O vencedor da noite - Uma disputa noturna.

Renan Coelho
Cura Crônica
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3 min readAug 26, 2019

Finda-se a noite na Lapa. A saideira confirma-se. Preparo o último fumo, o que acompanhará a caminhada. Tomo a Mem de Sá sentido Praça da Cruz Vermelha, curvando à direita na Rua dos Inválidos. Desta, já no Campo de Santana, rumo à Presidente Vargas. Cruzo duas pistas e direciono-me à esquerda. O Palácio Duque de Caxias me olha indiferente. Chego na Central do Brasil.

Na Central do Brasil, kombis e vans fazem ponto pela madrugada, prestando um serviço valioso para o trabalhador noturno suburbano. Utilizando esse transporte, gasto cerca de quinze por cento do que gastaria em uma corrida de táxi ou uber para casa. Sempre há um transporte disponível — o da vez só sai quando o próximo chega para preencher o seu vazio. Adentro ao 311 alternativo (Central x Cavalcanti) e repouso meu corpo cansado no banco traseiro. A noite é fria e poucos são os que retornam neste horário. Partimos com o motorista, uns três passageiros. Esse partir sem o veículo preenchido deixa o condutor em um estágio de atenção, como quem sabe que seu retorno financeiro depende de mais passageiros nesta viagem.

Faz seu trajeto da Central até a rodoviária parando em todos os pontos e perguntando para onde os que esperavam iriam. Esforça-se e, mesmo assim, apenas mais um passageiro adentra no veículo branco. Após a rodoviária, segue um grande trecho sem pontos de embarque.

Central do Brasil

A partir dali, somente na Feira de São Cristóvão haveria possibilidade de mais passageiros. E é neste momento que tudo se dá. O dedicado condutor avista algo terrível em seu retrovisor. É uma kombi da linha 313 (Central x Penha). Esta noite sem passageiros exibe mais um desesperado. As linhas concorrem por novos clientes da Central do Brasil até o Complexo do Alemão - onde a 311 ruma à Nova Brasília e a 313 vira à direita na Grota. Nosso dedicado condutor ser ultrapassado neste momento parece uma tragédia.

Sem pensar duas vezes, exige o máximo do motor. O transporte não refinado geme. Ele olha o retrovisor com frequência. Acompanha os passos de seu adversário. Sobe o elevado na maior velocidade possível. Seu adversário não faz por menos e a distância entre os dois cai pela metade. Os gemidos intensificam. São Cristóvão passa abaixo de nós. “Aqui nasceu o Fenômeno”, diz-me uma parede. Próximo ao Centro de Tradições Nordestinas, na descida do elevado, acontece o que impõe um fim trágico à disputa: um dos pneus dianteiros fura. O motorista pede que os passageiros desçam e como um profissional de box de corridas automobilísticas, puxa um macaco da mala, e inicia seu processo de troca como quem ainda acredita que poderia vencer a corrida. Sua fé não é recompensada e em poucos segundos o condutor do 313 já emparelha ao seu lado, triunfante, abre a janela do carona e afirma ao rapaz ao chão trocando pneus: “ — Que merda, heim!”. Segue.

Motorista de kombi troca pneu. (Arquivo Pessoal)

Após a troca, todos voltamos à condução e, ao passar no ponto de ônibus em frente à tradicional feira, já não mais há passageiros. Nenhum. Zero. Nem pro seu destino, nem pra quaisquer outros. Segue cabisbaixo, nosso competidor, porém não há raiva em sua expressão, apenas uma resignação condensada nos músculos da fronte. Um semblante comum aos trabalhadores informais que nos evidencia serenamente: “amanhã é outro dia e o campeonato não acaba hoje.”

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