Ser blues — Uma análise filosófica de “Bluesman”

Lara Paulino
Semiosis
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8 min readMay 15, 2024

“Bluesman”, é o segundo álbum de Baco Exu do Blues, abordando questões profundas do racismo. Nesta análise filosófica, com base na obra Crítica da Razão Negra de Achille Mbembe. Pretende-se analisar os pontos da Identidade e Reconhecimento, da Resistência e Resiliência e da Crítica ao Sistema e Reafirmação de Valor.

Este álbum, lançado em 2018, mistura elementos do rap, R&B, samba e blues para criar uma sonoridade única e provocativa. “Bluesman” é mais do que uma coleção de músicas; é uma declaração audaciosa sobre a identidade, a resistência e a experiência negra no Brasil. Com letras afiadas e introspetivas, são desafiados estereótipos e é reivindicado o espaço cultural e artístico. “Bluesman” é um manifesto de resistência e resiliência, destacando a importância do reconhecimento e da valorização da cultura negra. Este álbum não só cativa pela sua musicalidade, mas também instiga uma reflexão crítica sobre temas sociais urgentes. Tornou-se um marco na música brasileira contemporânea e uma poderosa ferramenta de transformação social.

Joseph-Achille Mbembe, filósofo de entre muitas coisas, é natural de Camarões e é a principal base teórica desta análise. A obra explorada foi Crítica da Razão Negra a qual tem várias citações de outros grandes nomes como Frantz Fanon e Michel Focault, por exemplo.

Identidade e Reconhecimento

«Mas o que é então um “negro”», questiona Achille Mbembe no seu livro Crítica da Razão Negra, «“Negro” é portanto o nome que me foi dado por alguém. Não o escolhi originalmente. Herdo esse nome por conta da posição que ocupo no espaço do mundo. Quem está marcado com o nome “Negro” não se engana quanto a essa proveniência externa» (Mbembe, 2018, p.195)

Neste ponto, Baco não só se afirma como um “Bluesman” mas também celebra o impacto da cultura negra. Ele reivindica o blues como uma expressão legítima e poderosa da identidade negra, capaz de criar riqueza e beleza, subvertendo a narrativa dominante que frequentemente marginaliza estas contribuições. Podemos perceber isto na primeira faixa do álbum, possuindo o mesmo nome, “Bluesman.

“A partir de agora considero tudo blues, o samba é blues, o rock é blues, o jazz é blues

O funk é blues, o soul é blues, eu sou Exu do Blues, tudo que quando era preto era do demônio

E depois virou branco e foi aceito, eu vou chamar de blues, É isso, entenda Jesus é blues”

Já na faixa “Me desculpa Jay-Z” a questão da identidade torna a ser falada. Ao contrário do que muitos pensam, esta não é uma música que fala de um amor romântico, mas sim de amor próprio. O sujeito da canção está num processo de se aceitar ou não, cantando várias vezes esta confusão. O que Baco acaba por refletir é a forma como a sociedade com os seus estereótipos acaba por afetar diretamente a autoestima de pessoas negras, afinal, durante muito tempo o padrão sempre foram os brancos, colocando de lado e maioritariamente sendo alvo de piada as características físicas dos povos negros.

“Eu não gosto de você, não quero mais te ver, Por favor, não me ligue mais

Eu amo tanto você, sorrio ao te ver, Não me esqueça jamais”

[..]

“Até o amanhecer, Tenho medo de me conhecer”

Minotauro de Borges, é a quarta faixa do álbum e o nome desta música é inspirado no conto de Jorge Luís Borges. O Minotauro de Borges sofre com a dor e a solidão que é estar naquele labirinto, seu maior desejo é que alguém o liberte daquela situação. Na ansiedade da libertação, ele vai de encontro com as pessoas que aparecem no labirinto e acaba as matando acidentalmente pela sua força desproporcional.” (Oliveira, 2020) A crítica aqui surge deste estereotipo definido durante o período de escravidão de que pessoas negras eram vistas só e apenas como um animal, como alguém para servir e desta forma automaticamente associavam a força bruta, a violência a estas pessoas. Assim, quando Baco cita esta história de uma figura mitológica que acidentalmente matou as pessoas pela sua força desproporcional ele critica exatamente esse pensamento que existiu tão fortemente no passado e que permanece enraizado na sociedade supremacista branca. O cantor repete várias vezes o verso:

“Vencer me fez vilão, Eu sou Minotauro de Borges”

«Para Fanon, o termo “negro” advém de um mecanismo mais de atribuição que de autodesignação. Não sou negro (noir), declara Fanon, nem sou um negro (nègre). Negro não é nem meu sobrenome nem meu nome, muito menos minha essência e minha identidade. Sou um ser humano e isso basta. (…) Continuo a ser um ser humano, por mais intrínseca que seja a violência das tentativas que pretendem me fazer acreditar que não sou.» (Mbembe, 2018, p.71) no som “Kanye West da Bahia”, o cantor reflete mais uma vez a questão da identidade.

“Porque esses negros me olham com tanta malícia, Porque aprendemos a odiar os semelhantes

Sua inveja não me deixa ser o mesmo de antes, Se o sucesso te irrita, sou um cara irritante

Não me chame de preto bonito, Preto inteligente, Preto educado, Só de pessoa importante”

Nestes versos, Baco vai de encontro com o acima citado de Mbembe que volto a citar “Negro não é nem meu sobrenome nem meu nome, muito menos minha essência e minha identidade”, pois muitas vezes parece que quando alguém se refere a uma pessoa negra faz questão de mencionar que aquela pessoa é de facto negra, trata aquela característica física da pessoa como se fosse a único e mais importante aspeto que aquela pessoa possuí, mas nunca, jamais, foram vistas, por exemplo, notícias onde se realça o facto de alguém ser branco ou de classe média, alta.

Resistência e Resiliência

«É um “negro” aquele que, encurralado contra uma parede sem porta, ainda assim acredita que tudo acabará por se abrir. Ele então bate, suplica e bate de novo, na esperança de que lhe abram uma porta que não existe. Muitos acabaram por se acomodar a essa realidade e por se reconhecer na sina que o nome lhes impingiu.» (Mbembe, 2018, p.196)

Nos próximos versos é destacada a resiliência de Baco, que transforma traumas pessoais em degraus para o crescimento e empoderamento. Ele sublinha a força necessária para sobreviver e prosperar em um ambiente racista, ressaltando a sua capacidade de resistir e superar adversidades. Ainda nas músicas “Kanye West da Bahia”, “Bluesman” e “Minotauro de Borges” é possível perceber a resistência contra o sistema racista liderado por supremacias brancas.

“Jesus, eu espanquei Jesus, Quando vi ele chorando, gritando, falando

Que queria ser branco, alisar o cabelo, E botar uma lente pra ficar igual

A imagem que vocês criaram” (Kanye West da Bahia)

Estes versos de Kanye West da Bahia são bastante fortes pela forma irascível como são escritos, mas servem perfeitamente para exemplificar esta resistência contra os estereótipos. Esta parte encaixa-se também na letra de Bluesman, voltando a cita-la “tudo que quando era preto era do demônio e depois virou branco e foi aceito, eu vou chamar de blues”. A verdade é que Jesus é apenas uma das inúmeras coisas que foram embranquecidas para ser aceitas em sociedade e Baco acerta ao afirmar que quer mudar isso, mostrando a resistência.

“Eu sou o primeiro ritmo a formar pretos ricos

O primeiro ritmo que tornou pretos livres

Anel no dedo em cada um dos cinco

Vento na minha cara, eu me sinto vivo” (Bluesman)

Na minha perspectiva, quando Baco se refere a “ritmo”, seria uma referência ao género musical Rap. Tal como os Blues, o Rap é um género musical que surgiu entre as comunidades afrodescendentes estadunidenses, tal género que com o passar dos anos as maiorias começarem a se apoderar e a tomar como seu.

“Pisando no céu enquanto eles se perguntam: Como esse negro não cai?

Dizem que o céu é o limite, Eles se perguntam: Porque esse negro não cai?

Fiz roda punk com os anjos, Pintei o Éden de preto

Fui ghostwriter de Beethoven, Escrevi vários sonetos

Cortei minhas asas, Vejam minhas cicatrizes” (Minotauro de Borges)

Nos dois primeiros versos do excerto acima podemos reparar na resiliência do sujeito lírico, pois fica subentendido que quando os outros chegam ao mesmo patamar ou a um nível semelhante dele, percebem que ele continua lá e não falha como era esperado. Chegamos à conclusão que a supremacia espera e deseja que as minorias nunca alcancem o topo. Então, Baco critica exatamente isso, usando ainda referências como o Éden, Beethoven, os anjos, algo que seria visto como grande, triunfal, um sucesso e cita-as como se todas elas estivessem diretamente inseridas ou dependessem da sua cultura que sempre foi oprimida e vista como algo mau, em segundo plano, esquecida.

“Eu não me governo, Sou minha empresa

Meu próprio governo, Meu amor sou eu mesmo” (BB KING)

[…]

“Ela sorri e fala: Baco, eu te amo, Se lembre: Você é humano

Cê é forte, aguente o dano, Dominar o mundo não é mais só um plano

Tudo que a concorrência faz me soa mediano”

Em relação a “BB King” percebemos mais a vertente da resiliência e do empoderamento, já servindo de ponte para um dos próximos pontos, a reafirmação de valor.

Crítica ao Sistema e Reafirmação de Valor

«A raça é também a expressão de um desejo de simplicidade e de transparência — o anseio por um mundo sem surpresas, sem cortinas, sem formas complexas. Ela é a expressão da resistência à multiplicidade. É, por fim, um ato de imaginação, ao mesmo tempo que um ato de desconhecimento. É tudo o que subsequentemente se emprega em cálculo de poder e de dominação, visto que a raça não excita somente a paixão, mas faz também ferver o sangue e leva a gestos monstruosos». (Mbembe, 2018, p.147)

Baco critica sobretudo a sociedade neste álbum. Propõe uma abordagem de tomada de poder, sugerindo que os negros devem reivindicar seu espaço e seus direitos com assertividade. Fala sobre como a cultura negra está associada a estereótipos de violência, crimes, roubos e drogas. Estereótipos estes criados pelas maiorias brancas. Um bom exemplo desta crítica ao sistema e reafirmação de valor é a música “Preto Prata”, assim como a já mencionada várias vezes “Bluesman”.

“Autoestima pra cima, meu cabelo pra cima, Olha bem pro meu olho e me diz quem domina

Eu tô cheio de ódio e você nem imagina, Eu tô cheio de ódio e você nem imagina

Eles querem que eu mate e morra pelo ouro

Querem que eu mate e morra por mulheres brancas

Querem que eu mate e morra pelo meu ego,

Mas, irmão, só mato e morro pela minha banca

Virei imortal ao aceitar sua pele é prata, Virei imortal ao aceitar minha pele é prata”

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“Eles querem um preto com arma pra cima, Num clipe na favela gritando: Cocaína

Querem que nossa pele seja a pele do crime, Que Pantera Negra só seja um filme” (Bluesman)

De modo a finalizar esta análise filosófica passo a citar o discurso que também finaliza a última música deste álbum. É um discurso forte que acaba por conectar os três pontos aqui explorados, a identidade e reconhecimento, a resistência e resiliência e a crítica ao sistema e reafirmação de valor.

“1903 a primeira vez que, Um homem branco observou um homem negro

Não como um animal agressivo, Ou força braçal desprovida de inteligência

Desta vez, percebe-se o talento, a criatividade, a música, O mundo branco nunca havia sentido algo como o blues

Um negro, um violão e um canivete, Nasce na luta pela vida, nasce forte, nasce pungente

Pela real necessidade de existir, O que é ser um Bluesman?

É ser o inverso do que os outros pensam, É ser contra a corrente

Ser a própria força, a sua própria raiz, É saber que nunca fomos uma reprodução automática

Da imagem submissa que foi criada por eles, Foda-se a imagem que vocês criaram

Não sou legível, não sou entendível, Sou meu próprio Deus, meu próprio santo

Meu próprio poeta, Me olhe como uma tela preta, de um único pintor

Só eu posso fazer minha arte, Só eu posso me descrever

Vocês não têm esse direito, Não sou obrigado a ser o que vocês esperam

Somos muito mais, Se você não se enquadra ao que esperam

Você é um Bluesman”

Referências

Critique de la raison nègre. (2013). Éditions La Découverte

BLUESMAN. (2018). Selo EAEO Records

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Ciências da Comunicação - Universidade do Algarve