Estado de graça

Paula Amparo
Cura Crônica
Published in
4 min readMay 24, 2019

Em uma terça de manhã, em uma aula no Museu Nacional, sobre “a construção social da pessoa” usando como norte as questões ligadas ao gênero e a família, discutíamos estudos etnográficos de como os descendentes homens e mulheres administravam os seus patrimônios, e como cada gênero se comportava em relação aos direitos e deveres da linha de sucessão. Também falamos do Estado e do aparelho burocrático. Muitos estudos na sala de aula eram sobre não ter filhos e sobre não ser herdeiro; pairou a pergunta: quanto custa não ser o que queriam que a gente fosse?

Aqui em casa tem um pé de maracujá que cresce de forma inacreditável pra mim, que nunca havia visto um pé de maracujá antes. É uma das iniciativas mais lindas do meu pai, esse pé de maracujá. Ano passado quando ele começou a tomar o quintal, saindo de um grande vaso, eu não dava nada por ele, não sabia que maracujá primeiro precisava se espalhar por fios acima de nós — ele precisa formar a sua teia primeiro. Foram poucos os frutos ano passado, mas esse ano ele está carregado. Quando eu era criança, o quintal foi concretado segundo planos que já não lembro (são planos embaralhados, pela ausência de um resultado que me levem a tê-los marcados em mim). Da infância em Cascadura, eu lembro de um pé de figo em uma das poucas partes que não foram concretadas — lembro de falarem que é uma fruta cara e nobre, uma árvore da bíblia. Essa figueira sumiu. Temos um pé de acerola no lugar, que algum vizinho reclamou e tivemos que cortar alguns galhos recentemente. Mas de todas as árvores que já vi por aqui, esse maracujazeiro é o que mais encanta por sua expansão na adversidade. Ele dispersa-se e ocupa o cinza; ele é vivo, mas a sua raiz é pequena e cabe em um vaso; seu caule é frágil e mais fino que o meu punho. Meu pai viaja e eu esqueço de regá-lo. Ele segue. Eu boto as roupas na máquina e fico paralisada por ele, por alguns segundos o observo; eu penduro as roupas e eu continuo o vendo. Os frutos caem e ele mesmo avisa quando é a hora. Ele é exuberante.

Eu desconhecia os zangões, até eu conseguir observar a abertura das flores do maracujazeiro. No final do mês de abril, eu pensei em fotografar os zangões, quando eu ainda pensava que eles eram besouros. Eu não imaginava que os zangões eram maiores do que as operárias e que eles também exerciam funções relacionadas a polinização das flores — desconfio que os imaginava apenas como trabalhadores da reprodução. Eu observei essas flores e pensei em fotografá-las todas as manhãs, o tempo passou, eu as observei e eu não as fotografei. Passei o outono dormindo tarde, acordando tarde, comendo tarde. Quando pensei em fotografar, elas já haviam fechado — o pé está carregado de maracujá verde e de flores fechadas no intento de se tornarem também maracujás verdes. Eu descobri que os zangões não eram besouros quando um amigo explicou que eles surgiam para abrir as flores. As abelhas são separadas em rainhas, operárias e zangões, e cada um é de um jeito. E cada espécie de abelha é de um jeito também — essas são a mamangava. Eu fiquei angustiada com isso tudo: por que os zangões vieram e as abelhas não? Eu queria operárias abrindo as flores também. Ele disse que isso ele não sabia.

O pé de maracujá cresceu. A Bela cresceu. E tudo isso é como uma dádiva — a dádiva é aquilo que move a empresa família, ela funciona em três etapas: um presente é dado, um presente é aceito e um presente é retribuído. Em algumas tribos é um sinal de humilhação receber algo que não pode ser devolvido na mesma moeda e geralmente o remetente o oferta propositalmente, com essas intenções. No mundo das ações ofensivas, dificilmente existe genuíno descuido. Não há descuido; há magoa, há rancor e há coisas caladas que não sabemos como foram acumuladas até o ponto do cansaço. Elas escorrem como os fluídos: o leite, o sangue, o sêmen. E percorrem todas as relações.

Um Sol amarelo, inesperado, de final de outono escorre também. Eu uso pijamas quentes por conta da chuva do final de semana. Meu corpo amolece com o calor. Bebo o meu café recém coado, como minhas torradas com manteiga e mortadela. O dia segue. O pé de maracujá filtra os raios solares e eu me sinto deslocada do mundo. Eu acreditava que a decadência existia porque um dia houve a opulência. Hoje, eu acredito em outra coisa, pensei muito sobre essa outra coisa, afirmo: nunca houve opulência; houve projeto, houve desejo, houve o que houve. O tempo cuida dos objetos: sou espectadora dos móveis de madeira amolecidos pelas intempéries, espelhos, relógios, restos de férias de verão e um retrato dos meus 15 anos. Continuo localizada exatamente no fim do mundo:

  1. e se tudo isso está ligado a algo desde antes da gente nascer?
  2. quanto custa não ser o que queriam que a gente fosse?

Aguardo a colheita.

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