens e locais, por serem uma paródia dos nomes de figuras e nações reais da Segunda Guerra Mundial. Para além dos nomes dos ditadores que já foram referenciados, Tomânia é um trocadilho com o nome Germânia, referindo-se à Alemanha; Osterlich refere-se a Österreich, o nome alemão para Áustria; e Bactéria é uma sátira à Itália fascista.

A interpretação dupla de Chaplin, que assume os papéis de Hynkel e do barbeiro judeu, adiciona outra dimensão humorística ao filme. A enorme diferença nas personalidades dos dois personagens contrasta com a sua semelhança física, que resulta em situações cómicas e numa troca de identidades crucial para a narrativa.

Fonte: The Telegraph

A inovação técnica e o legado da obra contribuem para a sua complexidade e impacto visual. “O Grande Ditador” transcende o seu tempo, recordando o espetador de um período sombrio na história da humanidade e consagrando a arte como uma poderosa ferramenta para influenciar e refletir sobre questões políticas e humanitárias.

Para além de todos estes aspetos, o filme levanta inúmeras questões filosóficas sobre poder, desumanização e a natureza do mal. Neste texto, focar-nos-emos na relevância filosófica da obra, analisando-a sob essa perspetiva.

Teorias

Para começar esta análise, é essencial compreender as teorias do filósofo que irá fundamentar esta abordagem. A análise filosófica de “O Grande Ditador” será dividida em dois temas principais: a desumanização do judeu e a crítica ao fascismo. Ambos os tópicos serão examinados através da perspetiva de Marcia Tiburi, conforme o seu livro “Como Conversar com um Fascista”.

Fonte: Mídia NINJA

Márcia Tiburi é uma filósofa, escritora e professora universitária brasileira, que ganhou fama ao participar em diversos programas de televisão nos anos 2000. Conhecida pela sua atuação em várias áreas do pensamento crítico contemporâneo, Tiburi aborda temas como a ética, estética, política e feminismo. Na obra “Como Conversar com um Fascista”, a autora traz uma perspetiva atual para o debate sobre o autoritarismo.

Desumanização do judeu

Para Márcia Tiburi, um dos pilares do fascismo é a desumanização do outro. O fascista cria e alimenta a ideia de um inimigo imaginário, frequentemente baseado em características raciais ou ideológicas, que deve ser combatido. É a partir deste ódio ao inimigo que nasce a “necessidade” de o negar e de o eliminar, apagando a sua humanidade. A autora descreve este processo de desumanização, afirmando que “O outro (seja o povo, seja o próximo, seja a cultura alheia, seja a natureza ou a sociedade, seja o outro como uma “voz” que não se quer ouvir) é apagado no processo mental […].” (Tiburi, M. 2015, p. 29) A necessidade de eliminar o outro é uma estratégia para sustentar e justificar práticas autoritárias e violentas.

Fonte: BAMPFA

Crítica ao fascismo

De acordo com a filósofa, o discurso de ódio e a manipulação desempenham um papel central na propagação da ideologia fascista. Observa que“O autoritarismo depende da sua repetibilidade. Ele é uma máquina de produção de inconsciência, de uma subjetividade deformada pelo discurso. Daí a importância da falação odiosa.” (Tiburi, M. 2015, p. 43) O discurso repetitivo e odioso consolida o poder do regime, manipulando os seus ouvintes ao explorar os seus medos e inseguranças. Os ditadores costumam utilizar narrativas sensacionalistas para desencadear o medo e a raiva, fundamentando as suas ideias em argumentos irracionais e emocionalmente carregados, de forma a justificar a opressão do “outro”. Esta estratégia não reforça apenas o controlo autoritário, mas também desumaniza aqueles que são “diferentes”, perpetuando a ideologia fascista.

Um dos principais focos da obra “Como Conversar com um Fascista” é a importância da resistência ao autoritarismo através da consciencialização e do diálogo. A filósofa argumenta que educar as pessoas para que questionem os discursos de ódio e as práticas fascistas é essencial, confrontando diretamente essas ideologias. Ao dialogar com o fascista, abordando as suas ideias e atitudes, expondo a sua falta de conhecimento e fornecendo-lhe informações corretas, provoca-se uma desconstrução das suas crenças e convicções. Tiburi afirma que “Dialogar com um fascista, e sobre o fascismo, forçar uma relação com um sujeito incapaz de suportar a diferença inerente ao diálogo, é um ato de resistência.” (Tiburi, M. 2015, p. 17) Este processo de confronto e educação é visto como uma forma de resistência política, que contribui para uma sociedade mais justa e informada.

Fonte: Daniel Melvill Jones

Análise filosófica

Tendo em conta as teorias da filósofa e a narrativa do filme, passemos então à análise filosófica de “O Grande Ditador”.

O filme exemplifica a “desumanização do outro”, especialmente através da jornada do barbeiro judeu. Sob o regime autoritário de Hynkel, a comunidade judaica que vive no gueto é alvo de discriminação e perseguição por partes dos soldados, sendo-lhes retirado a sua dignidade e humanidade. Aqui identifica-se uma representação clara do processo de desumanização promovido pelo fascismo. Adenoid Hynkel (o fascista) cria um inimigo imaginário (a comunidade judaica) e alimenta o ódio em relação ao “outro”.

No seguinte vídeo acompanhamos o barbeiro, acabado de sair do hospital. Sem ainda se aperceber da nova realidade política de Tomânia, tenta limpar um vidro com a palavra “JEW” (JUDEU), e é abordado pelos soldados de Hynkel, que rapidamente partem para a violência quando afrontados. Esta é uma clara crítica ao tratamento desumano para com os judeus (de uma forma bastante cómica, como não podia deixar de ser).

Como já fora mencionado, Márcia Tiburi observa que o autoritarismo depende da repetição de discursos odiosos para exercer controlo sobre a população. É por meio da sátira que Chaplin expõe o quão absurdos eram a postura e discursos de Hitler, ao representar Hynkel como uma pessoa extremamente dramática com comportamentos exagerados e infantis:

É através dos discursos de ódio e da manipulação que os líderes fascistas exploram os medos e inseguranças do povo, cultivando o medo e a divisão. No filme, há uma cena onde o secretário do interior e ministro da propaganda Garbitsch faz um discurso que revela vários ideais do fascismo:

“Hoje, a democracia, liberdade e igualdade são palavras que enganam as pessoas. Nenhuma nação pode progredir com elas. Elas atrasam-nos. Então decidimos aboli-las. De hoje em diante, todos deverão servir cegamente ao Estado. Aos que recusam fiquem avisados que: Os judeus e os não-arianos perderão os direitos civis. São seres inferiores, e, portanto, inimigos do Estado. É dever do verdadeiro ariano odiá-los e menosprezá-los.”

A obra de Charlie Chaplin e as reflexões de Tiburi convergem na importância da resistência ao autoritarismo e do diálogo crítico como formas de combater o fascismo. Ao assumir a identidade de Hynkel, o barbeiro judeu faz um discurso em defesa da humanidade e da liberdade, afrontando a tirania e a desumanização. Este é um ótimo exemplo da resistência política de que a autora fala. Confrontar o fascista expondo as suas ideias e atitudes, é uma maneira de desconstruir estas crenças. Vejamos então o discurso final do barbeiro:

Uma componente essencial da resistência ao autoritarismo é a consciencialização. O barbeiro judeu utiliza (mesmo que inconscientemente) o discurso para despertar a consciência das massas, falando diretamente ao povo, passando uma mensagem clara:

“Nós queremos nos ajudar uns aos outros. O ser humano é assim. Nós queremos viver pela alegria de todos — e não pela miséria. Nós não queremos odiar e desprezar. Neste mundo à espaço para todos.”

Ao discursar, o barbeiro mostra uma faceta que o espetador não conhece. Confronta diretamente as ideologias fascistas ao desmascarar corajosamente os males do totalitarismo.

“A ganância envenenou as almas dos homens, encheu o mundo de ódio, levo-nos à miséria e ao massacre.” Então, o judeu faz um apelo para que se volte à humanidade “Soldados […] não se entreguem a estes homens artificiais! Homens máquina com mentes de máquina e corações de máquina! Vocês não são máquinas! Não são gado! Vocês são homens! Vocês têm o amor da humanidade nos vossos corações!”

Finalmente, de uma maneira poderosa e inspiradora, relembra a emoção do Homem . Pede ao povo para que não perca a esperança, e que lute por um futuro melhor.

“Vocês, o povo, têm o poder de fazer esta vida ser livre e bela, de fazer esta vida uma incrível aventura! Então, pela democracia, usemos este poder! Vamos nos unir!”

Todo este discurso revela a profundidade e importância do filme. Através do personagem do barbeiro judeu, Chaplin educa o povo e confronta diretamente a ideologia fascista com uma mensagem de esperança na humanidade. É um ótimo exemplo da resistência política que Tiburi defende na sua obra.

Fonte: Criterion Forum

Concluindo…

“O Grande Ditador” transcende a mera comédia para se tornar uma obra profunda e até filosófica, criticando os regimes totalitários da época e refletindo sobre as ideologias fascistas. Através da sátira e do humor, Charlie Chaplin expõe a fraqueza e irracionalidade dos ditadores que se escondem atrás da ilusão do grande poder.

Ao analisar filosoficamente este filme com base nas teorias de Márcia Tiburi, destaca-se a relevância contemporânea desta obra. A filósofa oferece uma lente através da qual podemos entender o funcionamento dos mecanismos dos regimes autoritários. Várias cenas no filme de Chaplin exemplificam perfeitamente estes conceitos, utilizando o humor como uma maneira de amenizar um assunto tão sério, evidenciando a genialidade do comediante.

A obra permanece um clássico na história do cinema, não apenas pelo seu valor artístico, mas também pela sua contribuição ao debate filosófico. Mostra que a área das artes pode servir como ferramenta para a mudança social e para educar os espetadores.

Fonte: MoMA

Referências bibliográficas

Tiburi, M. (2015). Como Conversar com um Fascista

Chaplin, C. (Diretor). (1940). O Grande Ditador [Filme]. United Artists

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