“One is not born woman, but becomes one”- Barbie, o filme.

Inês Pereira
Semiosis
Published in
7 min readJun 2, 2024

Barbie, um dos filmes que marcou o ano de 2023, trouxe às ruas um tema que por vezes fica adormecido, mas que nunca é esquecido pelas mulheres, o feminismo. O desenvolvimento das personagens Barbie e Ken ao longo do filme é o que traz a história e os ensinamentos da boneca mais famosa do mundo.

As bonecas Barbie atravessaram gerações, tendo como constante o símbolo de feminidade para qualquer pessoa que brincassem com elas. Qualquer um de nós durante o seu crescimento teve um momento em que começou a duvidar de tudo à sua volta, levando à reflexão dos conceitos mais básicos que conhecemos. E é exatamente nesse ponto que a pessoa que brinca com a Barbie se encontra no filme, transportando-nos de volta ao capítulo da reflexão que julgámos estar encerrado.

O filme Barbie trata-se de uma comédia satírica sobre o patriarcado e o feminismo que segue a Barbie (encenada pela australiana Margot Robbie) e o Ken (Ryan Gosling) à medida que ganham uma espécie de consciência da sua existência. Atravessam uma crise existencial e adaptam-se às diferenças entre existir no mundo da Barbie e no mundo real.

Esta obra começa como qualquer outra, com a introdução das várias Barbies e dos vários Kens. O foco encontra-se na Barbie encenada por Margot Robbie, a Barbie Estereotípica, e o Ken de Ryan Gosling, o Ken da Praia. Rapidamente a Barbie é atormentada por alterações físicas e psicológicas, e vê a sua rotina drasticamente alterada, pelo que é aconselhada a ir ao mundo real à procura da criança que está a brincar consigo.

Barbie, ao aventurar-se pelo mundo real, atravessa várias situações em que é fisicamente ameaçada e/ou assediada, chegando ao ponto da empresa criadora da boneca, Mattel, tentar capturá-la e enviá-la de volta ao seu próprio mundo. Por outro lado, Ken está a descobrir o que é o conceito do patriarcado e a sentir-se respeitado e incluído pela primeira vez. Satisfeito, leva esse conceito para o mundo da Barbie, implementando o patriarcado, apesar do descontentamento de grande parte das Barbies.

Quando a Barbie de Margot Robbie volta à sua terra natal, juntamente com outras bonecas, acabam por conseguir restabelecer ordem na “Barbielândia,” mas desta vez com vista a evitar a opressão dos vários Kens e em instalar uma sociedade mais justa e igualitária.

O filme acaba com a Barbie a voltar definitivamente ao mundo real, adotando o nome “Barbara Handler”, tendo o apelido emprestado da criadora da boneca Barbie (Ruth Handler) e tornando-se na sua própria mulher.

Os tópicos centrais do filme são inquestionavelmente o feminismo e a masculinidade. O filme inverte o ângulo tradicional da patriarquia e coloca a matriarquia utópica como o mal da sociedade da “Barbielândia,” apesar de, em simultâneo, mostrar que o domínio total de qualquer sexo é negativo e pode levar a questões como a objetificação e exclusão social independentemente de quem detém o poder.[1]

Aqui temos o exemplo das duas perspetivas. No início do filme são os Kens excluídos, já que estão as Barbies no poder, e são vistos como peças decorativas e sexuais naquilo que é a Barbielândia. Com o avançar do filme e a tomada de controlo pelos Kens, as Barbies acabam por ser sujeitas àqueles conceitos básicos chauvinistas, onde a mulher é pouco mais que uma parceira submissa, cuidadora de casa, mãe, etc.

A masculinidade também é encenada de forma frágil por parte dos vários Kens, focando-se muito no seu aspeto físico e a perspetiva que outras pessoas têm sobre si.[2] Também Ken se está a descobrir, a nível do autoconhecimento e da sua posição no mundo, acabando por trazer o patriarcado para o mundo das Barbies.[3]

Feminism is about giving people the choice to decide what to do with their lives, regardless of societal sex or gender role expectations. [4] (Feminismo é sobre dar às pessoas a escolha para decidirem o que fazer com a sua vida, independentemente do seu sexo social ou as expectativas relacionadas com o seu género.) O feminismo nasce da natural necessidade de as mulheres reivindicarem a sua posição na sociedade, depois de séculos de discriminação, violência e escravidão.

Ao longo da história, a mulher sempre foi considerada um dos elementos mais fracos da sociedade, sociedade esta que era regida pelos homens, donos do pensamento e do conhecimento. O lugar da mulher sempre foi o lar. A sua tarefa é cuidar da casa e dos filhos, e certificar-se de que não falta nada ao marido.

Mesmo quando a mulher foi ganhando o seu espaço e começou a entrar no mundo do trabalho, esta manteve as suas tarefas domésticas, passando a ter não um, mas dois trabalhos, sendo que um deles é invisível à sociedade.

Nos dias de hoje, já existem mulheres em cargos de poder, com carreiras profissionais de sucesso, mas a sua maioria continua a ter uma vida dupla. A vida profissional e a vida doméstica.

O feminismo, à medida que foi crescendo, teve várias ondas de protestos. A primeira onda ocorreu durante a Revolução Francesa no ano de 1789, com o movimento sufragista defensor do direito ao voto. No século XIX surgiu ainda o movimento Abolicionista, representando a luta das mulheres pelo fim da escravidão.

A segunda onda decorreu entre as décadas de 1960 e 1970. Nesta época a luta das mulheres tinha como principal objetivo a igualdade no local de trabalho e Direitos Reprodutivos, não esquecendo a Violência Contra as Mulheres. Com o surgimento da terceira onda, nos anos 90, começaram a ser desconstruídas as normas de género, focando na inclusão e diversidade. Atualmente, temos um movimento feminista com palco no mundo digital que rege os nossos dias. A luta contra o assédio e os abusos feitos também online, são o grande desafio de hoje.

O feminismo nos leva à luta por direitos de todas, todes e todos. Todas porque quem leva essa luta adiante são as mulheres. Todes porque o feminismo liberou as pessoas de se identificarem somente como mulheres ou homens e abriu espaço para outras expressões de gênero — e de sexualidade — e isso veio interferir no todo da vida. [5]

Filósofos como Foucault também foram inspirando os movimentos feministas. As suas obras e teorias permitiram que as feministas fossem refletindo sobre si próprias de forma a adaptar a sua luta para que fosse mais eficaz.

Durante a minha infância, ao contrário de algumas raparigas, nunca senti que existisse uma diferença entre rapazes e raparigas que nos levasse a ter oportunidades distintas, principalmente em ambiente escolar, tornando-se num ambiente saudável. Assim este sentimento de igualdade foi-me acompanhando à medida que fui crescendo.

Ao mesmo tempo, tal como aconteceu a Barbie no filme, à medida que passei a estar cada vez mais em contacto com o mundo dos “crescidos”, fui-me apercebendo da realidade e da crueldade que existia perante as mulheres. Na desigualdade de oportunidades, salários e nos vários tipos de violência que sofriam.

One is not born woman, but becomes one. [6] (Uma não nasce mulher, mas torna-se numa) Cada uma de nós mulheres, tornámo-nos numa quando tomamos a consciência da realidade que nos rodeia. Tanto eu como a Barbie, tal como qualquer menina neste mundo, a certo ponto da sua vida se tornou mulher.

Apesar de não termos sofrido com as coisas mais violentas feitas às mulheres, eu e a Barbie percebemos de que é necessário lutar lado a lado com as causas feministas. Assim, podemos dizer que ao longo do filme a personagem de Margot se foi tornando feminista. No feminismo a identidade é um elemento da construção de si que passa necessariamente pelo autoconhecimento de cada um acerca de si mesmo. [5]

Ao regressar à Barbielândia, a Barbie defronta-se com o patriarcado começando a sua luta, juntamente com outras Barbies de forma a tornar o seu mundo num local melhor para todos, Barbies e Kens. O feminismo é o dispositivo para o patriarcado. [5]

Aquelas pessoas definidas como homens também devem ser incluídas em um processo realmente democrático, coisa que o mundo machista — que conferiu aos homens privilégios, mas os abandonou a uma profunda miséria espiritual — nunca pretendeu realmente levar à realização. [5]

O percurso e desenvolvimento da Barbie ao longo do filme pode ser comparado ao processo de crescimento de qualquer menina que brinca com ela. A fase de reflexão, de perceção da realidade e da vontade de mudar o que está à nossa volta para um mundo melhor, onde todos serão mais felizes.

O filme leva-nos nessa viagem e com a vontade de fazer a nossa parte no mundo à nossa volta.

[1] https://theconversation.com/in-greta-gerwigs-barbie-land-the-matriarchy-can-be-just-as-bad-as-the-patriarchy-209317

[2] https://www.psychologytoday.com/us/blog/our-devices-our-selves/202307/what-the-movie-barbie-gets-right-about-male-psychology

[3] https://www.theatlantic.com/culture/archive/2023/07/barbie-movie-ken/674852/

[4] https://www.psu.edu/news/berks/story/penn-state-berks-professor-discusses-significance-barbie-movie/

[5] Tiburi, M. (2018). Feminismo em comum para todas, todes e todos. Rosa dos Tempos

[6] Beauvoir, S. (2015). O Segundo Sexo, Quetzal Editores

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