Gata de rua, zebra de baile — um diário

Paula Amparo
Cura Crônica
Published in
3 min readJul 20, 2020

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A GATA

A gata lambeu a barriga e desdenhou da vida bípede do Egito.

sonho

Um tigre branco habita as minhas noites, o percebi quando liguei para um amigo numa terça de manhã, enquanto adiava a hora do café, e ele me disse que eu com certa frequência sonhava com esse tigre. Ele sai do quintal da minha casa ou daquilo que no sonho eu chamo de casa. Em um dos sonhos, eu morava na Antártida e estava fazendo intercâmbio. O trabalho final desse curso era fotografar dragões dançando durante a aurora boreal. No caminho de gelo da faculdade até a minha casa, eu encontrei uma alpaca parada como uma estátua peluda e ao chegar em casa, no quintal, estava o tigre branco. O encontro com o tigre branco me passa segurança: ele é como um guardião do portão e ele está conectado mentalmente a mim. A alpaca era desconcertante com a sua fixidez e seu olhar intenso, pois eu não estava no Peru e sabia que não estava no Peru, mas por algum motivo o tigre caseiro telepaticamente me compreendia e por isso era a coisa mais normal daqueles dias na Antártida. Eu e ele sabíamos de tudo. Os grandes felinos são o mais próximo de realeza que a gente conhece, no sentido de que o rei é rei porque ele é, e felinos como o leão, a onça, a pantera e o tigre são animais imponentes, que ao se encostarem no chão para dormir, o fazem por carregarem um corpo que por si só já os cansam. Eles são uma dessas imagens majestosas que esperamos dos que tem direito de guiar alguma coisa. Eu desligo o telefone e tento levantar da minha cama em seguida, o meu centro no mundo, e eu sinto o meu corpo — esse corpo que pesa.

uma zebra abandonada no 638

vou à festa

Eu, Fabrício e Caio, recentemente fomos em uma festa que misturava o eletrônico com o disco, na casa França-Brasil. Essa área do Rio é uma das vistas mais privilegiadas que temos, com seus prédios baixos. A Casa França-Brasil, junto da falência da cidade, assim como muitos outros espaços de arte, foi se submetendo a ter que alugar suas noites para festas, como forma de não falir também. Todos os dias são um exercício pra não cair naquela fossa, como já disse Gil no exílio. Não podíamos mascar chicletes e balas porque tinham medo dos mesmos serem colados no patrimônio tombado. Essa festa, lotada de globos de espelhos, acumulou um vestuário baseado em paetê, lantejoulas e animal print. Eu fui de zebra. Eu dancei muito. Onças, vacas, leoas e brilhos, imersos em luzes neon, azuis, vermelhas e rosas, celebrando junto a François Kerkovian, um dos DJs do extinto Studio 54. O Studio 54 foi um daqueles espaços barrocos que antes mesmo de caírem em decadência, já nascem como a própria decadência devido à abundância impossível que tentam diariamente simular. Eu e um óculos de lentes cor de rosa, rumando para o apocalipse do paraíso pós-olímpico emoldurado por paisagens do mar infinito.

fotografia do gato preto da minha rua

O gato me observa abrir o portão de casa e eu, bêbada e cansada, o olho de volta.

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