O poder do lucro desenfreado. “Lord of War” e a teoria do poder de Byung-chul Han

Filipe Pires
Semiosis
Published in
5 min readMay 9, 2024

O filme “Lord of War”, dirigido por Andrew Niccol, e a teoria do poder de Byung-chul Han oferecem uma visão abrangente das dinâmicas entre ética, moral e poder na sociedade moderna. O filme nos leva a uma viagem sombria pelo mundo do comércio de armas, explorando as consequências desumanas do lucro desenfreado. No entanto, a teoria de Han nos convida a refletir sobre os mecanismos subtis de poder que moldam as nossas sociedades e as nossas próprias identidades.

Para analisar o filme é preciso entender os principais aspetos da teoria. Este explora como o poder evoluiu nas sociedades modernas e enfatiza uma mudança da “sociedade disciplinar” para a “sociedade do desempenho”. A teoria recai também sobre o “poder negativo” e o “poder positivo”.

Comparação entre Sociedade Disciplinar e Sociedade do Desempenho.

A Sociedade Disciplinar é definida pelo exercício de controle repressor e normativo por parte de instituições como prisões, escolas e fábricas sobre os corpos e comportamentos. A ênfase está em obedecer e conformar-se.

A Sociedade do Desempenho: Evolui a partir da sociedade disciplinar. Nela, o controle é mais delicado e integrado internamente. As pessoas veem-se como empreendimentos e são motivadas a alcançar o máximo do seu potencial. O poder manifesta-se por meio da exploração pessoal e da necessidade de alcançar sucesso e desempenho.

O que são o poder positivo e negativo?

Poder negativo é aquele que censura, proíbe e reprime.

Poder positivo é aquele que estimula, inspira e utiliza, fazendo com que as pessoas procurem o melhor de si e se percebam como os donos do seu próprio destino.

A era atual é caracterizada pela cultura do esgotamento.

Neste contexto de alto rendimento, o excesso de otimismo resulta em cansaço e exaustão. As pessoas são levadas a crer que podem realizar tudo e, por isso, acabam a explorar-se ao máximo.

Além do mais existe uma exposição excessiva uma vez que a sociedade atual incentiva uma grande transparência e uma constante exposição, com a vida íntima sendo sempre mostrada e vigiada.

Com estes pontos da teoria em mente podemos passar para uma análise do protagonista Yuri Orlov.

Yuri atua como o seu próprio empreendedor:

Yuri Orlov considera-sei como um empresário bem-sucedido, utilizando ao máximo as suas habilidades para obter lucro no negócio de armas. Ele representa o indivíduo na sociedade contemporânea, que é encorajado a buscar a auto aperfeiçoamento e a buscar o sucesso a todo o custo.

Ele não é apenas controlado por leis ou moralidade (poder negativo); ao contrário, ele explora-se, alegando que as suas ações são uma forma de garantir a sua sobrevivência e prosperidade pessoal (poder positivo).

A exaltação do desempenho:

A história de Yuri mostra como a sociedade atual prioriza o sucesso e a eficiência em primeiro lugar. Ele transforma-se num ícone de conquista, sem considerar as implicações éticas e morais das suas decisões, evidenciando como a cultura do sucesso pode originar uma deterioração dos valores éticos e morais.

Transparência e Exposição:

A vida de Yuri é marcada por uma exposição contínua. Ele está constantemente sob vigilância, seja pelos governos, por outros traficantes de armas ou por suas próprias paranoias. Isso reflete a ideia de Han sobre a sociedade da transparência, onde a privacidade é mínima e a exposição constante.

A Sociedade do Cansaço:

Apesar de parecer bem-sucedido, Yuri é retratado como uma pessoa exausta e esgotada. A persistente tentativa de manter a sua empresa e evitar as implicações legais e éticas resulta em exaustão, ilustrando a sociedade do cansaço apresentada por Han.

Além do mais, uma cena específica do filme é destacada como um microcosmo das críticas sociais e filosóficas que ambos apresentam. O protagonista do filme, Yuri Orlov, se depara com crianças armadas lutando num conflito brutal durante uma negociação num país em guerra. O rosto de Orlov é captado pela câmara, mostrando uma combinação de raiva, culpa e desespero enquanto ele observa de perto os efeitos devastadores do seu comércio de armas.

Esta cena não apenas transmite a crítica social do filme, destacando como o comércio de armas e a desumanização que ele perpetua afetam as pessoas, mas também ressoa com a teoria do poder de Han. Como um traficante de armas poderoso, Orlov encarna a busca desenfreada por poder e lucro, ignorando a moralidade das suas ações. As crianças-soldados são as vítimas de um sistema que as explora em nome do poder e do dinheiro. Elas representam o ponto mais alto dessa desumanização.

Além disso, esta cena faz-nos pensar sobre o que é o poder na sociedade moderna. Vemos Orlov como um exemplo desta nova forma de poder, conforme Han sustenta que o poder se manifesta de forma difusa e internalizada em vez de coercitivo e centralizado. Ele funciona dentro de um sistema onde o egoísmo e o desejo de atingir metas são promovidos, e onde a violência e a destruição são consideradas apenas “efeitos colaterais” do jogo de poder.

Assim, ao examinar esta cena particular à luz do filme e da teoria de Han, temos uma reflexão profunda sobre os dilemas morais e éticos da era contemporânea. É uma convocação para uma análise crítica das nossas próprias sociedades e valores, bem como para a busca de opções para uma coexistência mais humana e ética. Esta cena serve como uma janela para as complexidades do poder e da moralidade e destaca a importância de discutir o que fazemos e buscar maneiras mais justas e humanas de organizar a sociedade.

Esta análise ajuda-nos a entender melhor o filme “Lord of War” e a teoria do poder de Byung-Chul Han. Ambos fazem-nos pensar sobre os padrões de poder e os valores que moldam a nossa sociedade e sobre as consequências morais das nossas escolhas. Eles desafiam-nos a optar por caminhos alternativos que promovam uma coexistência mais justa, humana e ética em vez de perseguir o poder e o lucro de forma cega.

Fontes:

Ebert, R. (2005, 16 de setembro). Lord of War- https://www.rogerebert.com/reviews/lord-of-war-2005

Han, B. (2015). A Sociedade do Cansaço. Editora: Relógio D’Água.

Han, B. (2016). A Expulsão do Outro. Editora: Relógio D’Água.

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