Dona ovelha na cidade — um diário

Paula Amparo
Cura Crônica
Published in
3 min readSep 21, 2020

miniconto

MUNDO CÃO

Um cu cheira o outro.

idílico

No sítio de um amigo, quando chamamos um funcionário no portão da casa dele, os oito cachorros correm até nós. E um bezerro. Eu nunca havia encostado em um bezerro antes. Esses animais parecem estar sempre com muito medo de tudo. O bezerro veio ver quem chamava no portão, com curiosidade de cachorro, e enquanto os cachorros nos cheiravam, ele também nos cheirava. Quando eu e Arthur não erámos mais uma novidade, o bezerro deitou na sombra e nos observou. Perguntamos como e por que esse bezerro estava ali como se fosse um cachorro. E esse funcionário disse que a mãe o havia rejeitado e que ele cresceu tomando leite na mamadeira, próximo aos cuidados humanos:

“E por que a mãe rejeita?”, perguntamos.

“Às vezes a mãe é pretinha e um filhote é pretinho e o outro é branquinho e ela escolhe o pretinho. Mas ela também pode escolher o branquinho. E às vezes o filhote é marrom e ela escolhe o marrom. E também pode ser que um dos filhotes é o macho. A outra é a fêmea, e a mãe fica com o macho ou com a fêmea”, ele responde.

“Ah!”, algo assim, foi o que saiu, ou qualquer uma dessas interjeições que dizem: “entendo”.

“Então agora esse bezerro vai ficar aqui com os cachorros, né?”, pergunto.

“Sim e depois a gente come”, ele responde.

1 nó

A gente não é nem mesmo o nosso autorretrato porque todo retrato é a imagem de algo já morto.

outro nó

Sonho que estou arrumada. Encontro com um amigo e vamos para uma exposição à tarde no Centro. Vemos os trabalhos que estão dispostos em uma espécie de estacionamento que está com a porta de ferro enrolada. Também poderia ser uma enorme e vazia loja do Saara sendo ocupada por pinturas. O local começa a encher e eu resolvo sair um pouco, para não ficar aglomerada. Estou na rua e estou aglomerada, porque a galeria-estacionamento não para de encher e tem a sua calçada também ocupada. Vejo muitos rostos. Sorrio e recebo sorrisos. Não nos falamos muito — só estamos ali. Não usamos máscaras, não nos evitamos, mas algo indica que não deveríamos estar ali. Anoitece e resolvo ir embora, o local está tão cheio que parece uma festa. Um amigo me leva até um táxi e eu sei que sonho — e continuo sonhando mesmo assim. A consciência de que estou sonhando, me impede de seguir como eu mesma e rapidamente sou um menino, que no dia seguinte corre por aquelas ruas. Está claro e já tomei café da manhã. Tenho a perspectiva de uma criança e desço escadas, muitas escadas, até chegar naquela rua. O estacionamento estava decorado como uma discoteca dos anos 80. Só imagino tudo isso, dessa forma, porque meus pais me contaram de um mundo em que existia As Frenéticas. Está vazio, triste. Uma luz roxa brilha lá dentro.

amigas mascaradas

Recebo o Marcos em casa para tomarmos gin tônica com morango e pimenta. Ele olha a Bela e diz que ela cada vez mais parece uma pessoa com roupa de cachorro — eu rio. Vemos ela se ajeitar no sofá, apoiando a cabeça no braço do sofá — ele ri. “Como se fosse uma fantasia quente”, respondo. Penso sobre a necessidade de humanizar os animais para podermos justificar o nosso amor e identificação com eles: seria esse vício no pensar algo nosso ou a Bela também acredita que eu sou uma cachorra com roupa de pessoa? Comemos morangos borbulhantes, somos bobos e nos entendemos, enquanto Bela, ridícula e imensa para caber no sofá, nos olha.

--

--