“PRIDE.” : a autossabotagem e a destrutividade em tom poético

Marta Santos
Semiosis
Published in
13 min readMay 30, 2024

Kendrick Lamar contempla-nos com este tema extremamente bem pensado, bem construído e estranhamente real. Deixa-nos a refletir acerca do tema central — a divisão entre o amor e o orgulho.

Fonte: Soundcloud
DAMN., álbum que agrega PRIDE. de Kendrick Lamar

Este tema pertence ao álbum “DAMN.”, remonta ao ano de 2017 e conta com a colaboração de artistas como Steve Lacy e Anna Wise.

A escrita indubitável do artista, o seu domínio notável do microfone e a sua visão conceptual apurada traduziram-se numa extraordinária combinação de êxitos e aclamação da crítica, além do respeito e apoio que ganhou dos outros artistas do ramo.

Mergulhamos nesta espiral de sentimentos intensos formatados em poesia por Kendrick Lamar. Estamos na presença de uma introspeção lírica que trata do amor, do orgulho, do materialismo, da imperfeição e, principalmente, da busca por um mundo utópico (que parece não existir).

Estamos perante um conflito intimista que opõe a procura por uma conexão espiritual à ânsia por bens materiais. Felicidade ou Exibicionismo? Eis a questão.

Este tema será analisado de acordo com a perspetiva de Lipovetsky, descodificando e analisando assim a mensagem que Kendrick nos quer passar a nós, enquanto ouvintes e possíveis detentores dos mesmos problemas existenciais.

Kendrick Lamar

Análise Filosófica

Lipovetsky aborda temas como o individualismo “singularista” e o hedonismo. Tal como Kendrick, o filósofo francês relata e defende que vivemos numa era de procura incansável pelo prazer e satisfação pessoal e maximização dos mesmos.

A cultura da felicidade é detentora de um carácter hedonista, mas, ao mesmo tempo, desencadeia uma dinâmica de ânsia e mal-estar, provocada pelas próprias normas do bem-estar e do melhor parecer que a estabelecem [Lipovetsky, G (2004) O Crepúsculo do Dever]. Kendrick procura alcançar um mundo perfeito e a felicidade que dele advém, mas sente-se ancorado por pensamentos que não o deixam avançar nessa busca e que, em vez de o levarem para a frente, atrasam-no no processo. O filósofo refere que a busca pelo prazer leva ao carácter superficial e à falta de genuinidade/autenticidade das pessoas.

Lipovetsky fala acerca do materialismo, o que nos remete para o tal conceito de ostentação presente na música alvo de estudo — PRIDE. O filósofo relata que o consumo é a visão materialista da felicidade, como se a felicidade fosse algo que pudéssemos comprar de alguma maneira. O pensador refere que esses bens materiais adquiridos proporcionam prazer, mas não a felicidade propriamente dita. Relata que uma pessoa pode ser detentora de muitos e bons bens materiais, mas ser infeliz. Os objetos adquiridos permitem à pessoa um sentimento de escape momentâneo. Não trazer a paz necessária para a conquista da felicidade. A felicidade exige uma boa relação conosco e com os que nos rodeiam e fazem parte, de alguma maneira, nas nossas vidas.

O artista, nesta música, fala precisamente dessas relações com o próximo, em que muitas vezes não consegue lidar com os pensamentos que o consomem e que não o deixam manter uma boa relação com os outros.

Gilles Lipovetsky, filósofo e sociólogo

Análise Lírica

Será objeto de análise o constituinte lírico, ou seja, o “esqueleto” de PRIDE. A análise da letra irá auxiliar-nos na compreensão das temáticas em questão.

“Love’s gonna get you killed
But pride’s gonna be the death of you, and you and me
And you, and you, and you and me
And you, and you, and you and me
And you, and you, and-”

O amor vai te matar

Mas o orgulho será a tua morte, e tu e eu

E tu, e tu, e tu e eu

E tu, e tu, e tu e eu

E tu, e tu, e-

Esta intro é extraordinária, Kendrick deposita neste trecho uma explosão de sentimentos. A repetição das palavras “me” e “you” intensificam a mensagem, as sensações vividas pelo ouvinte ao escutar a música e também reforçam a ideia de que ninguém é imune a estas situações.

Observamos uma dualidade de sentido, na medida em que, embora o amor nos possa ferir de alguma maneira, é o orgulho que nos mata e que nos leva ao colapso.

O orgulho é uma arma letal que não só afeta o próprio indivíduo, mas também as suas relações interpessoais.

“Me, I wasn’t taught to share, but care
In another life, I surely was there
Me, I wasn’t taught to share, but care
I care, I care”

Eu não fui ensinado a partilhar, mas a me importar

Noutra vida, eu certamente estava lá

Eu não fui ensinado a partilhar, mas a me importar

Eu importo-me, eu importo-me

Estamos perante a continuação da intro, Kendrick relata que não foi ensinado a compartilhar, mas sim a importar-se com as situações. Relata que noutra vida alternativa poderia ter sido melhor pessoa do que a que é nesta.

O artista nasceu e viveu a sua infância em Compton, nos EUA, uma cidade onde predomina o crime e a violência, com a atuação de gangues. Não tinha muitas condições financeiras, então tinha que viver com o que tinha, tentando, ao mesmo tempo, não seguir por caminhos que o poderiam prejudicar, como o mundo do crime. Usou a sua inteligência e genialidade para o bem e refugiou-se na arte da música, criando assim autênticas poesias cantadas, como PRIDE.

A parte final em que canta em coro “i care” mostra-nos que ele aceita as suas imperfeições e que aprende a partir delas.

Hell-raising, wheel-chasing, new worldly possessions
Flesh-making, spirit-breaking, which one would you lessen?
The better part, the human heart, you love ’em or dissect ‘em
Happiness or flashiness? How do you serve the question?

Tocando o inferno, perseguindo a roda, novas posses mundiais

Formando o corpo, quebrando o espírito, qual deles diminuias?

A melhor parte, o coração humano, tu os amas ou os dissecas

Felicidade ou ostentação? Como respondes à pergunta?

É perceptível que Kendrick esteja a falar sobre o seu mau lado. Onde o caos e os comportamentos destrutivos predominam— “hell-raising”. O artista critica também, através de uma expressão em inglês “wheel-chasing”, os homens que ambicionam carros, riqueza e coisas banais da vida (“new worldy possessions”). Compara o hábito dos cães perseguirem as rodas dos carros com o próprio Homem que persegue a banalidade e não o que realmente importa.

Kendrick interroga-nos: Formar o corpo ou quebrar o espírito? (“Flesh-making, spirit-breaking, which one would you lessen?”). Na primeira refere-se ao próprio impulso que nos consome e que nos faz querer sentir prazer, por outro lado, na segunda parte refere à vida feliz e positiva que se pode levar quando as decisões não são conduzidas pelo egoísmo. Podemos viver livremente sem esses prazeres que são apenas momentâneos e que não acrescentam nada a longo prazo na nossa vida.

O ideal é o balanço perfeito entre esses prazeres momentâneos e o conseguir viver sem eles caso seja necessário.

Apresenta-nos, de seguida, outro dilema: amar o coração humano ou dissecá-lo? (“the human heart, you love ’em or dissect ‘em”). Estamos perante uma rasteira, orgulho VS amor. Ao dissecarmos o coração iríamos encontrar todos os defeitos e imperfeições que nele possam existir. Autossabotagem — não nos deixarmos ir e não nos permitirmos ser felizes. Ao amarmos o coração, iria ser o nosso fim. Chegamos aqui à mensagem inicial, a mensagem da intro. Qualquer uma das escolhas tem o mesmo destino, a ruína.

Atualmente já não se sabe de caras quando estamos perante a realidade ou não. Já se consegue fabricar um estilo de vida e a própria vida que as pessoas anseiam. A prioridade de muitos é a riqueza, para mais tarde a poderem ostentar e exibir (“Happiness or flashiness?”). A sociedade moderna torna-se assim uma sociedade de espétaculo.

See, in the perfect world, I would be perfect, world
I don’t trust people enough beyond their surface, world
I don’t love people enough to put my faith in man
I put my faith in these lyrics, hoping I make a band

Vê, num mundo perfeito, eu seria perfeito, mundo

Não confio nas pessoas o suficiente para além das suas superfícies, mundo

Não amo as pessoas o suficiente para colocar a minha fé no Homem

Coloco a minha fé nestas letras, esperando fazer a diferença

Sonha com um mundo perfeito, embora saiba que o mundo perfeito não existe. Sabe que ele próprio não é perfeito e que tem defeitos e imperfeições. Acreditar num mundo utópico seria equivalente a enganar-se a si próprio.

Refere que não se sente capaz de depositar a sua confiança nas outras pessoas e acaba por criar uma barreira de segurança, talvez para não se sentir exposto ou mais tarde traído por essas pessoas que atuaram como suas confidentes. Para Kendrick, as pessoas não são a sua primeira escolha quando precisa de ajuda ou de alguém para desabafar, prefere refugiar-se na sua música e conseguir fazer a diferença na vida de alguém que possa estar a passar pelo mesmo que ele quando escreve a poesia das suas canções.

I understand I ain’t perfect, I probably won’t come around
This time, I might put you down
Last time, I ain’t give a f-, I still feel the same now
My feelings might go numb
You’re dealing with cold thumb
I’m willing to give up a leg and arm to show empathy from

Estou ciente que não sou perfeito, provavelmente não vou mudar

Desta vez, posso te decepcionar

Da última vez, não me importei, ainda sinto o mesmo agora

Os meus sentimentos podem adormecer

Estás a lidar com a indiferença

Estou disposto a desistir de uma perna e braço para demonstrar empatia com

O artista sabe que, como toda a gente, tem imperfeições. Não liga muito aos problemas que outros enfrentam e refere isso em vários pontos de PRIDE. Sente-se indiferente e decepcionante. Refere que os seus sentimentos e o seu lado emocional como mero humano estão quase adormecidos.

Assistimos aqui a uma autocrítica por parte de Lamar.

Ele não se importa e fica indiferente àquelas pessoas que apenas se importam com elas mesmas e que não demonstram qualquer preocupação em relação a ele ou aos outros ao redor.

Pity parties and functions of you and yours
A perfect world, you probably live another 24
I can’t fake humble just ’cause your a- is insecure
I can’t fake humble just ’cause your a- is insecure

As tuas festas de autopiedade e recepções

Um mundo perfeito, provavelmente viverás outros 24

Não posso fingir humildade só porque és inseguro

Não posso fingir humildade só porque és inseguro

“A perfect world, you probably live another 24" remete para uma famosa sondagem feita em algumas cidades dos EUA em que se se apurou que a maioria dos homens negros no país apenas viveram 24 anos antes de serem mortos ou presos. Mostrando-nos e evidenciando que não vivemos num mundo de fantasia.

Kendrick repete o verso “I can’t fake humble just ’cause your a- is insecure” e mais uma vez demonstra que prefere o orgulho ao invés de ser humilhado. Enquanto ouvimos este último verso da estrofe sentimos uma mudança na voz de Lamar, assistimos a uma voz com tom mais grave como alguém que já vivenciou essa situação.

Me, I wasn’t taught to share, but care
In another life, I surely was there
Me, I wasn’t taught to share, but care
I care, I care

Eu não fui ensinado a partilhar, mas a me importar

Noutra vida, eu certamente estava lá

Eu não fui ensinado a partilhar, mas a me importar

Eu importo-me, eu importo-me

Repetição e reforço da segunda estrofe onde fala de que nunca foi ensinado a partilhar, mas sim a importar-se.

Maybe I wasn’t there (we saw you first)
Maybe I wasn’t there (I saw you first)
Maybe I wasn’t there (I saw you first)
Maybe I wasn’t there

Talvez eu não estivesse lá (vimos-te primeiro)

Talvez eu não estivesse lá (vi-te primeiro)

Talvez eu não estivesse lá (vi-te primeiro)

Talvez eu não estivesse lá

Aqui começa uma espécie de realização de que nunca houve nem vai haver um mundo perfeito e ouve-se soar por trás sons semelhantes aos de sirenes que remontam ao desânimo que sente com este facto (“Maybe I wasn´t there”).

Now, in a perfect world, I probably won’t be insensitive
Cold as December, but never remember what winter did
I wouldn’t blame you for mistakes I made or the bed I laid
Seems like I point the finger just to make a point, nowadays

Agora, num mundo perfeito, eu provavelmente não seria insensível

Frio como Dezembro, mas sem nunca me lembrar o que o inverno fez

Não te culparia por erros que cometi ou decisões que tomei

Parece que hoje em dia eu aponto o dedo apenas para provar algo

Lamar considera-se uma pessoa fria como o frio de dezembro. Faz uma ligação da temperatura com o seu estado de espírito interior. Assistimos a uma relação com um verso de outra estrofe anterior — “You’re dealing with cold thumb” — em que, em ambos os versos não demonstra qualquer simpatização com os sentimentos ao redor. Kendrick está a perder o controlo dos seus sentimentos e aponta o dedo aos outros para os culpar dos seus azares e escolhas erradas.

Smiles and cold stares, the temperature goes there
Indigenous disposition, feel like we belong here
I know the walls, they can listen, I wish they could talk back
The hurt becomes repetition, the love almost lost that

Sorrisos e olhares frios, a temperatura cai

Disposição indígena, parece que nós pertencemos aqui

Conheço as paredes, elas podem ouvir, eu gostava que elas respondessem

A dor torna-se repetição, o amor quase perdeu isso

Começa com dois opostos — sorrisos e olhares frios — compara a inconsistência dos humanos com a temperatura. Uma alegria extrema que se torna numa tristeza desolada, como uma queda de temperatura.

Relata que qualquer mundo com humanos é imperfeito. Kendrick espera obter uma resposta das paredes quando fala com elas mas está ciente que não é possível. Sente-se mais confortável em exprimir-se às paredes, que apenas o ouvem, e não aos humanos, que o podem julgar além de o ouvir. Faz aqui referência a uma das suas músicas — “These Walls” — que também trata de um ciclo de dor.

Sick venom in men and women overcome with pride
A perfect world is never perfect, only filled with lies
Promises are broken and more resentment come alive
Race barriers make inferior of you and I
See, in a perfect world, I’ll choose faith over riches
I’ll choose work over b-, I’ll make schools out of prison
I’ll take all the religions and put ’em all in one service
Just to tell ’em we ain’t sh-, but He’s been perfect, world

Veneno doentio em homens e mulheres cheios de orgulho

Um mundo perfeito nunca é perfeito, só é repleto de mentiras

Promessas são quebradas e mais ressentimento ganha vida

Barreiras raciais fazem de nós inferiores

Vê, num mundo perfeito, eu escolheria a fé ao invés de riquezas

Escolheria o trabalho ao invés de vagabundas, faria escolas ao invés de prisões

Pegaria em todas as religiões e colocaria todas num só serviço

Só para lhes dizer que não somos nada, mas Ele tem sido perfeito, mundo

Compara o orgulho com o veneno, um líquido que nos percorre até um dia ser fatal.

Aqui está ciente de que o mundo não é magnífico e acredita que todos os que prometem a perfeição estão a vender uma ideia errada que nunca iria existir e ser praticável.

Ambiciona um mundo onde a fé, o trabalho e a educação são valorizados acima do materialismo e onde as diferenças raciais não criam barreiras entre as pessoas.

Relata que juntaria todas as religiões numa só, dado que todas procuram o mesmo. Acredita que muitas pessoas praticam a boa fé para terem uma boa imagem e isso vai contra a verdadeira fé, fazer o bem sem esperar aplausos ou algo em troca. Sabe que a única perfeição é Deus, tudo o resto é imperfeito — “we ain’t sh-, but He’s been perfect”.

Me, I wasn’t taught to share, but care
In another life, I surely was there
Me, I wasn’t taught to share, but care
I care, I care

Eu não fui ensinado a partilhar, mas a me importar

Noutra vida, eu certamente estava lá

Eu não fui ensinado a partilhar, mas a me importar

Eu importo-me, eu importo-me

Maybe I wasn’t there (we saw you first)
Maybe I wasn’t there (I saw you first)
Maybe I wasn’t there (I saw you first)
Maybe I wasn’t there

Talvez eu não estivesse lá (vimos-te primeiro)

Talvez eu não estivesse lá (vi-te primeiro)

Talvez eu não estivesse lá (vi-te primeiro)

Talvez eu não estivesse lá

Conclui-se que o mundo não é perfeito e que temos de saber lidar com isso (ou pelo menos tentar) numa tentativa de seguirmos com as nossas vidas de uma forma otimista e confiante.

Termina com uma nota de empatia, apesar de admitir que não foi ensinado a compartilhar, mas sim a se importar, sugerindo assim uma esperança de crescimento pessoal.

Tal como Lipovetsky afirma, vivemos numa sociedade moderna em que reina o hedonismo e o individualismo singularista. A busca pelo prazer individual sobrepõe-se ao bem-estar coletivo e as relações interpessoais vão ficando cada vez mais em segundo plano.

Kendrick, tal como Lipovetsky, sabe que a felicidade não se compra e que os bens materiais, apesar de nos proporcionarem prazer, não nos dão a felicidade absoluta que necessitamos e ambicionamos. A ostentação e o exibicionismo são alvos de crítica.

Para alcançarmos a felicidade temos de estar bem, não apenas conosco mesmos, mas também com as pessoas que fazem do nosso dia melhor.

PRIDE. no YouTube

Referências

Rolla, T. “A cultura da felicidade, por Gilles Lipovetsky”, 17 de novembro de 2022. Rock&Rolla. Disponível em: https://www.teresarolla.org/a-sociedade-hedonista-por-gilles-lipovetsky/

Pimentel, F. “A Era do Vazio: a atualidade de um clássico de Gilles Lipovetsky (Parte 1)”, maio de 2021. Fronteiras. Disponível em: https://www.fronteiras.com/leia/exibir/a-era-do-vazio-a-atualidade-de-um-classico-de-gilles-lipovetsky-parte-1

Donna. “Felicidade não se compra, afirma o filósofo francês Gilles Lipovetsky”, 26 de março de 2014. Donna. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/donna/noticia/2010/10/felicidade-nao-se-compra-afirma-o-filosofo-frances-gilles-lipovetsky-cjpmtuiyj026vvtcn67pxe9ok.html

Lipovetsky, G. (2004) O Crepúsculo do Dever

Lipovetsky, G. (1983) A Era do Vazio

Cortes da Gringa [Legendado], “Kendrick Lamar conta como foi sua infância”, 2 de novembro de 2021. Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nPcvmQXjk1s

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