3x4: Julia Katharine

Conversamos com a talentosa, divertida e inteligente Julia Katharine sobre seus projetos e sua história

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Quem teve a chance de assistir a Lembro Mais dos Corvos (2018), documentário em longa-metragem de Gustavo Vinagre, lançado no ano passado, sabe que Julia Katharine é, sem exagero nenhum, uma das figuras mais interessantes e divertidas do nosso cinema.

Divertida, debochada e inteligente, a paulistana de quarenta e três anos escreveu seu nome na história do cinema nacional quando lançou, em sessões casadinhas com o filme de Vinagre, que escreveu o roteiro, o curta Tea For Two (2018) — tornando-se a primeira cineasta trans brasileira a ter um curta-metragem lançado nos cinemas.

Cheia de novos projetos, a artista, que além de dirigir, escrever e atuar coleciona bonecas Barbies, conversa com o Curta Curtas sobre sua carreira, sua vida e seus planos para o futuro.

Bora ouvir o que ela tem a dizer?

Curta Curtas: Pra esquentar, uma fácil: qual é o seu filme favorito? (risos)

Julia Katharine: É uma pergunta difícil e eu vou explicar o porquê. Eu sou geminiana (risos)!!! De tempos em tempos eu digo um filme, acho que nesse momento… meu filme favorito é Grey Gardens, o documentário de 1975.

CC: No documentário Lembro Mais dos Corvos (2018) de Gustavo Vinagre, você afirma que sempre gostou de cinema e que ele, o cinema, a ajudou em vários momentos de sua vida. Conta pra gente, um pouco, de como se deu a sua relação com o cinema.

JK: Ser uma mulher trans no Brasil é algo extremamente difícil… Nos anos 80 e 90 então… Era puxado! Não se falava sobre isso como hoje em dia, a invisibilidade era muito menor e ainda nem chegavamos perto do que seria o mínimo para começarmos a nos sentir seguras. O cinema foi a minha tábua de salvação. Eu me refugiava nos filmes para sobreviver. Houve momentos na minha vida que sem o cinema eu não teria suportado. Tenho certeza disso.

CC: Você imaginava que um dia faria filmes?

JK: Eu sonhava que um dia faria filmes, vibrava muito para que isso acontecesse e ainda vibro. Tudo o que você deseja e transforma em energia vibra para o universo, acontece. Parece papo de autoajuda ou um clichê cafona, mas é a mais pura verdade. E quando eu digo vibrar, não é só desejar e pronto, é você fazer com que o seu redor saiba disso, se comunicar, estudar, assistir a filmes e acreditar que você é capaz de fazer.

Enfim, nesse momento é preciso disseminar fé e conhecimento para as pessoas, senão vamos continuar nessa treva que estamos por conta desse governo eleito democraticamente às custas da ignorância, intolerância… É isso.

CC: Aproveitando o gancho dos curtas, antes de atuar, escrever e dirigir Tea For Two (2018), você trabalhou como atriz em algumas obras. Lembro-me de ter te visto em Crime Delicado (2005), do Beto Brant e ter dado um grito: “olhaaa!, a Julia Katharine!”, (risos).

JK: Em Crime Delicado, eu fui creditada como Kelly McQueen (risos). Era o nome que eu usava na noite, como aspirante a artista, DJ, hostess… O que pintasse pra eu ganhar uns trocados. Foi a minha primeira experiência como atriz no cinema e meu primeiro contato profissional, depois disso só quando o Gustavo me chamou pra fazer Os Cuidados…

Amanda Lyra e Gilda Nomacce em cena do filme Tea For Two (2018)

CC: Em seu primeiro papel de destaque, no curta Os Cuidados que se tem com o Cuidado que os Outros Devem ter Consigo Mesmos (2016), também de Vinagre, você já chegou quebrando tudo e levando o prêmio de melhor atriz coadjuvante no Festival Guarnicê de Cinema. Como foi participar desse filme? Você imaginava que teria a repercussão que teve?

JK: Fiquei muito feliz de ter ganho o prêmio de atriz coadjuvante no Guarnicê. Foi importante como um estímulo para que eu continuasse a perseguir esse sonho, de trabalhar com cinema e também de ser atriz. Não me sinto uma atriz completa como a Gilda Nomacce, a Tuna Dwek, a Maeve Jenkings, a Ondina Clais e tantas outras que eu admiro, mas estou me construindo para ser. Olha eu sendo pretensiosa (risos). Trabalhar em Os Cuidados… foi lindo e eu sou grata pela chance que o Gustavo me deu.

CC: Pensando na Julia Katharine atriz, qual a principal diferença da Julia de 2016 e da Julia do Tea For Two? Você sente que houve uma evolução no seu trabalho de atriz?

JK: Eu estou construindo a ATRIZ, ainda falta um bocado para eu me sentir confortável nesse lugar, mas eu espero que muitos diretores e roteiristas pensem em mim e me convidem para ser atriz de seus filmes e séries. O Edem Ortegal me fez um convite lindo para trabalhar em um de seus filmes, filmei com o Renée Guerra no ano passado e estou à procura de personagens. Call me!

Julia Katharine em cena do filme Tea For Two (2018)

CC: E como é conciliar mais de uma função num mesmo filme. Digo, como foi escrever, atuar e se autodirigir?

JK: É extremamente exaustivo e eu fui muito pretensiosa em fazer isso no meu primeiro curta-metragem (risos), não sei quando voltarei a fazer isso, mas nesse momento o que me interessa mais é escrever e dirigir.

CC: Seu filme tem muitas ideias. Entendo que há um comentário social bem marcado sobre transfobia e lesbofobia, mas, sobretudo, encaro o Tea For Two como um filme de amor e das possibilidades que o amor proporciona. Como foi equilibrar momentos tão diferentes em um filme tão curto?

JK: Foi um grande desafio porque me entendo como uma roteirista de longas, eu sinto que tenho muito mais facilidade quando posso pensar em uma história que tenha uma metragem maior. Então sei lá… Fico satisfeita com o resultado do Tea For Two, especialmente por ter tido a sorte de ter uma equipe e atores tão bons comigo.

CC: No curta, você demonstrou uma química muito grande com a Gilda Nomacce. Como foi a escolha dela, em específico, pra fazer o Tea For Two?

JK: A Gilda é minha mentora, musa e felizmente minha amiga. Nosso encontro em Filme Catástrofe, do Gustavo Vinagre, foi algo mágico e eu poderia ficar horas dizendo o quanto esse encontro me transformou como mulher e artista. Ela é uma das maiores atrizes do Brasil, foi uma escolha natural. Eu sempre quero trabalhar com a Gilda.

CC: O jeito que você filma a cidade em Tea For Two é muito bonito. Há um contraste entre as cenas que se passam no apartamento e as cenas externas. É como se, apesar dos pesares, houvesse mais liberdade no mundo exterior. Ainda assim, são nas cenas internas que a gente nota uma maior intimidade entre as personagens. Do ponto de vista do fazer fílmico, qual é a principal diferença entre filmar na rua e filmar em espaços fechados?

JK: Não sei te responder isso agora, estamos nessa quarentena longa e dolorosa e ainda não sei como vai ser minha relação fílmica com a cidade, com o mundo fora de um apartamento.

Gilda Nomacce em cena do filme This Is Not Dancin’ Days (2020)

CC: Uma coisa muito bacana que aconteceu com o seu filme foi o fato dele ter estreado nos cinemas junto com Lembro Mais dos Corvos. Embora fosse relativamente comum curtas serem exibidos nos cinemas nos anos 70 e 80, é muito raro a gente ver esse tipo de filme hoje em dia nas telonas. Como que se deu o processo de distribuição do Tea For Two? Como você se sentiu quando soube que o filme estrearia nos cinemas?

JK: A Vitrine Filmes me deu esse presente, de fazer esse combo e lançar esses dois filmes tão importantes na minha vida. Só tenho a agradecer.

CC: Você e o filme, além de ganhar as salas de cinema do país, ganharam também o reconhecimento da crítica. Como foi receber o Prêmio Helena Ignez, dado em reconhecimento ao trabalho de mulheres no cinema brasileiro, da Mostra Tiradentes?

JK: Recebi o prêmio Helena Ignez pelas mãos da própria. Foi um momento muito especial, talvez o mais impactante até agora pra mim. Mudou a minha vida de muitas maneiras e eu sou apaixonada pela Helena. Aquele foi o meu primeiro ano em Tiradentes e eu estava encantada com a Mostra, se eu pudesse iria todos os anos, é incrível.

CC: O momento político que a gente vive hoje é tenebroso em quase todos (se não em todos) os aspectos. Apesar disso, você enxerga que há uma abertura maior para profissionais transsexuais no cinema de hoje? Nesse contexto, fazer filmes é resistir, também, no sentido político?

JK: Ainda temos muito o que conquistar e muito o que trabalhar para que não sejamos um modismo, e sim para que sejamos vistas e respeitadas como artistas que somos e profissionais. Precisamos falar de empregabilidade e naturalização de corpos trans e outros corpos que ainda não ocupam o espaço devido.

CC: Mesmo depois de dois anos do lançamento, seu curta ainda percorre o circuito das premiações. Recentemente, ele foi pré-selecionado para o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. Com a pré-seleção, ele foi exibido durante um tempo no Porta Curtas — que fez uma mostra com todos os pré-selecionados. Nesse tempo em que o filme esteve disponível para acesso, você percebeu que mais gente viu o filme? Como foi a recepção por parte do público?

JK: O público foi muito carinhoso e receptivo, recebi inúmeras mensagens de amor e de incentivo para que eu não perdesse a fé no meu trabalho com cinema. Isso me dá força pra seguir em frente. Tea For Two ganhou o prêmio Guarani de melhor curta-metragem e eu me sinto muito honrada e estimulada a fazer mais filmes.

Julia Katharine e Gilda Nomacce em cena do filme Tea For Two (2018)

CC: Você pretende liberar esse ou outro filme na internet, seja gratuitamente ou por algum modelo de video on demand?

JK: Por mim quanto mais pessoas tiverem acesso a esse e outros filmes, melhor.

CC: Pra terminar, eu queria saber de seus próximos projetos. O que você pode adiantar pra gente?

JK: Acabei de lançar o meu segundo curta-metragem, This Is Not Dancin’ Days, protagonizado pela Gilda Nomacce e feito a partir de um convite do IMS, e tenho outro [curta] para ser lançado em novembro pelo Sesc. Nesse último eu irei atuar e contracenar com a Claudia Campolina, atriz do filme A Pedra da Serpente, do Fernando Sanches. Fora isso, tenho dois roteiros de longas que pretendo filmar mais pra frente… Enfim, a vida tem sido generosa e eu só posso agradecer.

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Thiago Dantas
curta curtas :: curtindo curtas, curtindo cinema

Uma espécie de Macabéa, só que mais trouxa. 31 anos, paulistano, comunicólogo e professor.