O Outono é Sempre Igual (ou A Dualidade Barroca do Padre Vermelho)

fabrício teixeira
Cura Crônica
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4 min readJun 9, 2020

Há quem afirme que antes de Antonio Lucio Vivaldi compor o concerto para violinos Le Quattro Stagioni (As Quatro Estações), chovia na primavera e o verão carioca era forrado de neve da mais alva. O Viva teve que organizar tudo certinho nas partituras para que a coisa toda começasse a andar. Um prodígio à frente de seu tempo — onde, de fato, todos os prodígios devem estar.

Vivaldi nem sempre foi esse gênio da música erudita. Filho primogênito de uma família com sete irmãos, o futuro compositor não hesitou na primeira oportunidade de sair de casa. Atendendo a um chamado de Deus, que lhe ofereceu cama quente, comida farta e um quarto individual com latrina, inventou de ser padre aos 25 anos.

Conhecido de um rapaz que trabalhava em um hospital do Sistema Singolo di Saude — uma espécie de SUS da antiga Veneza, Vivaldi tratou logo de descolar um atestado médico para não precisar rezar missas. “Asma, coloca aí que eu tenho asma! — pediu ao amigo — Eu não manjo nada de instrumento de sopro mesmo!” completou, justificando.

Folgado, não fazia o menor esforço para esconder que, embora destratasse o sacerdócio usando a doença como desculpa, seguia na esbórnia da vida noturna. No Teatro de Sant’Angelo (uma espécie de Canecão da época) reunia a juventude veneziana para tocar seus concertos e, de vez em quando, um ou outro cover de Jorge Mautner para animar a galera mais prafrentex.

A boemia logo fez com que os amigos padres (esses sim, muito sérios) o acusassem de comunista — com algumas décadas de antecedência ao próprio cunho do termo — e espalharem que ele recebia dinheiro do Partito dei Lavoratori por meio da Legge Ruanenzo. Das sacadas dos monastérios aos confessionários, Vivaldi ficou conhecido como Il Petre Rosso, O Padre Vermelho.

Cansado do celibato, buscou conforto nos seios da Astrologia. Como a Universidade de Veneza demoraria cerca de 300 anos para ficar pronta, Antonio decidiu estudar os astros por conta própria. Viu ali, no sol — que ele conhecera finalmente depois de anos de esbórnia — e na lua, e na mudança das estações a inspiração perfeita para o que seria sua obra-prima: ia finalmente compor As Quatro Estações.

Vale ressaltar que, nessa época, o compositor já era queridinho da playboyzada italiana, que havia reparado naquele pitoresco rapaz cabeludo, com pinta de rockstar graças aos concertos L’estro Armonico — sucesso de público e crítica, e a primeira peça erudita a alcançar o primeiro lugar na Billboard, em 1712. Quando ele entrava nas tavernas, as meninas da aristocracia gritavam e se descabelavam. Criaram até As Vivaldetes, o maior fã-clube do compositor no velho continente. Algo assim só seria visto séculos depois, com a Lisztomania, a Beatlemania, a Jovem Guarda e o revival do pagode dos anos 90.

Quando o rei Luís XV precisou de um remendo nos fundilhos da calça que usaria para seu casamento, foi atrás de alguém que fizesse o conserto. Mas o monarca, que como a maioria dos italianos da época não manjava nada de português acabou chegando até Vivaldi ao solicitar a um empregado da corte que arranjasse alguém que fizesse concertos.

Explicada a confusão, e pra não perder a viagem, Quinzinho tirou um saco de moedas de ouro do bolso e disse “Tá, então me faz uma música pro casório mesmo!”. Comovido com a bondade do monarca, Vivaldi não só costurou os fundilhos da calça — já que aprendera o ofício quando ainda era padre, como compôs a peça religiosa Glória.

O compositor italiano morreu com 63 anos e — como grande parte dos brasileiros hoje — trabalhou até os seus últimos dias de vida. Foram mais de 500 concertos — e um conserto, além de 40 óperas — que ele, como um Túlio Maravilha, afirmava serem 90. Teve êxito e fama enquanto vivo, e os amigos mais próximos afirmaram que em dado momento o sucesso havia lhe subido a cabeça. A ele é atribuída a frase “Se um dia fui barroco, já nem me lembro”.

Hoje, a obra desse mestre segue atravessando gerações por sua capacidade de misturar arroubos virtuosos com melodias simples e belas. É usada em comerciais, programas de TV, desenhos animados e outros elementos da cultura, tão pop quanto foi o próprio. Basta uma rápida pesquisa no Google pelas Quatro Estações, por exemplo, e lá estará marcado para sempre o nome de Antônio Lucio Vivaldi; logo depois da Legião Urbana e de Sandy & Junior.

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fabrício teixeira
Cura Crônica

músico, comunicador social, produtor, cronista, quadrinista e suburbano