TEMPO & SILÊNCIO

FCB Brasil
Culture Drops
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6 min readMay 8, 2017

A aceleração do tempo nos impele ao silêncio.

Por Nelson Kuniyoshi.

“A velocidade é uma forma de êxtase com que a revolução tecnológica agraciou a humanidade.” Milan Kundera, Slowness

É uma percepção comum de que o tempo está passando cada vez mais rápido. No trabalho ou no Uber, a constatação é sempre a mesma: “Nossa, já estamos em Maio!” (ou qualquer outro mês do ano).

Se o tempo é rígido, medido com a precisão dos segundos, sua percepção, por outro lado, é extremamente flexível, sendo influenciada por uma série de fatores: nosso estado emocional, idade, o ambiente onde estamos, a natureza da tarefa, a cultura onde vivemos, nosso nível de consciência.

A VELOCIDADE INSENSATA DOS DIAS DE HOJE

O mundo moderno oferece, diariamente, uma torrente enorme de estímulos e interrupções, oportunidades constantes para alterar nossa percepção do tempo: a explosão de dados, a necessidade de ser multi-tasking, a pressão por produtividade, os estímulos constantes dos celulares e das redes sociais.

Ao observar as evidências, é difícil escapar do absurdo de algumas situações:

Recentemente, o canal Fox exibiu uma maratona acelerada da série “The Walking Dead”. Fãs da série puderam assistir duas temporadas e meia, um total de 35hs de conteúdo, em pouco mais de 24hs (30% mais rápido).[1]

Aplicativos para ler apenas o resumo de livros já existem há algum tempo. Blinklist, p.ex., se propõe a oferecer apenas os insights principais de livros de não-ficção (Big ideas in small packages). Joosr (Book summaries you’ll love) é outro app que promete “incrementar seu conhecimento em menos de 20min”.

Para ouvintes de podcasts, o app Overcast oferece a possibilidade de aumentar a velocidade do podcast em até 2.0 vezes, sem alterar a voz do narrador. O app procura os espaços em branco da gravação e os elimina.[2]

Mas não é preciso ir a extremos para observar os efeitos da velocidade em nossas vidas: se, no passado, a arte da conversa e da argumentação era uma habilidade a ser cultivada, hoje qualquer dúvida é desfeita instantaneamente apenas consultando o Google. A tela do celular virou um objeto constante a interromper nossas conversas.

Os efeitos indesejados dessa cultura da pressa, do estar sempre ocupado, impactado por estímulos de todos os lados, inevitavelmente se manifestam: problemas de saúde e emocionais, menos tempo para perceber o outro, problemas de relacionamentos, percepção de falta de sentido, e de que a vida está passando rápido demais.

Tornamo-nos, na visão penetrante do comediante Louis C. K., “pessoas que buscam estímulos constantemente, evitando altos e baixos de tristeza e felicidade, mas que ficam no limbo, eternamente semi-realizados… e então morremos”.[3]

A BUSCA PELO SILÊNCIO

Na cena final do filme “Encontros e Desencontros” (Lost in Translation), Bob (Bill Murray) avista Charlotte (Scarlett Johansson) no meio da multidão. Ele desce do carro e a alcança. É uma despedida (desculpe o spoiler). Ele carinhosamente sussurra algo no ouvido dela, mas não ouvimos nada, só um “OK” ao final da conversa. A cena toda é filmada para ouvirmos apenas o som ambiente.

É simbólico que o filme fale sobre solidão nos tempos modernos, tendo Tóquio, a cidade mais tech do mundo, como cenário. Em meio ao caos que os envolve, pessoas apressadas, o trânsito dos carros, os neons, de alguma forma, Bob e Charlotte conseguem ter seu momento. O silêncio da cena é uma redoma protegendo-os de tudo aquilo ao redor. Um pouco como o “cone do silêncio” do Maxwell Smart, o Agente 86.

Pensando no mundo de hoje, e na cena acima, parece natural que as pessoas procurem momentos de silêncio para escapar da velocidade, do stress.

O Silêncio sempre possuiu qualidades espirituais e terapêuticas, e foi adotada por diversas religiões ao longo da história[4]. Hoje existe todo um movimento voltado ao Silêncio, não mais religioso, mas ainda espiritual. E Mindfulness, o resgate do momento presente, é apenas a manifestação mais recente.

Vemos então desde retiros de final de semana até fones de ouvido para cancelar o som. Alguns outros exemplos: Movimento Comer Sem Ruído (“Gastronomia é uma experiência dos sentidos, e o ruído prejudica o prazer” diz o chef estrelado do Michelin, Ramón Freixa); Silent Reading Parties (pessoas se reúnem por 2hs para ler, cada uma com seu livro, sem trocar palavras); Shhn Dating (blind date silencioso, onde apenas gestos e expressões faciais são permitidos); e apps que promovem Mindfulness como Headspace e Calm.

Mindfulness hoje virou uma atividade comum nas empresas do Vale do Silício, e começa a aparecer também em algumas escolas secundárias[5],[6].

Explicar esta busca apenas como um escape, porém, seria uma grande simplificação. Existe um significado mais profundo nessa busca pelo silêncio.

A PERDA DO VALOR DA EXPERIÊNCIA[7]

Para entender a profundidade desse significado, precisamos resgatar dois pensadores importantes.

Primeiro, Sigmund Freud. Ele propôs dois conceitos importantes sobre o tempo.

O primeiro conceito é o tempo vazio. P.ex., como um recém-nascido faz para suportar o tempo de espera entre as mamadas? A sensação de saciedade da primeira mamada, logo dá lugar à sensação de fome, tensão. Vem então o tempo vazio, em que o bebê ainda não sabe direito quando virá a próxima mamada. Junto com o choro, vem também então a projeção do desejo, a fantasia da figura da mãe, que o faz suportar a fome momentaneamente. A repetição de experiências assemelhadas, e a experiência deste tempo vazio é fundamental, segundo Freud, para a formação do sujeito[8], alguém capaz de representar idéias, fantasiar o desejo, e dessa forma lidar com as lacunas da vida.

Outro conceito que Freud propõe, é que a sensação de passagem do tempo se produz através da relação entre três inscrições psíquicas: Signos Perceptivos (consciente, presente), Marcas Mnêmicas (lembranças), e Memória Inconsciente (ilumina situações com algumas sensações as quais não temos acesso imediatamente, mas que completam a sensação do tempo que transcorre). A permanente ligação entre essas três inscrições em série permite criar “a representação da obra psíquica de sucessivas épocas da vida”[9], ou seja a passagem do tempo, devidamente experimentada, criando a percepção da vida como uma obra, uma estória.

Ocorre que, no mundo de hoje, essa alternância é incrivelmente minimizada em favor apenas do consciente, expostos que somos a constantemente receber e reagir a estímulos. Quando dirigimos um carro, p.ex., temos que prestar atenção constante ao nosso trajeto. Um devaneio, por momentâneo que seja, é suficiente para nos desviar de nosso caminho. O consciente é fundamental para nosso dia-a-dia mas, ao privilegiá-lo, menosprezamos o tempo vazio, e bloqueamos momentaneamente outras funções de nossa psique: as rememorações, os devaneios, as fantasias.

Walter Benjamin[10], nosso segundo pensador, introduz um outro conceito que ajuda a delimitar essa questão. Benjamin relata a experiência de soldados voltando da I Guerra Mundial, “uma geração que tinha ido à escola em carroças, e agora enfrentava campos enfumaçados por torrentes de explosões”. Eles retornavam atordoados com tudo aquilo que tinham visto, e havia perdido a capacidade de narrar experiências para si próprios e para os outros. Benjamin chamou esse fenômeno de “perda do valor da experiência”, que parece um termo bem apropriado para descrever nossa própria perplexidade frente à dinâmica da vida moderna.

* * *

Mindfulness e a busca pelo silêncio, portanto, podem ser interpretados não somente como um escape e um resgate do momento presente, mas como algo bem mais profundo, um resgate do “valor da experiência”, uma tentativa de construir “a obra psíquica de sucessivas épocas da vida”.

Parece paradoxal, pois a primeira reação que temos ao perceber o tempo passando velozmente é justamente tentar fazer mais coisas, espremer tudo no pouco tempo que temos. O que fica cada vez mais evidente, entretanto, é que precisamos sim experimentar e vivenciar, mas também precisamos representar e dar significado à essas experiências. Estar presente para criar memórias que nos permitam projetar e sonhar coisas para o futuro.

É claro que cada um pode achar seu próprio meio, se assim o desejar, de buscar o silêncio, de estar presente, de desacelerar o ritmo frenético da vida. Alguém pode muito bem resgatar seu silêncio no meio de um show no Lollapalooza. A cada um, seu próprio Nirvana.

A alternativa, parafraseando Louis C. K., é nos resignarmos com a aceleração do tempo, ficarmos semi-satisfeitos com a vida, bloqueando nossas rememorações, nossos devaneios, nossas fantasias, e então…puff.

* * *

[1] Estado de S. Paulo (11/02/2017) “Fox exibe maratona acelerada de The Walking Dead”.

[2] Lemos, Ronaldo (27/02/2017), Folha de S. Paulo “Velocidade com que consumimos informação começa a ficar lenta”.

[3] Entrevista de Louis C. K. a Conan O’Brien (20/09/2013).

[4] “The Power And Meaning Of Silence: Where, How And Why To Be Quiet”, The Economist (24/12/2016).

[5] Schachtman, Noah (18/06/2013), “In Silicon Valley, meditation is not a fad. It could make your career”, Wired.

[6] St. George, Donna (13/09/2016), “How mindfulness practices are changing an inner-city school”, The Washington Post.

[7] Baseado numa apresentação de Maria Rita Kehl sobre “Aceleração e Depressão”, no programa “Café Filosófico” (16/07/2013).

[8] Freud, Sigmund (1990), “Beyond the Pleasure Principle”, Norton Library.

[9] Freud, Sigmund (1986) “The Complete Letters of Sigmund Freud to Wilhelm Fliess, 1887–1904”.

[10] Benjamin, Walter (2016), The Storyteller.

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